A memória como projeto: tensões e limites da patrimonialização da capoeira

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Física Regional da Bahia, “modificando” de algum modo a capoeira. Passou-se então a denominar a outra como Capoeira Angola, tendo como referência em grande medida Mestre Pastinha. Essas alterações estão imersas em transformações mais amplas como processos de modernização da sociedade, urbanização e imigração. Ainda hoje, este momento e lugar é tido como mítico entre os capoeiristas. Os mestres Bimba e Pastinha funcionam como mitos de origem para se pensar uma série de mudanças e continuidades que em grande medida definiram o que seria a capoeira nas próximas décadas. Ao pensar nos mitos de origem da capoeira, aproprio-me da reflexão de Marilena Chaui sobre os mitos fundadores da história do povo brasileiro: o mito fundador oferece um repertório inicial de representações da realidade e, em cada momento da formação histórica, esses elementos são reorganizados tanto do ponto de vista de sua hierarquia interna (isto é, qual o elemento principal que comanda os outros) como da ampliação de seu sentido (isto é, novos elementos vêm se acrescentar ao significado primitivo). Assim, as ideologias, que necessariamente acompanham o movimento histórico da formação, alimentam-se das representações produzidas pela fundação, atualizando-as para adequá-las à nova quadra histórica. (CHAUI, 2000, p.10)

Cabe a pergunta nos termos sociológicos de por que, ou como, estes mestres tiveram a capacidade de transformar-se em referências (mitos de origem) e que mudanças seriam estas. Acredito que para além das ações individuais de organização de grupos de capoeira, ou escolas, para ser mais fiel ao termo da época assim como suas concepções individuais, os mestres Bimba e Pastinha sintetizaram na história a expressão de dois projetos de capoeira. O conceito de projeto que venho usando nos ajuda justamente a pensar estas possibilidades ao longo da história. Seguindo o pensamento de José Maurício Domingues onde projetos “podem ser igualmente mais ou menos sistemáticos ou difusos, as pessoas podem estar mais ou menos cientes deles” (2002, p. 61), podemos pensar a criação das escolas regional e angola como sistematizações de projetos para a capoeira. Estes projetos evidentemente organizam-se contingencialmente num diálogo da sociedade com a capoeira e estão imersos no processo de modernização da sociedade brasileira, mais especificamente de Salvador, assim como do diálogo contínuo com outras cidades, especialmente o Rio de Janeiro. Não devo aceitar a proposta de que estes projetos sejam opostos, embora sejam em 1999), no entanto sabe-se pouco sobre a real continuidade das formas de capoeira que possivelmente existiam no Rio de Janeiro anteriormente à chegada dos mestre baianos a partir das décadas de 1950.


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