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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
história, legitimando o Estado enquanto ente máximo no controle do que deve sofrer as ações para o patrimônio cultural.
No Brasil as ações visando a institucionalização das ações para o patrimônio cultural surgem num momento de necessidade de legitimidade do Estado Novo, quando as narrativas da nação demonstram um projeto excludente. Neste momento o conjunto de bens que passa pelo processo consagrador de patrimonialização reflete a preocupação de construir um mito fundador do Brasil no projeto colonizador português. A memória do africanos e seus descendentes não é consagrada neste momento.
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Ao longo do século XX a razão patrimonial do ocidente passa por críticas que vão impactar na definição de patrimônio cultural. Especialmente seu caráter excludente é ressaltado, o que gerou uma ampliação do escopo de sua atuação. De alguma maneira a razão patrimônio incorpora os debates do multiculturalismo de final do século XX, incorporando novos instrumentos ou revendo as instituições de trato do patrimônio. Neste cenário, já no século XXI, no Brasil, após um momento de desconstrução do Ministério da Cultura, no Governo Fernando Collor, já no Governo Lula, vê-se uma inflexão no trato com a cultura.
A literatura especializada descreve o momento pós 2003, como de consistente mudança no perfil das ações no âmbito das políticas públicas, seja na proposição de uma agenda clara, ou na ampliação dos recursos envolvidos, não obstante a manutenção do financiamento privado via leis de renúncia fiscal. Cabe destacar o imbricamento que se coloca neste momento entre ações para a diversidade cultural e cidadania com a cultura, seja na criação de secretarias sob os auspícios do Minc, seja no formato de editais que favoreciam temas da cultura popular e identidades de grupos entendidos genericamente como de vulnerabilidade. Neste sentido, não obstante a cultura (já com aspas) ser tratada como ferramenta para a efetivação da ideia de cidadania herdada das ideias de universalidade da cultura do século XIX, constitui-se uma perspectiva de cultura passível de políticas públicas para bens como jongo, samba e capoeira. Quando estes puderam passar pelos instrumentos de consagração, via patrimônio cultural. Estes bens que possuíam uma trajetória no âmbito de políticas para o folclore e cultura popular desde meados do século XX, neste momento receberam o reconhecimento de patrimônio cultural, os
“reencaixando” novamente na modernidade. Assumem assim um novo papel na narrativa da nação.
Durante todo o século XIX e as primeiras décadas do século XX, a capoeira esteve relacionada à marginalidade. Embora passando por repressão, ela esteve presente no cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, assim como em outras do Brasil, associando-se a espaços populares, constituindo-se num elemento da memória coletiva. Numa perspectiva de legitimação da capoeira, alguns intelectuais e praticantes passaram a defendê-la como um esporte ou arte marcial. Dentro desta concepção ela passou a ser acionada como um legítimo esporte nacional. Dentro de outro projeto, enquanto uma tradição, ela foi entendida por intelectuais que a associaram às concepções de folclore nacional. Ambos os projetos a defendiam dentro de um ideal de nacionalidade que, associado a projetos de capoeira, referendava narrativas sobre a mesma, no entendimento de Matthias Assunção, “metanarrativas”127. Estas metarrativas se relacionam com projetos que construíram estilos e modalidades de capoeira. As políticas públicas para a capoeira, ao longo do século XX, estiveram num contínuo jogo com sua diversidade, mas no entanto, como próprio da atuação burocrática do Estado, definindo termos.
