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Uma valsa
from Conte Que Eu Conto
Ele estava exposto, majestosamente, no último piso do shopping. De ambos os lados do instrumento, exibiam-se colunas, em mármore Carrara, sobre as quais repousavam dois vasos antigos em prata vistosa.Talvez o houvessem ali colocado como peça decorativa ou, quem sabe, provável objeto de venda. Ninguém me falara coisa alguma, e também eu não ousava fazer perguntas quanto a ele. Afinal, após meses desempregado, consegui uma vaga, a duras penas, como segurança no referido lugar. Não queria, assim, impor- me, muito menos fazer-me de enxerido. Gostava de apreciá-lo por ser ele belíssimo, conservado e imponente.Todo branco, alemão, da marca Bluthner, tratava-se de um raríssimo piano de cauda. Sim, eu tinha ideia sobre o valor do mesmo: acadê- mico de música, minha pretensão era a de tornar-me um grande pianista. Para isso, então, eu necessitava trabalhar com afinco. O salário, ou melhor, parte dele estaria sempre direcionada ao pagamento dos estudos que possibilitariam a concretização de meu ideal. Época natalina. Como todos sabemos, uma fase turbulenta, de intenso vai e vem em qualquer local. As pessoas têm por hábito 73

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ir aceleradas ao shopping, onde olham vitrines, procuram descontos e remarcações com o fim de comprar logo os presentes e sair rápido do tumulto. Inúmeros se acotovelam nos corredores, antes, largos e cômodos; agora, estreitos e insuportáveis. Meninos e meninas, acompanhados dos respectivos pais gritam, a todo instante, “Eu quero esse, mamãe!“; ou, apenas, afirmam “Vou pedir a Papai Noel!” Nesse frenesi, tantos acabam por ignorar o verdadeiro sentido do Natal. Como ficam desatentos a muitas coisas, esquecem-se de reparar, também, na presença do clássico, elegante e altivo piano, protegido por cordões dourados, à procura, talvez, de um novo dono, abastado amante da arte instrumental. Esse é meu caso. Conforme já disse, curso música na universidade e tenho plena convicção: serei um excelente artista das teclas. Repito, é esse meu objetivo. Assim, empenho-me bastante em conhecer obras de grandes compositores, como Chopin, Beethoven, Schubert, Mozart... Por tal razão, nas horas vespertinas, sempre treino na faculdade, pois minhas condições financeiras não me permitem adquirir tão grandioso objeto.Trabalhar no turno da noite, portanto, representa para mim, neste período, um mimo do ‘bom velhinho’ pela chance de admirar, em todos os detalhes, o Bluthner alemão. Além disso, cada vez que, no exercício de minha tarefa, passo diante dele, reafirmo meu inabalável propósito. São 22 de dezembro, dia da virada. O grande centro comercial permanecerá aberto 24 horas, com turno dobrado, portanto, para todos os funcionários. Meu Deus, terei que labutar das 18:00h de hoje a igual horário de amanhã! A exaustão me espera! Já me sinto cansado só em pensar! Devo preparar-me física e psicologicamente. Sem dúvida, milhares de pacotes 74

