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Esmeralda
from Conte Que Eu Conto
Chama-se Esmeralda. Pedra incomum e valiosa. Sim, raríssima para muitos que a conhecem. Suas histórias correm, até hoje, pelo bairro. Generosidade, compaixão e alegria são grandes atributos dessa “joia” .Todos têm prazer em falar com e de Esmeralda, sobretudo residentes e vizinhos da área onde mora. Como é ela? Bem, uma senhora bastante agradável, disposta, de bem com a vida. Sempre tem uma palavra de conforto para quem se acha, por alguma razão, desanimado e triste. Como tudo, no entanto, apresenta dois lados, lá vai o defeito de nossa ilustre: adora observar, descobrir e saber a respeito dos outros, a verdadeira “comadre do século XXI” . Não utiliza muito as redes sociais, mas é ágil em bisbilhotar a vida do próximo para contar os “causos” depois. Mestra, admirável, exímia nessa arte! 20

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Adota por hábito sair às ruas para fazer compras, gerenciar suas atividades financeiras e conseguir materiais de trabalho; volta sempre com as mãos carregadas de pacotes e a cabeça repleta de novidades sobre pessoas do local onde vive, conhecidos, gente das cercanias. Mostra-se, com frequência, simpática, cheia de histórias e muito entusiasmo para contá-las. Um verdadeiro fenômeno! Mais: ama dar palpite em qualquer circunstância. Acha que pratica “boas ações” quando se mete, interfere, opina em assuntos os quais não lhes dizem respeito, mas de forma natural, com humor e simplicidade. Tenho ciência de muitas proezas de Esmeralda; coleciono-as, para melhor dizer. Garanto: surpreendentes, criativas, hilárias. Sempre me pedem que conte, pelo menos uma; recuso-me, pois ela me pede segredo – mas... Como segredo? Tantos já as conhecem... Não resisto, vou em frente e narro, aqui, algumas delas. Afinal, a esta altura, já é meu dever matar a curiosidade do caro leitor. Certa ocasião, segundo ela, em um armarinho - veja bem, o termo é “armarinho” , expressão antiga para designar um estabelecimento onde se vendem agulhas, linhas, botões, miudezas – surge, a seu lado, uma mulher bem “trajada” a qual solicita à funcionária fitas de todas as cores. De porte esbelto, olha todos com altivez; as mãos, finas; as unhas, compridas, bem feitas, pintadas; em cada dedo, um anel, não de ouro, mas de bom gosto. A madame dá umas batidas no vidro do balcão, em um sinal de pressa, fato que a destaca naquele recinto pequeno e simples. Sem demora, a atendente deixa, na bancada, os artigos solicitados pela fulana. Mas não é que, de repente, “não mais que de repente” , sobre o monte de fitas, das mais variadas cores, cai uma dentadura?

Acredite se quiser: a tal senhora, em apuros, leva à boca a placa de dentes postiços e, junto, um emaranhado de fitas para tentar sair da embaraçosa situação. Ainda por cima, a coitada com sacrifício, diz:“ Fou lefar todo o estoque. Ovrigada” . Isso Esmeralda conta com muito sabor. A melhor, mais atrevida e inusitada façanha passa-se em 2020. Espere um pouco! Antes mesmo de saber o fato, convém lembrar: trata-se do ano da pandemia! O mundo, doente; isolamento, palavra de ordem; todas as pessoas, em seus lares. Agora, trincheiras para dominar o inimigo invisível: o novo coronavírus. A população, em pânico, protege-se como pode e deve. Constante lavagem das mãos, máscara, álcool em gel são as principais armas para vencer esse vírus terrível, que tem dizimado muita gente em todos os cantos, inclusive no Brasil. Em meio a esse cenário, eis Esmeralda, descontente, solitária, distante das pessoas e, portanto, sem novidades. Sua família, preocupada, torce para que ela resista à tentação de sair de casa.Viúva, restam-lhe dois filhos e netos, que a cercam de carinho, amor e atenção.Tudo, no entanto, está diferente em razão do triste panorama geral. Esmeralda precisa afastar-se do mundo, um verdadeiro suplício. Sua condição de idosa a torna vulnerável, merecedora de cuidados, entretanto isso não a impede de procurar, como ela mesma diz, viver a vida... Lá vai Esmeralda, a andar pelo bairro, em direção ao banco onde recebe o benefício de aposentadoria. Parece tranquila, disposta e feliz. Afinal, depois de muito tempo plantada em seu observatório de trabalho, a janela, um breve passeio é uma satisfação e tanto! Veste-se de modo elegante, abandona robe, chinelos e deixa a casa, sorridente. No caminho, acena para os poucos amigos que, como ela, ousam estar nas ruas.

Não trocam abraços nem beijos, pois a forma atual de cumprimento vai, no máximo, a um “encontro de cotovelos” . – Mascarada! – diz ela a todos os amigos – Era só o que me faltava! Depois de velha, tenho que usar disfarce... Ao chegar ao banco, percebe a longa fila e a obediência à determinação de 1,5m de distância entre cada pessoa. Ela até gosta pois, assim, tem mais tempo para curtir e supervisionar os fatos em volta. Nisso, uma visão exótica, à frente, atrai Esmeralda. Ela chega a olhar duas vezes, pois não crê na chance de existir tão bizarra figura: um senhor exageradamente protegido. Ela observa, com atenção, pensa mais e conclui: – Desse jeito, nem o coronavírus o atinge! Valha-me, Deus! Para começar, peça de fibra a cobrir todo o rosto, já oculto por uma máscara que deixa livres apenas os olhos; não para por aí: como reforço, outra, de tecido, encobre a boca por completo; camisa social de mangas compridas; mãos guardadas por luvas plásticas; calças compridas com as bainhas cobertas por meiões até a altura do joelho; sapatos fechados, enfim, o sujeito não se permitia a exposição ao ar livre de um único centímetro de pele. Esmeralda finge indiferença.Vira para o outro lado, espia de canto. Resiste poucos minutos, aí não aguenta. Com jeitinho, aproxima-se do distinto cavalheiro, pede licença e pergunta: – O senhor está na fila para assaltar o banco ou quer só utilizar o caixa eletrônico? Não narro o que ocorreu depois, porque pode cair mal para mim. Deixo por conta de sua imaginação, caro leitor...
