6 minute read

Cena 7 – ORAÇÃO DE MENINO

Next Article
Cena 6 – A CARNE

Cena 6 – A CARNE

(Transição. O ator veste roupas de criança. Zinho menino corre com uma pipa. Prende-a na árvore, desenterra um cavalinho. Brinca com o bicho.)

ZINHO MENINO – Passarim, ô passarim, tu que tá nas estriba de riba, encontra pai pra mim? Bate as asinhas e vigia cada cantinho dessas brenhas de mata. E vem rapidinho grugulejar o acontecido. E faço uma jura contigo. Oia meu badogue, tá vendo aqui? Tá sem pedra. Agora esse badogue só atira flor, tá vendo, passarim? Uma florzinha pra lá, outra pra acolá. E mais um monte! Tziu!Tziu!Tziu! Com esse meu badogue de flor quero selar minha jura contigo. Voa, pipiuzinho, até as extremas do mundo. Oia, flor atirou! Oia,

Advertisement

atirou flor! Tziu!Tziu!Tziu! Vai voando que eu fico aqui embaixo desse abacateiro. Trespassando reza até pai voltar.

(Voz feminina de fora chamando: “Zinho”)

Dezinha. Me deixa, mana! Vou agora não, Dedeta. Ô, maninha, tô com meu cavalinho! Na montaria, trotando (Simula montaria e galope). E depois inda vou tomar banho no poção de Dotô Zoroélio. Poção, não. Piscina! É a piscina da gente, né, Dé? Eu sei que a água tá verde, mas faz mal não. Tá podre nada, é só limo! Tem piaba dentro! Tem tanta piaba que até belisca a gente. Só tomo banho de calção, senão periga elas beliscar minha binga (Risos). Oxi, a binga é minha, eu cuido é dela! Saí daí, Dé. Se mete com minha binga não! (Trotando) Dé. Ô Dé, avisa a mãe que vou já (Trotando). Mas tu sabe que vou não, né? Que mané tarde. Tarde nada. (Vendo a amiga Bel de forma imaginária) E sabe quem chegou aqui agorinha? Foi minha comadre Bel. Sai daí, Dé, ela é minha comadre, sim, a gente pulou a fogueira junto na derradeira noite de São João. Fica aí, besta! E foi pulada treis veis certinha pro compadrio ser forte. Tô aqui prosando com ela. Sim, Bel, a muda. Filha de D. Aída do bandolim. Pois tô prosando com ela.

Prosando, Dé! Oxiii, sei que ela é muda, mas a gente conversa. Conversa sim! Eu entendo tudinho que ela diz. Só que ela fala de outro jeito. Ela fala assim com as mãos, com os pés, com os braços, com a cabeça e até com os zoios. Tá bom! Ela num diz palavra, mas faz assim trejeito, careta e som! E os sons eu entendo é tudo. É sim, Dé. Se ela tá feliz, ela faz assim, ó (Faz o som da emissão de voz de Bel, a muda, sem palavras). Tá vendo?! E se tá triste (Som). E se tá cismando (Som). Se quer é assim (Som). E se não quer (Som). Na dúvida, faz desse jeito (Som). Tá vendo! Nóis se entende é muito. (Vira-se para a Bel imaginária) Ô Bel, tem que ir, né? Mãe tá chamando! Sei como é (Faz um aceno com um som para se despedir de Bel). Eu não queria falar na presença dela porque eu sou respeitoso. Mas Dezinha, quando ela tá com raiva é diferente de tudo: é medonho! É assim (Faz gesto e som assustadores). Dá até um arrupeio! Sabe que foi desse jeito igualzinho que ela chiou na vez que Dita, de Seo Melquia do Curralinho, pegou nos peitos dela. É. Ele disse que ia brincar de esconder, deixou ela distraída. E aí, quando ela começou a contar de zóios fechados, tadinha. O remanchão buliu com as mãos gulosa nos peitos dela e saiu picado. Eu?! Eu não! Foi Dita. Juro e rejuro que num fui eu! Oxi, Dedeta. Tô dizendo, minha irmã. Juro picado e piripicado. Eu até

