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Mula Sem Cabeça

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Um encontro casual

Um encontro casual

A mula-sem-cabeça

Doze batidas no relógio da praça de Vila do Verde.Todos dormem, menos Elias. Ele atravessa a rua a passos decididos, rápidos e seguros.Tinha que estar lá, pensava.Tudo foi, em detalhes, combinado com os amigos. Não pretendia, então, decepcionar o grupo. Encontro tão bem marcado, assunto para lá de sério, não queria“ dar bolo” nos outros. Afinal, trato é trato. Como já está claro, um compromisso muito importante, logo não chegaria atrasado, e ponto! Elias é um jovem muito conhecido no Vale do Verde.Tem por prática tratar todos da vila com grande atenção e cuidado, sem levar em conta a idade dos mesmos: crianças, jovens, adultos, idosos... Estes, então, recebem um enorme carinho. Além disso participa, ativamente, de todos os problemas do local, para ajudar a resolvê-los, gosta de emitir opinião e ser útil para quem necessita. O tempo e a paciência são companheiros e aliados desse rapaz. Até contam por lá, futuramente, pela vontade do povo, ele há de ser o prefeito.

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Elias desce, agora, a mais extensa rua do Vale, totalmente deserta, levanta a cabeça bem para o alto, observa o enorme e antigo relógio central. Exatamente meia-noite, os ponteiros acham se bem unidos como se existisse apenas um. Ligado só no tic-tac das horas, ele não percebe infelizmente, que um vulto se esconde próximo ao coreto. A praça de Vila do Verde é bastante ampla, agradável e arborizada. Destaca-se pela simetria na disposição de canteiros bem floridos, piso cimentado e bancos na cor azul. Lugar ideal para acolher gente das mais diversas faixas etárias, sobretudo crianças em busca de novidade, algazarra ou relaxamento. Estas se reúnem, no final da tarde, para andar de patins, bicicleta, ou ainda, ouvir, periodicamente, as apresentações da banda filarmônica Unidos de Vale do Verde, de grande representatividade e fama não só no vilarejo, mas também nos arredores. Ele prossegue a caminhada pela Rua do Cedro. Em Vila Verde, quase todas as ruas têm nome de flores ou árvores brasileiras: Rua da Violeta, das Orquídeas, do Ipê Amarelo, Jacarandá, Aroeira, isso porque Vale do Verde se localiza em uma região montanhosa, bem pertinho da Serra da Mantiqueira. Especifimente, cerca-se de montanhas e é banhado pelo Rio São Pedro, um dos afluentes do Jequitinhonha. O nome Vale do Verde deve-se a seus primeiros habitantes, encantados, desde o início, com a exuberante paisagem. Em Vale do Verde, o verde predomina, pois existem diversos tons dessa cor, mérito das inúmeras vegetações que embelezam esse paraíso; além delas, as flores do campo se espalham e ofertam um lindo cenário a pintores e amantes da natureza. É uma bênção viver em Vale do Verde! Elias continua na Rua do Cedro, ainda calçada por paralelepípedos, rumo ao destino. 26

Nesse exato momento, dobra à esquerda e segue pela Rua das Margaridas. Apesar de tenso, sente o aroma dos jardins pois, em quase todas as casas do Vale, eles existem; quando não, veem-se, ao menos, pequenos vasos sobre o parapeito das janelas, e o perfume exalado por eles é, pode-se dizer, magnífico. A natureza tem sido muito generosa com Vale do Verde. Nada tão bom quanto o cheiro do mato fresco, o barulho dos riachos transparentes e das cachoeiras refrescantes! Ah, os banhos gostosos, frios e saudáveis... Como se não bastasse, em Vale, é possível saborear os melhores queijos produzidos na região. Por esses e outros bons motivos, os habitantes sempre afirmam: vale viver no Vale do Verde! O disposto Elias acha-se em frente ao local. Está escuro, não muito, é verdade, pois as luminárias dos postes e a Lua Cheia ajudam o garoto a andar com certa segurança. De repente, contudo, escuta passos. O ritmo do coração acelera. Muito nervoso, ele pensa:“Será Joel? Eugênio? Augusto? Afinal, todos se encaminham à mesma direção... Nós marcamos um ponto, só não sei o percurso que eles traçaram para atingi-lo. Vou checar. ” Detém-se por uns segundos e olha para baixo. A Rua das Margaridas é, exatamente, uma ladeira bem íngreme, e Elias posiciona-se no topo. Espia mais uma vez. Nada. Apenas o temor, o silêncio e o frio. Acelera os passos e, finalmente, alcança o local desejado. Em instantes, coloca-se em frente a um desgastado portão, meio acinzentado e escuro, talvez por sujeira ou descaso. Há cadeado e correntes cheias de ferrugem, mas está aberto; aliás, sempre assim, por isso não fazem sentido a tranca e as argolas de ferro tão estragadas. Ao entrar, assobia de leve, e algumas cabeças surgem das velhas tumbas. Sim, tumbas. A reunião dos amigos deve ocorrer no cemitério do vilarejo, em 27

