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Meus cata-ventos
from Conte Que Eu Conto
Sempre o mesmo desenho, o igual brinquedo. Era sua diversão favorita, grande alegria e enorme felicidade: construir cata-ventos. Por que exatamente isso? Ninguém sabia até que, em uma tarde qualquer...

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Menina, corria nos campos para ver o cata-vento girar, às vezes acelerado; outras, não. Gostava, sim, do sopro de ar refrescante, queria senti-lo no rosto, nos ombros e, sobretudo, apreciar a mistura dos tons quando as pás do objeto moviam-se rapidamente. Seu maior lazer era dar forma a eles com “matérias primas” achadas no chão dos parques, das praças e ruas. Levava-as para casa, onde arrumava as varetas e, à noite, sozinha, fazia inúmeros deles.
Não havia, no quarto, boneca, fogãozinho, panela de faz-de-conta, somente uns livros de histórias infantis e um Manual do Inventor. Seus cata-ventos eram, na maioria, coloridos e diversificados; alguns poucos de única cor; viam-se uns fabricados a partir das folhas de jornal encontradas. Paixão, uma paixão cujo porquê nem ela mesma explicava. Apenas tinha certeza: eles eram amigos com quem se sentia à vontade para conversar e dividir contentamentos, esperanças e risos nas horas noturnas que, prazerosamente, perdia a montá-los. Luna era seu nome. Filha única, perdera a mãe cedo e vivia com o pai, Astolfo, um pequeno construtor da cidade. Ele, embora sofrido pela morte prematura da esposa, era muito paciente, compreensivo e respeitador da mania supostamente incomum da garota. Até “curtia” bastante as obras de Luna, pois tinha certeza: no futuro, a mesma se tornaria uma engenheira eólica de primeiríssima mão. Ele sabia, era o modo de ela sentir-se feliz. Assim, nunca indagava os motivos daquele prazer proporcionado a ela pelos tantos cata-ventos criados. Nada falou nem quando ela decidiu colocá-los, estranhos, esquisitos e numerosos, nas áreas abertas da casa onde, pacificamente, viviam. Não devo interferir, pensava Astolfo, é esse o jeitinho dela... Luna tinha apenas um medo: a chuva. Em dias de provável tempestade, ia à varanda descoberta apreciar as nuvens e medir a velocidade do vento enquanto a água não desabava do céu. Quando os primeiros pingos caíam, recolhia os preciosos inventos rapidamente e guardava-os no quarto para “replantá-los” no dia seguinte. Os vizinhos e moradores da cidade achavam a residência de Astolfo bem misteriosa e chamavam-na de “Casa dos Lunáticos“ por conta dos vários cata-ventos no terraço e jardim. 43

A impressão de todos era esta: a qualquer instante, mesmo sem asas, o imóvel poderia voar. Como se não bastasse, durante as madrugadas, as luzes permaneciam acesas. Isso dava à moradia um aspecto de nave espacial. Na verdade, dentro dela, os construtores - pai e filha - não paravam de trabalhar, indiferentes ao bater do relógio. Assim cresceu Luna, e a fama espalhou-se até que a adolescência, fase temida por quase todos os seres mortais, bateu-lhe à porta. Difícil arte, a de conviver! Escola, colegas, professores...Tudo, enfim, parecia-lhe um grande desafio, e foi. Estar na escola mostrava-se para a menina um sacrifício imenso embora gostasse muito de estudar. Os colegas a julgavam “diferente” , pois ela vivia a conceber, desenhar e produzir cata-ventos. Isso já era motivo para ser alvo de críticas. Na sala de aula, era um riso só; o recreio... Ah... Era o pior momento para ela, pois ouvia, calada, piadinhas inconvenientes, de mau gosto e sem graça. A menina, porém, resistia a tudo e, apesar do desconforto, não se deixava abater.

