A memória como projeto: tensões e limites da patrimonialização da capoeira

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diversos de transmissão da memória e assim reproduzir comportamentos apreendidos, trazer impressões, sentimentos e a possibilidade de descrevê-los (POMIAN, 1984). No entanto, na tradição das ciências sociais do século XIX e primeira metade do XX, a memória esteve vinculada fortemente às tradições orais, enquanto a história como ciência ganhou suporte da linguagem escrita demarcando uma diferenciação que foi importante na definição dos lugares de memória. Como vimos acima, para Pierre Nora (1993), a preocupação com a memória a partir da modernidade está fortemente associada ao fato de não mais existirem os “meios de memória”. Neste argumento habitamos o mundo da história que é pública, universal. Esta história compartilhada a partir de acontecimentos que precisam ser constituídos enquanto coletivos difere da memória que é pessoal, individual e múltipla, construída no processo de socialização, mas nos espaços de memória. No entanto o mundo da história pública dialoga com o passado por meio dos “lugares de memória”, espaços reservados para este fim, tratados como vestígios do passado. Cabe, evidentemente, ressaltar as disputas políticas nesta luta, uma vez seu caráter público. Serão, na modernidade, estes lugares de memória também importantes na definição das identidades de grupos e pessoas. É também, neste sentido, que a sociedade ocidental irá se relacionar com os processos de produção de memória, sempre com a sensação de que ela está fora do lugar. Os lugares de memória assumem esta aparente contradição de ser algo exterior, mas naturalizado por ser o passado compartilhado. Serão sempre ruínas conservadas. Nosso sistema perito de definição dos lugares de memória assemelha-se ao arquiteto, aludido por Baudrillard (2002, p.82), que prefere manter a viga e a pedra antiga da casa ao invés de derrubar toda a casa antiga. Os lugares de memória, incluindo aí os patrimônios culturais, projetam-se à tradição, chamando-a como sendo algo intrínseco a eles. Neste projeto, o objeto antigo leva o indivíduo a identificar-se com o anterior e desta forma com o eterno. Seguindo a tradição francesa, Halbwacks, trabalhando o fenômeno da memória coletiva, remete continuamente ao peso da sociedade sobre o indivíduo. A sociedade assume o centro na constituição de produção da memória individual, ressaltando-se o peso da linguagem como instrumento na socialização por meio da memória, em suas palavras: “nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais buscam sua fonte nos meios e nas circunstâncias sociais definidas” (HALBWACKS, 1990, p.40).


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