plena noite de lua cheia, portanto repleta de fatos amedrontadores. Elias e seu grupo, os mais destemidos da Vila do Verde, aventuram-se, arriscam-se para desvendar o que vem, há muito, assustando os habitantes locais: a mula-sem-cabeça! Isso mesmo, a mula-sem-cabeça! Espalharam um boato de que ela tem rondado o vilarejo; inclusive muitos, às quintas-feiras, recolhem-se bem cedinho com medo de se deparar com a criatura; outros afirmam ter visto a estranha imagem no cemitério. Esse boato se expandiu tanto que ninguém mais arrisca visitar, nas quintas e sextas-feiras, os túmulos dos parentes mortos. Mais do que isso: velório e enterro, nesses dias, nem pensar! Até o padre já não consegue esconder o temor de bater-se, por azar, com a tal figura. Pois bem, é preciso explicar para quem não conhece: a mula-sem-cabeça é um personagem do rico folclore brasileiro. Diz a lenda que, na verdade, é o fantasma de uma mulher amaldiçoada por Deus pelos pecados cometidos por ela. Sua condenação foi transformar-se em uma mula cuja cabeça seria substituída por fogo. Além disso, nas noites de quinta e sexta feira, quando Lua Cheia, ela galoparia incansavelmente. Em Vila do Verde, ninguém se atrevia a esmiuçar a incrível história.Todos respeitavam, à espera de que dona mula-sem-cabeça se cansasse de cavalgar pelo vilarejo e partisse para outras redondezas. Como eles mesmos afirmavam, tudo seria uma questão de tempo. Com Elias, no entanto, era muito diferente. Queria investigar, tirar “a fundo“ essa lenda, a qual achava nada além de uma popularesca crendice. Com tal finalidade escolheu, a dedo, os parceiros mais corajosos, espertos, valentes. Plano traçado. Agora, avante! É, então, quinta feira, noite de lua cheia e, no 28

macabro local, os meninos estão dispostos a aguardar a aparição do bicho horroroso para destruir o encanto.Segundo a narrativa, é necessário espetar o animal até que dele comecem a pingar gotas sangue. Eis os bravos amigos, no cemitério de Vila do Verde, fartamente “armados” com espetos na mão, decididos a afugentar, do lugarejo, a indesejável mula-sem-cabeça. - Trouxeram o celular? – perguntou Joel, bem baixinho. - Lógico. Qualquer coisa, a gente liga para nossa casa, respondeu Augusto. - Pelo visto, você vai amarelar, amigo!- Sentenciou Eugênio. - Psiu! Por favor, falem baixo. A lanterna do celular vai ser útil, porque aqui está muito escuro. Não discutam! Temos que nos esconder, isso sim! – ordenou Elias. - Vamos andando devagar! – falou Joel. Na baixa claridade, seguem os quatro, a passos miúdos, em busca de lugar “seguro“ . Acomodam-se debaixo de uma árvore frondosa. Por ser noite, eles não percebem que se trata de uma mangueira carregada de frutos. Sentados, mostram-se ansiosos, tensos, em real expectativa. Não querem trocar palavras, talvez estejam com medo ou, até mesmo, pavor. A “ficha cai” , pois eles, na verdade, não sabem como quebrar o encanto da mula-sem-cabeça. Precipitaram-se, mas agora não podem retroceder. - Vamos falar pouco, para não fazer barulho e prestar mais atenção ao ambiente! – disse Elias. - C...E...R...T... O ! – assentiram todos. O silêncio é quase total; o frio, terrível! Só se ouve o barulhinho das folhas levadas pelo vento e, de vez em quando, o pio da coruja. O ambiente, desse modo torna-se, cada vez mais, assustador.Tudo parece muito sombrio, mórbido, sinistro... Os jovenzinhos carregam, nas mãos, um espeto e um celular... 29

Não conversam nem poder sair do local úmido, esquisito e, literalmente, fúnebre onde estão... Difícil! Ah, difícil mesmo! Passados alguns minutos, para eles uma eternidade, escutam passos largos, pesados e fortes. Sem a menor dúvida, não da mula, mas de um alguém qualquer. Sem demora, um flash de luz vem em direção à mangueira. Eles conseguem ver apenas botas masculinas de cano longo. O clarão encobre, por completo, o rosto do indivíduo, e os garotos não enxergam quem é a pessoa. Eles, instintivamente, pegam os celulares, acionam os mesmos e tentam iluminar a figura. Não obtêm êxito, pois os diversos clarões se cruzam em uma batalha confusa de jogos de luz que mais parece uma cena do filme Guerra nas Estrelas, de Steven Spielberg. De repente, uma voz grave surge em meio ao confronto das lanternas. - Quem está aí? Eles, a essa altura, já apavorados, temem o pior. Resolvem, portanto, nada responder e desligar os aparelhos. Nisso, ouvem um barulho repentino e, ao mesmo tempo, cheio e oco. Algo, então, incide sobre os meninos. É a gota d’água. Eles transpiram apesar da frieza noturna. Levantam-se de uma só vez e, aos gritos, começam a correr, desbragadamente, sem olhar para trás. Tudo quanto se conta e se sabe, no Vale do Verde, é que o assunto transformou-se em piada. Isso porque Alfredo de Lima, o vigia do cemitério, pediu à pequena rádio local o anúncio de uma interessante ocorrência. O locutor, a quem o homem devolveu os objetos, divulgou assim: ”Foram encontrados, embaixo de uma inocente mangueira, quatro espetos de churrasco seminovos e quatro bons aparelhos de celular. Os donos podem reaver seus pertences diretamente com este que aqui vos fala. ” 30

O homem das botas de cano longo não citou as mangas despencadas durante a noite, pivô, aliás, do desfecho do caso. Afinal, é bem corriqueiro caírem frutas maduras do pé... A propósito, e a mula-sem-cabeça? Alguém, por acaso, tem notícias dela? Quem sabe, até foi embora depois do susto que ela também pode ter levado dos rapazes de Vila Verde... Estará em outro vilarejo para espantar os pacatos moradores? Bom. Uma coisa é certa: Elias, Eugênio, Joel e Augusto não têm mais interesse em saber.

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