No debate sobre a constituição das identidades e dos mecanismos de identificação, a memória de uma prática de origem afro-brasileira negociou a todo tempo recolocações. Neste entendimento da construção discursiva e a representação política podemos repensar o sujeito destas ações. Butler (2005), por exemplo, inspirando-se em Foucault, trabalha o risco dos sistemas jurídicos de poder produzirem os sujeitos que eles próprios representam. Nesta perspectiva entende-se que o sujeito de políticas de reparação e reconhecimento é criado pelo próprio sistema que visa modificar. Percebe-se neste caminho o caráter dual do poder jurídico que define o que ele diz apenas representar. As estruturas públicas pelas quais determinados setores buscam como caminho para a emancipação irão sofrer o impacto destas estruturas na sua definição. No caso da capoeira, podemos afirmar que uma
127 Mathias Assunção (2005) percebe metarrativas nas falas sobre a capoeira que buscam trabalhá-la a partir da valorização de determinados elementos que variaram ao longo do tempo e dos círculos de atuação de intelectuais e praticantes.
vez acionado o direito a compor o patrimônio cultural, ela será reorganizada em função desta nova posição, mas dentro de um suporte jurídico que já define a prática128 .
No entanto, o estudo das tensões surgidas no processo de patrimonialização da capoeira nos sugere que ela pode ser vista como um corpo subversivo, e nos permite uma compreensão dos mecanismos de organização do poder. Talvez daí Mestre Paulão Kikongo afirmar que hoje busca a “desinstitucionalização” da capoeira, ou Mestre Neco que entende a capoeira como um “esporte amador”. Os mestres entendem a dificuldade de enquadramento de sua prática que constituiu sua identidade num processo de tensão entre a participação e a marginalidade. E problematizam a institucionalização da prática, ou formalização do ensino, como um risco a este corpo subversivo. Neste caminho o caso da capoeira é revelador, na medida em que promove um ponto de tensão entre o caráter esportivo e cultural. Novamente, como patrimônio cultural, tenciona os limites de reconhecimento do patrimônio cultural nacional, uma vez tratar-se de prática fortemente marcada pelo processo de diáspora. Da mesma forma, como destaquei, os campos do cultural e do esporte a disputam. A capoeira ao propor-se no entre meio obriga a repensar categorias de classificação e limites de identificação. Permeou ao longo da tese a hipótese de que políticas culturais recentes têm procurado dar conta de uma noção de cidadania ampliada que permitiu uma aproximação de sujeitos que até então vinham sendo excluídos das instituições oficiais de memória. Essa hipótese tem a ver com a inflexão que trouxe a constituição de um projeto de cidadania que reconhece o direito à memória como importante marca na efetivação de uma cidadania cultural. Segui o rastro de Marilena Chauí ao discutir o direito à participação na condução das políticas culturais como um exercício de cidadania cultural, onde “no exercício do direito à cultura, os cidadãos, como sujeitos sociais e políticos, se diferenciam, entram em conflito, comunicam e trocam suas experiências, recusam formas de cultura, criam outras e movem todo o processo cultural” (CHAUI, 2008, p. 66).
O reconhecimento da ideia de direito à cultura aponta para um diálogo com o processo de constituição da modernidade, que envolve a ideia de cidadania como tendência
128 Na proposta de Butler entende-se que o recalcamento produz o objeto que nega ou que “o paradoxo interno desse fundacionismo é que ele presume, fixa e restringe os próprios “sujeitos” que espera representar e libertar” (BUTLER, 2005, p. 213).
que discuti nos capítulos um e dois. Neste sentido, as ações para o patrimônio cultural respondem também à ideia de um processo contínuo, mas não regular, de ampliação das ações dos Estados às práticas e setores da sociedade. Evidentemente neste processo há avanços e recuos tanto na velocidade, quanto nos sentidos que assumem estes giros modernizadores, entendidos como contendo a inclusão de setores à modernidade. A cidadania, em seu sentido tradicional, teve dificuldades para abarcar variadas subjetividades geradas no processo de desencaixe mais radical, como no caso das memórias coletivas da experiência africana no Brasil. Onde o Estado tornou-se o principal ente do processo de modernização, este atuou com forças de expansão e retração do escopo da cidadania, como percebe-se na América Latina129 e no Brasil.
Retomando a ideia de desencaixes e reencaixes trazida para pensar os bens que vêm sendo alçados à categoria de patrimônio cultural imaterial, podemos pensar as últimas décadas como de radicalização do processo de constituição da modernidade. Seguindo esta ideia, os bens alçados à categoria de patrimônio cultural imaterial sofrem desencaixes de seus lugares tradicionais, e passam por reencaixes na esfera do patrimônio cultural, legitimando-se no âmbito do interesse coletivo. Os sistemas peritos inspiraram minha problematização dos novos lugares definidos para práticas e bens da cultura popular. No caso da capoeira, a tensão entre o esporte e o folclore permanece, no entanto, impactada por um novo ator, o IPHAN, que foi acionado pela comunidade quando na possibilidade de aprovação de uma nova legislação para a prática. Entendi que neste momento o projeto culturalizador da capoeira foi vencedor, o que expressa um reencaixe promovido pelas políticas mais recentes e demonstra uma força do Ministério da Cultura.
Como destaquei, não obstante faça sentido as análises que buscaram discutir o período do governo PT, nos moldes de um presidencialismo de coalisão, a atuação de Gilberto Gil e Juca Ferreira, como ministros, indicou uma autonomia com status de independência. Se Gilberto Gil agregou capital simbólico ao Minc, Marta Suplicy trouxe
129 José Maurício Domingues propõe que “à medida em que a América Latina adentra a alterada configuração da Terceira fase da modernidade, as subjetividades coletivas, que têm levado à frente esses processos de modernização vinculados a processos que se desdobram em outras regiões do globo, têm também se modernizado por aqueles processos de modernização. (…) Se a cidadania permanece seu reencaixe básico, é excessivamente rarefeita para prover soluções para a construção identitária e para as práticas sociais” (Domingues, 2009:152)
habitus político que facilitou a aprovação de leis propostas na gestão anterior. Numa escala mais fina, no entanto, o fim do Programa Cultura Viva, no Governo Dilma, representa o fim de um modelo, onde Célio Turino (2013) vê uma ruptura. Entendo que se pensarmos numa escala maior, a leitura da gestão do governo PT nos 14 anos à frente do executivo não demonstra mudanças significativas. A leitura deste momento do Minc sugere que o Estado chama para si um papel mais propositivo, superando a ausência e a instabilidade comum ao setor, e que recai numa leitura mais centralizadora nos governos Lula, mitigado no governo Dilma. Esta leitura torna difícil não tentarmos a comparação com os casos anteriores dos primeiros anos logo após a criação do SPHAN (tido como a fase heroica) e das políticas de final da ditadura militar, no tardar dos anos 1970 (entendida como de modernização no olhar para a cultura como fator de desenvolvimento).
As políticas para a capoeira demonstram que houve mudanças na passagem do governo Lula para Dilma, na medida em que houve descentralização das ações, logo após uma paralização das ações nos meses iniciais. Há de se pesar o fato de que o caso da capoeira partiu de uma demanda pessoal de Gilberto Gil, reforçando um caráter centralizador e propositivo de ações, muito em sintonia com suas propostas mais gerais explicitadas em seus conhecidos discursos à época, notabilizados pela expressão “doincultural” (Gil, 2003). Já no Governo Dilma, a atenção amplificada para setores da economia criativa sugere uma mudança que ainda precisa ser discutida com dados mais consistentes. Evidentemente que a capoeira foi impactada pelo processo de descentralização, mas que os ainda em criação Conselhos de Mestres nas superintendências estaduais não me permite uma leitura mais precisa.
No limite desta análise, permito-me concluir que as políticas para a capoeira geraram a ampliação do escopo de cidadania para os detentores do bem, entendendo os limites da ação nos termos do cultural. Como os mestres lembraram, durante as conversas, muitos deles ainda passam por necessidades materiais diversas dentro de um universo muito heterogêneo. A expectativa dos mestres de capoeira em seu conjunto é de que o registro já trouxe direitos, mas sem alterar as tradicionais reticências quanto à garantia no domínio de definição dos termos para a manutenção do bem.
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