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5 CAPOEIRAS E O PROCESSO DE SALVAGUARDA
instrução e registro com a ampliação da documentação sobre o bem, incluindo recomendações para a salvaguarda; e a formulação do plano de salvaguarda e criação de conselhos gestores para o encaminhamento das ações. Neste processo a recomendação do IPHAN é a busca da participação dos detentores dos bens, tanto no processo de registro, quanto de salvaguarda. As autoras avaliaram ações de salvaguarda para nove bens (Paneleiras de Goiabeiras, Arte Gráfica Wajãpi, Samba de Roda do Recôncavo Baiano, Ofício de Baianas de Acarajé, Viola de Cocho, Círio de Nazaré, Cachoeira de Iauretê, Jongo/Caxambu) e apontam algumas questões que podem ser extrapoladas para se pensar o caso da capoeira:
A implementação do plano de salvaguarda passou a pressupor o estabelecimento de uma relação de cooperação, confiança e solidariedade entre os detentores, o Iphan e os parceiros interessados, ainda que estes possuam diferentes condições de poder. O estabelecimento dessa nova relação revelou-se um processo complexo, multifacetado e lento. Geralmente seu início é marcado por um misto de desconfiança, distanciamento e desinformação por parte da sociedade civil, mas sobretudo por parte dos detentores acostumados com a falta de acesso aos serviços públicos, com as promessas nunca cumpridas, com as ingerências e atuações desconsideradas dos órgãos estatais. (SALAMA, VIANNA, 2012, p. 74)
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As autoras destacam algumas dificuldades para o entendimento do que consiste o plano de salvaguarda, dentre as quais distingui-lo das recomendações de salvaguarda contidas no Dossiê, além das descontinuidades nestes dois processos. Havendo, neste sentido, uma lacuna de dois anos em média entre o registro e a primeira dotação orçamentária para a salvaguarda. Este fato resulta no descarte do trabalho realizado na construção da rede de contatos no trabalho de inventariamento para identificação de parceiros e na constituição de um comitê gestor durante a instrução. No caso da capoeira foi perceptível este fato, sendo inclusive, posteriormente, composto um novo comitê gestor completamente diferente do grupo de técnicos contratados para o processo de instrução descrito no capítulo anterior. Esta situação sugere desperdício do investimento anterior.
Prosseguindo com o estudo das autoras citadas acima, há três condições que, conjuntas, favorecem o bom andamento da salvaguarda: a condução do registro voltada para a salvaguarda; a mobilização e participação dos detentores no processo; e o aparecimento de “atores-chave que se apropriam da política e, com o passar do tempo, assumem posições de liderança ou mediação” (SALAMA, VIANNA, 2012, p. 82). Como
dois exemplos de boa prática, as autoras apontam os casos do Samba de Roda do Recôncavo Baiano e o Jongo/Caxambu. No primeiro caso, somou-se a criação da Associação de Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia, durante a instrução, ao aumento do número dos praticantes e a liderança assumida por um filho de um sambadores, que sendo professor pode assumir as responsabilidades de gerenciamento dos financiamentos conseguidos. No segundo caso, o envolvimento de professoras da Universidade Federal Fluminense permitiu a articulação da Fundação vinculada à Universidade com as redes mobilizadas entre as comunidades jongueiras.
Para fins analíticos divido o processo de salvaguarda para a capoeira entre as ações do Pró-capoeira, sua candidatura enquanto patrimônio cultural da humanidade e a criação do Conselho de Mestres no Rio de Janeiro. Para além da ação do Estado, busco trazer as percepções e atuação de capoeiristas no conjunto de ações entendidas como de salvaguarda. Para entender a participação dos mestres de capoeira neste processo, além de acompanhar reuniões do IPHAN, segui sites e blogs de discussão sobre o tema e entrevistei cinco mestres de capoeira, quatro que fazem parte do Conselho de Mestres do Rio de Janeiro, criado em 2015, e um que faz parte do Grupo de Trabalho, criado em 2014. Os dois grupos foram criados com objetivo de subsidiar a tomada de decisões no que cabe à superintendência do IPHAN neste estado. Meu objetivo foi, além de compreender o processo em curso, captar as interpretações dos mestres e analisar possibilidades de efetiva participação destes na tomada de decisão quanto ao caminho da salvaguarda.
Entendo que esta participação é essencial para a efetivação do que a literatura vem chamando de cidadania cultural que passa pela ideia do direito à memória. A ideia de cidadania que vem permeando os capítulos anteriores subsidia minha reflexão para pensar a participação dos capoeiristas, no sentido de problematizar o reencaixe da capoeira, agora como patrimônio cultural. Entendo que a continuidade dos projetos anteriores de localização da mesma enquanto esporte ou folclore encontram agora um novo espaço de confrontação nas políticas do IPHAN. Esta nova localização da capoeira poderia facilitar a efetivação da cidadania enquanto uma tendência de alargamento do direito à memória. O conceito de “cidadania patrimonial”, proposto por Manuel Ferreira Lima (2015), em diálogo com o de cidadania cultural, leva a um aprofundamento da reflexão sobre o debate
destas categorias e permite pensar a participação dos capoeiristas a partir de parâmetro mais controlado.
Como destaquei no capítulo anterior, ao longo do processo de instrução, a equipe técnica buscou coletar e levantar informações que subsidiassem as propostas de salvaguarda. Serviram de apoio os encontros públicos realizados entre setembro de 2006 e agosto de 2007. No Dossiê os seguintes pontos são destacados: 1. Reconhecimento do notório saber do mestre de capoeira; 2. Plano de previdência especial para os velhos mestres de capoeira; 3. Estabelecimento de um programa de incentivo da capoeira no mundo; 4. Criação de um centro nacional de referências da capoeira; 5. Plano de manejo da biriba e outros recursos; 6. Fórum da capoeira; 7. Banco de histórias de Mestres de capoeira; 8. Realização de inventário da capoeira em Pernambuco.
Em função destas recomendações, o IPHAN deveria estabelecer uma agenda de proteção ao bem. Como dito acima, entende-se, a partir do PNPI, que esse processo deve estar em diálogo com os detentores do bem. Há pouca informação disponível sobre as ações do IPHAN no momento logo após o registro. No ano seguinte, em agosto de 2009, houve o Encontro de Mestres de Capoeira, em Brasília, que fez parte das comemorações dos 21 anos da Fundação Palmares, com representantes do IPHAN. Segundo relato do Mestre Paulão Kikongo, houve uma série de debates no evento, em mesas sobre os temas da regulamentação da profissão de mestres; capoeira como patrimônio cultural: reconhecimento nacional e internacional; Políticas Públicas para a Capoeira; inclusão da capoeira nas escolas; e a proposta de reconhecimento da capoeira como patrimônio da humanidade76 . O mestre destacou preocupação com a continuidade das ações. Percebe-se que a capoeira como patrimônio cultural torna-se um ponto de debate, ampliando a agenda de discussões entre seus praticantes.
Em novembro de 2009, na esfera estadual, a capoeira foi declarada patrimônio imaterial do Estado do Rio de Janeiro pelo governador à época Sérgio Cabral, à partir do projeto de Lei do deputado Gilberto Palmares (PT)77. Segundo Mestre Paulão Kikongo,
76 Disponível em https://mestrepaulao.wordpress.com/2009/08/26/encontro-de-mestres-e-21-anos-dapalmares/, acesso em 15 de agosto de 2016. 77 Lei nº 5577, de 20 de novembro de 2009, disponível em http://govrj.jusbrasil.com.br/legislacao/820300/lei-5577-09, aceso em 15 de agosto de 2016.