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NA MODERNIDADE
caráter contingencial e de subjetivação dos processos de construção de identidade. Em suas palavras:
(...) embora tenha suas condições determinadas de existência, o que inclui os recursos materiais e simbólicos exigidos para sustentá-la, a identificação é, ao fim e ao cabo, condicional; ela está ao fim e ao cabo, alojada na contingência (HALL, 2000, p.106).
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Neste sentido, a identificação é um processo de articulação entre as possibilidades reais de realização de discursos que nos ajuda a pensar a identidade. Stuart Hall sugere pensarmos a identidade a partir de posições, de negociações que se dão em “rotas”, que “têm tanto a ver com a invenção da tradição quanto com a própria tradição” (2000, p.109), na ideia de Paul Gilroy (2001) do “mesmo que se transforma”. É desta forma que devemos pensar a capoeira como uma construção que se dá na dialética com falas que descrevem e definem oficialmente o que é o esporte, o folclore, o patrimônio cultural e o nacionalpopular. Ao pensarmos a identidade como um posicionamento no qual se atua por meio de vetores entre a “similaridade e continuidade”, e “diferença e exclusão”45 podemos perceber que a capoeira navegou, ao longo do século XX, num processo de nomeação realizado também por seus praticantes, a adequando a termos e categorias que aos capoeiristas escapavam. Foram importantes neste processo de nomeação as relações entre os praticantes e intelectuais atentos à capoeira com maior ou menor proximidade e simpatia de alguns. Ainda ao final do século XIX e início do XX, entendendo a capoeira como uma prática de origem popular e negra, seu lugar de exclusão na narrativa da nação deixou marcas, a definiu como marginal. Posteriormente ela esteve continuamente como importante marcador identitário do nacional por intelectuais diversos, especialmente no campo do folclore, mas não somente, estando seu caráter nacional como justificativa também nas leituras que a defendiam como esporte. Na segunda metade do século XX, definitivamente a capoeira “entra” para os manuais de folclore, sendo a continuidade desta chave de interpretação que servirá de base para a argumentação de sua “entrada” na lista de bens do patrimônio cultural em 2008. Configura-se então uma hipótese de trabalho que, na chave do folclore, a capoeira esteve mais próxima do projeto que contemporaneamente a define
45 Como apresentei anteriormente, Stuart Hall, propõe estas categorias para pensar as identidades negras no Caribe (HALL, 1996, p.176).
como patrimônio cultural imaterial. Tal proposição nos permite pensar tanto a capoeira, quanto as ações no campo para o imaterial, numa chave de tempo mais longo, ampliando nosso olhar para além das ações do IPHAN. Trabalharei ao longo deste capítulo uma interpretação que busca apresentar mudanças substanciais na capoeira. Na leitura limitada das categorias definidas mais genericamente, essas mudanças significam percebê-la mais facilmente próxima do que se entende como esporte46 ou folclore. No entanto, proponho a leitura de uma tensão entre esses dois projetos. No interior do universo da capoeira estes dois projetos – o do folclore e o do esporte – entrecruzam-se, sem no entanto deixar de configurar projetos com matizes próprias. Neste sentido, esta separação configura-se de ordem analítica, mas que há rebatimento entre as diferentes escolas de capoeira. Por não ser o objetivo central deste trabalho, entrarei apenas superficialmente na complexa diferenciação das escolas que institucionalizaram-se ao longo do século XX e seus desdobramentos, não obstante seja perceptível e impactante as diferenças e nuances.
3.1 A capoeira do passado marginal para a tensão entre o folclore e o esporte
A leitura de mais de dois séculos de registros sobre a capoeira torna evidente que ela passou por diversas transformações. Enquanto prática definida ao longo do tempo por capoeiristas e intelectuais, a capoeira alterou-se a partir de possibilidades diversas, construídas com graus de criatividade, liberdade e contingência. Por volta dos anos 1930, em Salvador, a capoeira passa por um processo de transformação, associada à sistematização de alguns de seus elementos47 . Mestre Bimba criou o Centro de Cultura
46 O debate da esportivização da capoeira é constante na literatura especializada, seria por demais longo fazer uma revisão desta, mas destaco o livro de Luiz Renato Vieira (1995), pelo ineditismo e, como referências, as dissertações mais recentes de Neuber Leite Costa (2007) e Vivian Luiz Fonseca (2009). Estes dois últimos destacam o conflito entre a capoeira e o sistema de organização da Educação Física. Como trato no último capítulo, nos últimos meses, mesmo após o registro como patrimônio cultural, o Conselho Nacional de Educação Física publicou uma nota onde reconhecia a capoeira como esporte. Esta nota gerou imediata resposta de capoeiristas e intelectuais contrários a este reconhecimento. 47 Estas transformações não são exclusivas à Salvador, mas ganha projeção na medida em que hegemonicamente os mestres de capoeira baianos tornaram-se referência na capoeira praticada hoje. Por exemplo, é bem conhecido o trabalho de Sinhozinho por volta da década de 1930 no Rio de Janeiro (LACÉ,