aumento, mas não invento nada. Ela chinelou atrás de Dita feito fera doida, e as peitchola balangando prum lado e pro outro. E todo mundo se rindo. E prum lado e pro outro. Dita se escafedeu. Esse Dita é assim: cheio de arte! Matreiro. Bel tava tão descaramunhada que quando quietou estalou um grito (Faz o som). Eu até hoje tenho comigo que ela gritou: fio de puta! (Risos) Eu? Eu não, viu! Me respeite, Dezinha! Eu não ando com Dita, não. Ele é da turma dos maior. E também num sou amigo de quem é amasiado com jumenta. Esse fio de rapariga! É sim, ele faz coisa com a égua de Seo Neném. Os menino todo diz. Ele se bandeia lá pras cercas de Seo Neném com um tamburetinho nas mãos. Nem se acabrunha. Pois então... E aí me diga: pra mó de que esse tamburete? Hum... Hum? E fica com a bicha um tempão, os dois deslavado embrenhado no matão. E sabe como ele chama a jega? “Minha potrinha” (Risos). Pois eu cismo que ele é um jumento pra ela. A verdade mais verdadeira é que a bichinha da jega num pode vê Dita que sai relinchando atrás dele. E bafeja demais quando vê o sujeito (Relincha). A gente fica até com pena da jeguinha! Deve de ficá com saudade dele, né, Dedeta. Assim são as coisas! Os dois tão diferentes e a égua num pode se vê apartada daquele tongo. Vai entender o amor! Essas coisas do coração se explica

não. É jumenta com Dita, é gato com galinha, é cadela com porco. Dizem até que já viram saruê com gia. Tá tudo assim, destrocado. Os meninos fundam nos matos pra ficá de lá zoiando. Eu? Eu mesmo não! Eu juro que nunca fui! Eu? Juro, Dé. Pela hóstia divina! E Seo Neném desconfiado já descobriu o causo e tá bravo que nem ichu. Tá na intenção de Dita pra lhe dar um corretivo. Seo Neném! Oxi, conhece não?! Tu num conhece é seo ninguém dessas banda! Tem que andar mais comigo. O homi é um pereço, Dezinha. Mãe corre dele que se péla. Por quê? Espie: ele é faiado dos dentes e vive com a dentadura nas mãos. Apois, é esse mesmo. Cada vez que esbarra em alguém, rapidinho Seo Neném enfia o pivô na boca e com a mesma mão da dentadura quer cumprimentar o sujeito e puxar prosa. E aquela mão ensebada e babenta da dentadura dá uma agonia, dá um engulho! Virge! O povo vive se escapando dele. Dona Celina, lá da rua da Linha, a que tem o armarinho e a janela de doces, se escapa dele por detrás da cerca e ele passa falando: “Bom dia, Dona Celina, como vão os meninos? Tá se escondendo dos netinhos, né?”. Oia o cabra como é. Nem se apercebe! Assim são as coisas! Mas a gente toda afirma e afiança que na mocidade foi homi de muitas galhardias, bravuras

e acontecidos. Homi ardido de pegar onça com os dentes. Será que assucedeu assim do pobre ficar desdentado? Todo xexelento! Quem imagina que este perreco banguelo foi um dia um bravo cavaleiro? Testemunham: tinha coragem que nem pai... Ai, Dé. Por onde pai andará perdido? Ocê tem saudade de pai, Dedeta? (Silêncio) Homi desassustado e atirado tava ali. Sempre se alembro que pai me repetia: “Filho, nunca tive medo porque nunca tive dúvida!” (Repete a frase como adulto) “Filho, nunca tive medo porque nunca tive dúvida!”. Eu repito isso todas as noites, pai (Retirando a roupa de criança). É minha oração desde menino, desde que tu se embrenhou no sumidouro da caatinga. E só agora eu entendi: para ter coragem é preciso crer! Mas a gente acredita de verdade em que mesmo? No que eu posso ainda acreditar, meu pai?

This article is from: