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Um encontro casual

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Esmeralda

Esmeralda

Madrugada. Damião saía sempre a essa hora para pedalar pelo Dique de Tororó. Era a única hora que tinha para praticar esse esporte. Estudava pela manhã; à tarde, trabalhava na Feira de Água de Meninos, ajudando o pai na barraca de frutas e, à noite, depois de realizar as atividades do colégio, costumava pedalar pela cidade, de preferência pelo Dique, pois ficava bem pertinho de sua casa. Nessa noite, corria um pouco mais do que o habitual. Cada pedalada exigia-lhe um esforço muito grande, tanto que já sentia os pedais da sua bike “ gemendo” e “ reclamando” . Estava exagerando, sabia disso, mas estava muito chateado com o que acontecera em sala de aula, tentava esquecer o que se passara, queria relaxar um pouco. Pôooo !!! bem à vista de Isabela! Logo na frente de Isabela.. não vai mais me encarar! Não pegou bem! Aqueles caras são muito chatos! pensava, enquanto pedalava. Quando lembrava da cena, colocava mais força nos pedais, e estes o impulsionavam a uma maior velocidade.Tomado pelo suor no corpo e no rosto, Damião seguia em frente. Queria correr, nessa noite... 13

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Dominado pelos pensamentos, não reparou uma pedra no passeio, tentou desviá-la, mas era tarde demais. Caiu em plena relva que margeia o Dique. - Nossa ! Que foi isso? Tõ no chão todo arrebentado?! Como pode ter acontecido isso? pensou. Uma ciclista do nada apareceu e perguntou: - Tudo bem aí? Alguma ajuda? perguntou a garota. - Tudo legal até agora! respondeu, não muito seguro. Levantou-se com dificuldade, as pernas ainda estavam trêmulas. Percebeu que havia sangue nos cotovelos e nos joelhos. Flexionou bem as pernas, os braços, as mãos e o corpo.Tudo aparentemente em cima, apenas arranhões e leves. Ufa!!! Que susto !! - Não quer ajuda mesmo? – insistiu a garota. - Não !!! respondeu, agora com mais firmeza. - Tá indo pra onde? perguntou. – Posso te acompanhar? - Precisa não, moro aqui pertinho, respondeu Damião - Não, mas quero mesmo te levar até a sua casa, pois pode ter algum mal-estar e está muito tarde para seguir sozinho depois dessa queda, respondeu a garota. - Tá legal, respondeu.Vamos seguir juntos, disse Damião. A bike estava intacta, ainda bem. Pensara em quanto fora custoso à família comprá-la. Seguiram juntos, porém evitou conversar com a garota, vergonha talvez, misturada com dor. Embora não soubesse ainda o nome, reconhecia que ela estava sendo muito legal. Foram pedalando, dessa vez bem lentamente, e cerca de uns 2 quilômetros dali do Dique chegaram à casa dele.Despediram-se trocando os contatos: endereços, e-mails, celulares. Chamava-se Dalila. Lindo nome, pensou. Manhã seguinte, Damião acordou moído. Corpo, braços, mãos e pernas, tudo era uma dor só, intensa e difícil de identificar qual a parte que doía mais.

Desistiu de ir à escola, tirou um dia de “ folga” tanto da escola, quanto do trabalho e do treino. Esse então nem pensar, sem condições mesmo, impossível. Tomou o café da manhã, acompanhado de analgésicos e pensou no que faria pela manhã. Logo de imediato, pegou o celular e ligou para o número do celular de Dalila. Pretendia agradecer mais uma vez o que fizera na noite passada. Não lembrava inclusive do rosto dela, pois sentira tanta dor que não se detivera a olhar bem para o rosto, ainda mais à noite e com o capacete, impossível lembrar da fisionomia, só da atitude. Difícil encontrar uma pessoa tão boa quanto ela. Ligou, mas infelizmente caiu na caixa, apenas ouviu a mensagem “ ...DEIXE SEU RECADO” . Deixou pra lá, falaria com ela em outra oportunidade, pensou. Sentou-se no sofá , abriu o computador para curtir um pouco o seu projeto:Tour de France. Sim, pretendia participar da Tour de France, a principal competição de ciclismo do mundo. Uma corrida anual que cobre aproximadamente 3.500 km, passando por França e países vizinhos como a Bélgica. Sempre acontece em julho. Esse era o grande sonho de Damião. Para a família, um sonho de menino; para os colegas, uma chacota. Esse tinha sido o motivo do aborrecimento na escola. Alguns colegas descobriram e revelaram na sala de aula, chamando-o de “ ciclista francês” . O riso de todos o machucara bastante, talvez até mais que os ferimentos no corpo. A vergonha, o desconforto o deixaram mal. E o pior, bem à vista de Isabela! A leitura foi bruscamente interrompida pelo som do celular tocando. Apanhou-o rapidamente, nem sequer olhou o painel para verificar quem o atrapalhava naquele momento.

- Alô ! Alô! Não ouviu nada. Sentiu apenas a respiração do outro lado da linha. Desligou. Ahhh...Vejo mais tarde quem me ligou, pensou, agora não! Passado alguns minutos, o telefone voltou a tocar. Dessa vez, olhou o painel antes de atender e havia registro de um número, para ele, totalmente desconhecido “ Ahhh... ! Que saco! Novamente esse telefone tocando, interrompendo a minha leitura. Não vou atender mais. Chega!!!! Falou bem alto. Colocou o aparelho no “ Silencioso” e continuou a examinar o seu projeto. Bem mais tarde, já cansado, adormeceu. O silêncio da casa e os analgésicos o relaxaram tanto que acabou dormindo. Não fazia ideia o quanto estava cansado e dolorido. Meia hora depois, seu sono foi interrompido com um som estridente da porta da casa. Assustado, levantou-se bruscamente. Sentiu o incômodo das dores nas pernas e braços, mas assim mesmo chegou até a porta principal da casa e a abriu, sem mesmo olhar quem era. - Oi!! Uma voz feminina doce e serena. - Oi. Desculpe, mas te conheço? perguntou. - ( risos ) Ah, desculpe meu atrevimento, mas não se lembra de mim? Dalila, respondeu. - Ah.. sim. Desculpe. Quer entrar? perguntou. . Só passei aqui pra saber de você? E aí? Tá melhor? - Um pouco. Analgésicos e descanso estão me ajudando. - É por aí mesmo. Bem, já estou indo... não posso demorar, e ainda por cima sei que precisa descansar, e muito. Até outra hora, falou Dalila. - Olhe, liguei pra você mais cedo no intuito de te agradecer mais uma vez, mas caiu na caixa. Mas valeu !!! Você foi muito legal mesmo, me acompanhando até a minha casa.Valeu, garota! 16

- A gente se vê por aí. Se cuide, garoto! E não desista de seu sonho, vai conseguir. disse Dalila. Despediram-se pela segunda vez. Damião, dessa vez, reparou o quanto Dalila era bonita. Na noite anterior, mal teve tempo para prestar atenção na beleza da menina. Achou apenas que tinha um olhar muito triste e pesado, embora transmitisse tanta esperança e força. Bem, vamos lá! A vida segue, falou alto. Pegou o celular, tirou do silencioso e olhou as chamadas perdidas e as mensagens recebidas. Inúmeras dos pais, preocupados, lógico, com o estado de saúde dele. Alguns colegas perguntando o motivo da ausência, nenhuma de Isabela. Primeiro, ligou para os pais, precisava avisá-los de que tudo estava melhorando na medida do possível. Em seguida, Isabela. Sim, ligaria para Isabela, a essa hora já estaria em casa, e provavelmente ela daria uma chance a ele conversando um pouco. Ligou. Isabela atendeu, mas não foi exatamente o que esperava. Ela o tratou de forma bem indiferente, inclusive informou que, devido à ausência dele no colégio, faria o trabalho de Geografia com Roberto. Sentiu a voz bem animada. Isso o deixou arrasado. Havia pensado tanto nela, preocupado com o ocorrido em sala de aula, no entanto não o considerou um pouco, nem ligou para saber se estava tudo bem. Desligou o celular com raiva. Chorou mansinho, estava mesmo desapontado, isso o deixara mais ferido ainda. Bebeu um copo d’água e sentou-se no sofá da sala.Triste, abriu o computador para ler as notícias. Nenhuma delas era interessante. Lembrou-se do que Dalila dissera “ .. não desista de seu sonho.. ” , daí resolveu percorrer a página de Ciclismo, Notícias, quando, de repente, leu a seguinte manchete:

-CICLISTA MORRE TRAGICAMENTE EM PLENO CAMPEONATO BRASILEIRO DE CICLISMO EM ESTRADA. - NÃO PODE SER!!!, gritava, alucinado, Damião. - BRINCADEIRA !!!, lia e relia, pois estava difícil de aceitar e acreditar. A notícia informava que Dalila Aragão havia sido atropelada durante o Campeonato Brasileiro de Ciclismo na Estrada, à noite. Uma atleta obstinada, admiradora do esporte, uma incansável batalhadora, vencedora de dois títulos já, cuja meta era participar da Tour de France. Logo abaixo, a foto dela ao lado da bike. - INACREDITÁVEL !!! gritava alucinado, Damião, sozinho na sala. Amedrontado e assustado com o que lera, fechou o computador apavorado. O silêncio da sala era devastador. O telefone toca: TRIM - TRIM -TRIM.

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