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Um breve pulsar

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Mula Sem Cabeça

Mula Sem Cabeça

Já estava cansada de tirar a poeira daqueles objetos antigos da loja da madame Juliette. Que coisa chata! Todo dia a mesma coisa! Estava reclamando da atividade que fazia diariamente, quando a sineta de visitas tocou. Oba!!, pensei. - Alguém entrando. Finalmente terei companhia. Um senhor baixinho, cabelos e sobrancelhas grisalhos, os olhos bem caídos, como se não estivesse acordado ainda, lábios finos e trêmulos, se aproxima do balcão apoiado numa bengala e pergunta: - Procuro um relógio de bolso, qualquer marca, apenas quero que seja de bolso.Tem algum nessa loja? - Pois não, senhor.Vou verificar agora. Aguarde um pouco, pois essa loja tem um monte de objetos antigos. Passaram-se alguns minutos, quando retornei ao balcão já com um relógio em mãos e ai pude perceber melhor o meu cliente: usava um sobretudo marrom claro, segurava entre as mãos, já enrugadas, uma boina verde ou cinza que de tão surrada, já não sabia a cor, estava apoiado numa bengala, vestia calça preta e usava sapatos novos. O que me chamou a atenção foram os sapatos novos.

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Tinha encontrado um relógio de bolso nas prateleiras, de cor prateada, corrente fina bem enferrujada, desenhos imperceptíveis, mas o principal detalhe era que funcionava ainda. Juntos começamos a tentar colocá-lo em funcionamento. Os pequenos botões no lado direito do mostrador, embora gastos, foram rodados de forma lenta e gradual para, em seguida, acelerar o movimento. Grande foi a nossa surpresa, os ponteiros começaram a correr no mostruário. Ficamos satisfeitos, digo ficamos, pois àquela altura já estava torcendo para que aquele objeto esquecido voltasse a viver, a ter seus próprios batimentos. Foi um rápido momento de alegria! Notei que os olhinhos daquele senhor se iluminaram por um instante, como se entrassem em harmonia com o pulsar do velho relógio. Havia uma certa alegria e felicidade no instante em que percebeu que o relógio funcionava. - Quanto custa, por favor! Perguntou sorridente - Quanto acha que ele vale? Respondi. - Não sei. Afinal, você a dona do lugar.Você é que deve saber. Respondeu olhando fixamente para o objeto. - Quanto o senhor acha que vale esse relógio?, perguntei. - Posso pagar, então, a minha maneira? Não trouxe muito dinheiro.Tenho apenas alguns trocados aqui no meu bolso e quero entregar todo esse punhado a você. Pode contar para mim, por favor? No momento não estou com cabeça para contas. Retirou do bolso da calça aquele punhado de notas amassadas e o colocou no balcão. Comecei a contar as cédulas, quando fui interrompida por um gemido de dor. - O senhor está bem? Perguntei aflita. - Estou um pouco cansado, apenas. Andei muito para chegar até essa loja e estou meio zonzo. 8

- Venha sentar um pouco, por favor, vou pegar um copo d’água e já volto. Fique sentado aí. Fui até a cozinha da loja para pegar um pouco de água, confesso que estava trêmula, muito mais que aquele velhinho. Receava que alguma coisa acontecesse e não tivesse meios de ajudar. Voltei correndo e entreguei o copo d’água ao cliente. Suas mãos tremiam um pouco e, enquanto bebia a água, eu aguardava que tudo voltasse ao normal. Meu coração batia forte, num descompasso geral, amedrontada com a cena e olhe que já trabalho aqui há um bom tempo e nunca ninguém tinha tido um mal-estar. Meu Deus! Justamente no dia em que Madame Juliette está fora, viajando para fazer compras, pensei. Depois de alguns minutos, percebi que ele já estava um pouco corado, e a respiração normal. Resolvi puxar conversa, saber do seu nome, da sua história, do seu interesse pelo relógio de bolso, então arrastei uma cadeira e sentei-me ao seu lado. - Melhor agora? Perguntei. - Sim. Muito obrigado.Você foi muito gentil e atenciosa comigo. Um fato raro de acontecer hoje em dia. - Não foi nada, senhor. Qual o seu nome? - Eu me chamo Apolônio Nogueira Lima, tenho 83 anos e moro no Asilo Santo Antônio, no Largo de Santa Teresinha. - Ué... mas é tão longe daqui. Como chegou aqui? Veio sozinho? Táxi? Ônibus? - Ah... minha filha, que nada! Ando sozinho no mundo há muito, desde que Rosália, minha amada, me deixou. Ela morreu, sabia? Infelizmente, não tivemos filhos, nossos parentes também já se foram, por isso moro no Asilo com os meus amigos. Sim, hoje eles são a minha família. - Que bom saber disso! Percebo que gosta de estar com eles. 9

