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1 INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MEMÓRIA COMO PROJETO
modernidade que impacta na formação de quadros de especialistas e de um corpo burocrático inscritos na ideia hegemônica de civilização ocidental. Torna-se necessário precisar estes conceitos na medida em que o entendimento deles impacta na própria concepção do que deve vir a ser as políticas para o patrimônio. Ou seja, na dinâmica de constituição da civilização ocidental, o entendimento do que é Estado, nação e cidadania impactam nas ações de efetivação das sociedades imaginadas na concretude do mundo moderno.
Pensando as ações no campo de preservação do patrimônio cultural, é importante entendê-las em processo ao longo destes mais de dois séculos de práticas de preservação. Esta perspectiva torna-se essencial para que se possa debater a inclusão de novos setores no campo do patrimônio cultural. É essencial compreender o processo de definição destas categorias na definição dos caminhos de patrimonialização, para que no segundo capítulo eu possa discutir a ampliação das possibilidades de ação no campo do patrimônio. Não menos importante para meu argumento é tornar mais precisa a ideia de que cidadania está contida nas ações de preservação em relação à construção dos modernos estados-nação e à memória de determinada coletividade. Cidadania aqui será entendida como um conceito-tendência, dada sua importância na definição de um projeto12 de nação baseada na ideia de cidadania que, mesmo abstrata, define práticas e percursos concretos. Outra chave interessante a se refletir sobre o patrimônio cultural é o caráter de aparelho ideológico da memória, como propõe Candau (2009), uma vez que pretendo apontar para o nem tão evidente caráter seletivo na definição de bens como patrimônio cultural. Esta desnaturalização das ações de preservação trata-se de um passo primeiro para a definição deste conjunto como um objeto de pesquisa. Ela permitirá refletirmos sobre a ação do Estado em relação à memória e identidade baseada na cidadania e seus impactos, além de percebermos porosidades nestas ações.
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12 No conceito de projeto como proposto por Domingues (2002) devemos nos afastar de uma definição teleológica e que pressupõe fins claros e consciências individuais e coletivas autossuficientes. De modo que não devemos colocar projetos como sendo fundantes de todas as ações futuras dos indivíduos, assim como de coletividades, no entanto orientados a partir de escolhas e estratégias negociadas na experiência social. “Escolhas e projetos possuem bases sociais, sem prejuízo do labor da coletividade, da imaginação, em sua urdidura. Eles variam graças a essa criatividade constitutiva e incansável bem como em função de sua interação com outras escolhas e projetos individuais e coletivos; são às vezes abandonados e podem ser descontínuos, sendo sempre contingentes em seu desdobramento e sucessão.” (DOMINGUES, 2002, p.57)
1.1 Modernidade e cidadania no moderno estado-nação
Anthony Giddens (1991, p. 8) define modernidade como: “estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”, localizando espacialmente e temporalmente seu início. Giddens propõe uma interpretação descontinuísta da história e do desenvolvimento social moderno com especificidades institucionais únicas, sem deixar de perceber também continuidades entre o tradicional e o moderno, não obstante as mudanças serem “dramáticas” e “abrangentes” na modernidade. Defende ainda desconstruir a ideia de “evolucionismo social” que arvora um sentido único da história. As descontinuidades entre as instituições modernas e tradicionais se dão especialmente no ritmo e escopo da mudança, uma vez que abrange virtualmente todo o planeta. Tendo também para além das descontinuidades, o surgimento de formas sociais novas. Este projeto de sociedade moderna era vista como essencialmente industrial e científica, tendo o estado-nação como referência de organização política e burocrática13. A sociologia dos séculos XIX e XX é herdeira deste projeto e em alguma medida o tema da modernidade assume centralidade nos debates, sendo pano de fundo para questões mais pontuais e locais, seja como ideia de contraste – a modernidade define o que não é ela mesma –, seja como especificidade de determinadas singularidades. Neste sentido modernidade é um tema especialmente caro à sociologia e esteve como um de seus objetos de pesquisa desde a fundação da disciplina. Ficou claro para os autores entendidos como os pais da sociologia que sua época caracterizava-se por profundas transformações ou aceleração de processos de mudança que já vinham sendo percebidos desde pelo menos o Iluminismo. No debate feito por Giddens (1991) de caracterização das instituições modernas, segurança e perigo, e confiança e risco, assumem função central, pois, embora a
13 Na visão de Giddens (1991), a Modernidade é constituída pelo capitalismo e o industrialismo que são “feixes organizacionais” de um sistema social maior com um emaranhado de instituições estruturadas para sua reprodução, com espaço para a reflexividade como vimos acima. Importante lembrar que para Giddens não há uma sobreposição das ideias de sociedade moderna e sociedade capitalista. Identifica quatro dimensões básicas da modernidade que atuam de forma inter-relacional: vigilância, poder militar, capitalismo e industrialismo.