Os professores - fiéis aliados e escudeiros - estavam sempre a postos para defendê-la das gozações as quais, inocentemente, faziam para perturbá-la. Nada disso, entretanto, desanimava a pequena, cuja personalidade se destacava, no grupo, pela notória altivez. Passou, em um relance, o tempo. As fases, como sempre acontece, trouxeram mudanças à vida daquela jovem cheia de ideal. O sonho de Luna foi interrompido bruscamente. Hoje, adulta, ela tem conhecimento do que armaram para destruí-lo. Lembra-se, com certa mágoa, do dia no qual tudo em sua vida transformou-se. A ocorrência em si ela recorda, mas sem a clareza dos detalhes. Melhor assim! 44
O correr do tempo, sabiamente, apaga da memória a nitidez dos fatos embora as marcas dos mesmos permaneçam, às vezes, dolorosamente, como se deu com ela..
Quase já o encerramento das aulas e, com ele, a expectativa da Feira de Ciências. Ah! Uma verdadeira festa, causa de imensa alegria e, também, disputa para as apresentações dos trabalhos feitos no decorrer do ano letivo.Todo o colégio em preparo para mais um grande evento. Os alunos participavam, entusiasticamente, na montagem das barracas com o fim de expor e explicar os engenhos. Luna recorda que, na Feira, havia outras modalidades, como: teatro de marionetes, coral de vozes, peças de autores da literatura nacional e estrangeira... Um verdadeiro mosaico pedagógico que despertava a motivação nos alunos e atraía, em massa, os moradores da região. Procura tirar da lembrança as ocorrências passadas em sua turma da escola, mas sem muito sucesso. Sempre lhe vêm à memória os gritos dos companheiros e as tentativas da professora em acalmá-los enquanto fazia a divisão dos grupos. Luna, de fora... Ninguém queria trabalhar com ela! Dos assuntos escolhidos ela não se esquece: Energia Solar, Robótica, Energia Eólica... Esse último, seu tema. Pretensão da aluna? Fabricar um minigerador eólico e exibi-lo na esperada Feira de Ciências. Obra. Orgulho. Esplendor. Tinha-se preparado, com afinco, para esclarecer a todos os interessados o conceito do que estudara: a transformação da energia do vento sem benefício prático em útil. Pensava, também, em informar sobre o uso da Energia Eólica, desde a antiguidade, a fim de mover barcos impulsionados por velas ou 45

fazer operar a engrenagem dos moinhos ao mexer das pás.Tencionava, ainda, explanar quanto ao valor da citada energia na moedura de grãos e drenagem de canais sobretudo nos Países Baixos (Holanda do Norte, do Sul e províncias). Tudo isso tão planejado por ela... Havia material bastante para a demonstração: os cata-ventos. Infelizmente, os colegas acharam por bem que ela se apresentasse sozinha, pois não confiavam muito naquela bizarra colega ou em sua teimosa loucura. Corajosa, ela aceitou. Isso, não por vaidade, mas por crer na relevância de sua tarefa. Para tanto, recebeu apoio, carinho e incentivo dos mestres. Guarda a indescritível emoção de dizer a Astolfo sobre o “show” escolar. Seus olhos, hoje de adulta, ainda lacrimejam se essa recordação a invade. Rememora quando, para evitar dor ao pai, afirmou tratar-se de um trabalho a ser feito por ela sozinha quando, na verdade, tinha sido, para melhor falar, rejeitada pelos colegas. Solicitou-lhe, delicadamente, uma interferência com a ressalva de que só ele poderia ajudá-la. A partir dali, um empenho a quatro mãos deu, pouco a pouco, forma concreta, elegante e perfeita à ideia de Luna: um minigerador a ser exibido, de forma exemplar, nos dias da Feira de Ciências da escola. Véspera. Luna não dormiu direito, pois era grande a ansiedade. Levantou-se quase ainda no escuro, tomou café pingado de leite e comeu metade de um pão. Subiu ao terraço, retirou de lá os cata-ventos e guardou-os, em uma gaveta da cômoda, no quarto. Isso ela, de fato, tem registrado na mente. Saiu em direção ao colégio para concluir, junto com a professora, a montagem da barraca da exposição. Ambas levaram a manhã e algumas horas vespertinas em intenso trabalho a fim de deixar tudo em ordem, pronto, a 46