vão desfilar, em atropelo, pelos corredores, e minha atenção deverá ser dobrada para qualquer intruso que se atreva a importunar os clientes. Pontuais 10:00h. Papai Noel acaba de chegar. Oba! Daqui do último piso, ouço os gritos das crianças em alegria contagiante. Com a supervisão dos responsáveis, elas se organizam em uma imensa fila para conversar com o ‘ velhinho de barbas longas’ e a ele fazer as encomendas. Uma alegria única! Nossa! Como as crianças amam essa lendária figura! Volto à minha função, pois hoje é um dia bastante difícil e não posso dar vacilo algum. São exatamente 14:00h e, por aqui, tudo tranquilo. Arrasta-se o tempo em já intermináveis momentos noturnos. Enquanto faço a ronda, bate-me cansaço, e eu estou, cada vez mais, sonolento. O avanço da madrugada traz um novo dia. Lojas, restaurantes e lanchonetes funcionam normalmente para os retardatários, compradores de último segundo. Gradativamente, dissolve-se a multidão. Que delícia!, penso eu. Procuro Papai Noel. Imagino que se tenha retirado pois, a esta altura, certamente, já não há crianças aqui. Acredito, ele deve sentir-se esgotado! Escutar inúmeros pedidos, sorrir e tirar fotos a serem postadas por essa turminha nas redes sociais... Sem dúvida, ele faz tudo isso com imenso agrado, mas há de ser árduo, talvez tanto, ou mais, que meu trabalho. É melhor atuar como segurança e... Meu pensamento é cortado pela presença da maravilhosa figura subindo a escada rolante. Examino. Como é simpático esse senhor envolvente, bonachão e gordinho! Noto que anda pelo terceiro e, depois, último piso. Os passos dele são, de fato, muito lentos e marcados pelo som das botas quando tocam o chão. O ritmo de seu caminhar diminui. Ele

.olha em torno, dá um suspiro e interrompe, por completo, a marcha. De onde estou, minha impressão é a de ver um brilho de lágrimas rolando-lhe nas faces. Ele se coloca, agora, diante do fantástico instrumento. Com jeito tímido, porém seguro, suspende uma das cordas cor de ouro, aproxima-se e levanta a tampa do Bluthner alemão. Senta-se na banqueta de madeira com assento em veludo.Tem o cuidado de certificar-se se não há alguém por perto. Seus dedos começam a pousar, sem pressa, sobre o teclado. Observo, confesso, com ansiedade. Nesse momento, esqueço minha função e torço, torço muito para que, finalmente, ele dê início a uma melodia. Ainda sob tensão, percebo-o a olhar para o alto. Estará ele em prece ? A fazer um apelo? Ouvira tantos, por que não um também para ele? Decide-se e, após verificar se o piano está afinado, começa a tocar. Emociono-me. Logo às primeiras notas, minha alma se enternece: as mãos do adorável velhinho de barbas compridas reproduzem magnificamente, nas teclas, Primavera, a valsa mais admirada por mim. Ele, como se soubesse disso, volta o olhar, de modo cúmplice, para o lado esquerdo, onde me encontro. O ambiente, então calmo, enche-se de aconchego. As pessoas, em número já reduzido, sorriem umas para as outras e se abraçamsolidariamente. Resolvo juntar-me a elas para desfrutar, de forma única, a iluminada composição de Chopin. Uma bênção. É Natal! Ao fim do espetáculo, ele abaixa a tampa do Bluthner alemão e deixa que seus dedos o percorram suavemente. Aplausos raros. Ele se despede. Instantes após vejo, sobre o instrumento, um pedacinho de papel. Eu adianto os passos e sigo ‘o artista’ a fim de entregar-lhe o que ele deixara em cima do piano. Sou, contudo, chamado por uma senhora cujas mãos seguram vários pacotes. Ela me pede ajuda, e acho estranho quando diz meu nome. A responsabilidade de atendê-la não é 76