- Ué... e não é para estar? Se sou sozinho nesse mundo de Deus. - Como descobriu a nossa loja? Indaguei. - Uma longa história. Se tiver tempo, posso contar... respondeu Como não havia ninguém na loja, e ainda preocupada com o estado dele, resolvi ouvir as lembranças de Apolônio, na esperança de que saísse da loja mais seguro e firme. - Há muito fiquei viúvo de Rosália, como já te disse. Fomos casados e felizes por muito tempo. Mas "nem tudo são flores" , como diz o ditado. Passamos por uma fase financeira muito difícil, um tempo aí que não me lembro, foi quando Rosália, para ajudar, resolveu, calada, vender o meu relógio de bolso. Só que ela não sabia que, nesse relógio, em uma parte móvel, eu havia colocado o retrato dela. Gostava muito de ficar olhando o retrato dela, quando podia... assim como vocês, jovens, fazem hoje, sempre olhando a tela do celular. Eu... o mesmo, só que para a minha Rosália.Tão bonita! - Pois bem, continuou... Assim que ela morreu, resolvi guardar algumas lembranças dela e percebi que havia perdido todas as fotos, inclusive a do nosso casamento, só restando uma, justamente a que estava nesse relógio. Como ela não me contou onde vendera, resolvi, então, andar pela cidade toda, entrando e saindo em várias relojoarias e lojas de antiguidades em busca desse relógio. - Não está vendo os meus sapatos novos? Pois é.... meus amigos do asilo me deram de presente, pois eu já gastei tantos pares de sapato atrás desse relógio.Você não imagina! Agora estou aqui conversando com você e, cansado, e já sem a menor esperança e de abrir e encontrar o retratinho dela. Mas sei que esse relógio é meu! Eu soube exatamente no momento em que você o trouxe aqui no balcão. 10

Fiquei parada, sem saber responder muito menos como incentivar aquele senhor a levar ou até mesmo a abrir para verificar se havia ou não a foto. De repente, ele disse: - Ué... por que não abrir logo? Que coisa! Está me faltando força ou coragem?! Andei tanto à procura dele e agora que, finalmente, eu o achei... Respirou fundo e começou a abrir. Não tinha muita força para remover a parte onde se encontrava o retrato, mas depois de algumas tentativas, finalmente começou a mover-se. Ele me olhava a cada minuto, não pretendia ajudá-lo, pois aquele era justamente o momento mais esperado daquele senhor. Apenas o observava. Nisso, uma ponta de um papel aparece entre as partes do relógio. Ele ofegou... será? Deve ter pensado isso, pois até eu mesma pensei na esperança que surgisse a Rosália. Lentamente a parte foi removida e, então, um papel já gasto, amarelado com uma imagem surgiu. Olhei bem para ele. Estava radiante. Seus olhos brilhavam de alegria e, imediatamente, duas pequenas lágrimas rolaram. Mal conseguia enxergar o que havia naquele papel. - Veja! Olhe, encontrei, finalmente, a minha Rosália. Tamanha era a alegria daquele senhor que peguei o relógio e olhei bem para aquele pedaço de papel. Quase não via a imagem, apenas uma silhueta, mas respondi, vibrante, como se a conhecesse. - É ELA MESMO !!! Abracei-o. A emoção era grande ! Havia encontrado a sua amada. Será?! Levantou-se, calmamente, colocou o relógio no bolso e saiu. Na porta, acenou para mim . Eu não o veria mais, sabia disso! Nem ele, muito menos a sua amada.Virei-me. Na loja, apenas as cédulas amassadas em cima do balcão.

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