postos para o dia seguinte. Em certo momento, já cansadas, tiveram a fantástica visão do pátio em total alinho, bonito como em traje de festa. Quanta felicidade! Quando se despediu da mestra, deu-lhe um abraço e agradeceu a ajuda – até esse ponto, Luna recorda . Caminhou em direção a casa. Durante o percurso, sentia-se bem e muito, muito feliz. A tarde corria serena, todas as coisas, enfim, estavam perfeitas. A garota pensou:“Ao chegar em casa, não vou receber a saudação de meus cata-ventos! Que pena! Estarão presos na gaveta até amanhã... ” Esboçou um sorriso. Repentinamente, uma mudança brusca na paisagem deixou a menina em choque. O olfato alertou antes da visão, pois começou a espalhar-se um cheiro de queimado, mais forte à medida que ela acelerava os passos. Pouco depois, altas chamas a fizeram, temerosa, apressar-se. A seguir, já em desespero, seus gritos:“INCÊNDIO! NÃO... NÃO PODE SER... ” As labaredas subiam ante o pavor de Luna. Incrédula, via sua casa arder em fogo. Onde antes havia beleza, suavidade, cores, restava a tragédia. Junto a isso, as vindouras cinzas de um lar, a morte de sonhos e o desmanchar-se de cata-ventos que não girariam mais. Dentro de Luna, o terrível cenário nunca se desfez.Volta e meia desenrola-se, em sua cabeça, esse filme, e ela enxuga as gotas de lágrimas que lhe umedecem o rosto. Nem mesmo o minigerador foi poupado, pois o maldito dragão o engoliu, sem pena, também. O fato, mal esclarecido provoca, assim, até hoje, uma dúvida atroz embora ela e o pai hajam suposto: o desastre nasceu de uma brincadeira infeliz. Dos tenebrosos momentos, uma grande marca. Ecoa, ainda, nos ouvidos de Luna a frase do pai:“Querida, não podemos desistir agora! Vamos recomeçar... ” Por não terem como 47

permanecer no local onde a tragédia se deu, foram viver em uma cidade próxima. Ele, na verdade, partiria do zero, mas não lhe faltavam talento, determinação e fé. Astolfo sempre foi para a menina um amigo leal, dedicado e presente.A velhice chegou para ele sem tirar-lhe a esperança de rever a terra natal. Seu desejo, no entanto, não se cumpriu, porque ele, faz tempo, transformou-se em estrela. Já diplomada em Engenharia Eólica, ganhava destaque não só no estado, mas também no país, graças ao admirável nível profissional. Era sempre chamada a compor congressos, simpósios, estudos pertinentes a seu campo de ação e a fazer palestras para acadêmicos em faculdades diversas. Enfim, Dra. Luna de Assis Medeiros inspirava merecido respeito.
Cada existência, um destino. Aos 53 anos, uma grande surpresa da vida! Luna acaba de experimentar momentos de glória. Há pouco, esteve na cidade de origem para receber do Diretor da Universidade uma Menção Honrosa. Isso, como prêmio de um trabalho feito por ela e reconhecido nacionalmente. O tema? “Geração de Energia Elétrica a partir de Fonte Eólica. ” A solenidade ocorreu no amplo auditório da Reitoria. Nas fileiras da frente – tudo bem combinado - estavam os antigos colegas de escola. Cada um deles segurava um cata-vento, o qual foi entregue a Luna, após o ato solene, junto com um abraço fraterno. Nada mais era preciso dizer. O tempo, como diz todo o mundo, voa! Hoje – já aposentada, 65 – sua admiração aos cata ventos persiste: estes ainda alegram sua vida, sua casa, o terraço e jardim. Quem sabe, um dia, ela lhe conte a história...