minha, mas não me custa fazer um bem, ainda mais em data especial como essa. Carrego todos os embrulhos até o carro, ela me agradece gentilmente e deseja-me, com voz convicta, um Feliz Natal.Vou até a escada rolante. Minha intenção é pegar o papelzinho, correr ao encontro de Papai Noel e devolver-lhe o escrito que ele abandonou sobre o piano. A curiosidade em saber o conteúdo, então, quase me mata! Desço aflito.Tenho de achar a cartinha dobrada! Algo me diz, nela há registros importantes. Não sei bem por que tenho essa impressão, mas é como sinto. Chego ofegante ao terceiro piso, dou algumas voltas e não consigo avistar ‘o velhinho barrigudo de roupa vermelha. ’ Isso, lógico, era o esperado. O papelzinho, no entanto, permanece sobre o Bluthner alemão. Parece a salvo. Intacto. Perfeito. Ufa! Quanto alívio! Aproximo-me sem, na verdade, entender o motivo de tanta apreensão. Minhas pernas estão trêmulas; a mente, acelerada. Pego o bilhete ou carta, a essa altura, nada mais sei. A dúvida toma conta de mim. Abro? Mantenho como está? Entrego à administradora do shopping? Pingos de suor em minha testa e pescoço começam a me incomodar. A visão se turva... Preciso controlar-me até porque trata-se de um simples papel largado sobre um instrumento, assim como muitos recibos de compra, venda e troca perdidos, nesse dia, pelos mais descuidosos. Há, entretanto, um detalhe: este, no mar da pluralidade dos avulsos, soltos e relegados, é singular. Sim! Existe uma coisa qualquer de surpreendente. Ninguém me afirmou, porém estou certo de que nele está expresso um inesperado assunto. De repente, resolvo desdobrar, conferir e ler. Caso eu não imaginasse ser para mim, entregaria à seção competente, mas não resisto ao impulso de ver, sobretudo ao lembrar o gesto suspeito, no bom sentido, de Noel enquanto ele dava o show nas teclas. Além disso, mereço banir esta agonia para retomar 77

o trabalho. É chegado o momento. Coragem! Vagarosamente, desfaço as dobraduras do papel. Mal posso acreditar no que leio em letras bem desenhadas:“ Caro José Fernando, a valsa Primavera, há pouco executada por mim, é como um presente de Chopin para você. O piano de cauda também lhe é destinado. Procure, no setor de atendimento do shopping, o gerente Maurício Ferraz. Com ele está o documento que autoriza você a levar para casa o Bluthner alemão. Sem perguntas! Feliz Natal! Com carinho, Papai Noel. ” Mantenho-me imóvel. Meu coração bate em descompasso. Como ele adivinhara meu desejo se nem com ele falei? É demais minha felicidade! Repito, de qual forma ele tomara ciência do maior anseio de minha vida? Vem-me, agora, à cabeça, a imagem daquela senhorinha, carregada de compras, a qual me solicitou auxílio. Havia, em seu jeito, algo diferente... Quem seria ela? Por que se dirigiu a mim, de maneira tão cordial, logo após a execução da valsa? Bom, não adianta eu fazer agora, a mim mesmo, tantas indagações. Há fatos simplesmente inexplicáveis. Providenciarei, dentro dos conformes transportar, para minha humilde residência, o piano de cauda. Persistente, vou doar o melhor de mim e proponho-me a abrir meu primeiro concerto com a valsa Primavera, de Frédéric Chopin. Não faço ideia se, algum dia, tudo será esclarecido. Nem importa fazê-lo. É... Chego à seguinte conclusão: Papai Noel, como ente mágico, pode ser, também, intermediário de um anjo. Aí está um grande segredo e, para mim, um profundo mistério que só diz respeito a nós três.

* Lúcia L. Velloso e Rosa Fauaze
Nasci em Salvador, Bahia, num dia 13. Dia da sorte! Meu nome? Maria Lúcia LeahyVelloso, mais conhecida como Lúcia Velloso. Sou avó de Eva (foto), mãe de Marco, professora formada em LetrasVernáculas pela Universidade Católica de Salvador, com curso de Especialização em LinguísticaTextual pela Faculdade De Educação Olga Mettig. Lecionei, durante muitos anos,
em alguns colégios da rede particular da cidade e na Faculdade Estácio/FIB. Hoje, aposentada. Virginiana, observação analítica, característica do signo. Um hábito? A leitura. Além disso, gosto muito de assistir a bons filmes e a peças teatrais.Tenho verdadeira paixão pelo mar. Sempre sonhei em escrever um livro, acredito que seja um sonho comum a todos que apreciam a leitura. Desafio atual ? Esse livro.
