
6 minute read
Histórias de um velho senhor
O Rio Belém é considerado por muitos curitibanos um legítimo ícone da capital paranaense: viu a cidade nascer, acompanhou (e sustentou) o seu progresso e hoje sofre os efeitos dessa passagem do tempo. Mas as novas gerações ainda reservam um sopro de esperança para o “velho senhor”
Por Roberta Gonçalves
Ele não é mais o mesmo. Há muito, muito tempo, viu crianças brincando a seu redor, refrescou tardes de verão e conduziu a sobrevivência de muitas gerações. Mas um dia participou de um nascimento que mudaria para sempre seu curso de vida: o surgimento de Curitiba. O Rio Belém foi o provedor das primeiras habitações, igrejas e comércio da cidade, como normalmente se iniciam as aglomerações urbanas. Na década de 1950, acompanhou o alargamento de avenidas, a construção da Praça Rui Barbosa e empreendimentos como a Rodoviária Velha e o Mercado Municipal. Assistiu à estruturação do transporte urbano e interurbano, como a litorina que liga Curitiba a Paranag
crédito: Beatriz Theiss
Ponte sobre o Rio Belém nas imediações da Rua Canal Belém e Rua das Carmelitas.
“Cada vez que passo ali, onde nasci, me vem um filme na cabeça.” – Carlos Cella, fotógrafo
crédito: Site Curitiba Antiga

guá, antiga motriz. O maquinista Gonzaga Cella, que aparece de chapéu na foto, dirigia uma dessas motrizes e foi um dos primeiros “empreendedores” na modificação do espaço do Rio Belém: construiu uma pequena ponte (pinguela) sobre o rio – esquina da atual Avenida Visconde de Guarapuava com a Rua Mariano Torres – com direito a foto de inauguração. O fotógrafo Carlos Cella, filho de Gonzaga, fala com nostalgia daquela época: “Cada vez que passo ali, onde nasci, me vem um filme na cabeça”, lembra-se, saudoso. “Era uma pingulea estreita. Meu pai a construiu para facilitar a passagem das pessoas que moravam por ali”, explica.
Enchente
Eliane Vieira, professora de ensino fundamental, é outra que convive com boas histórias do Rio Belém. Sua família, moradora do bairro Barreirinha há 60 anos, assistiu a cenas que só existem na memória dos pais e dos avós da professora: “Eles contam que os moradores pescavam, nadavam e até passeavam de canoa”. Eliane lembra, porém, que nem sempre a situação era tão tranquila: “Quando chovia muito, as ruas sempre alagavam. Isso até a década de 1990, mais ou menos”. Mas foi Christiane Chioppo, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), quem realmente sentiu a fúria do “velho senhor” de perto, durante uma enchente, em 1975, que inundou a rua Mariano Torres “Naquela época, eu estudava no Colégio Estadual do Paraná, na Avenida João Gualberto e, no retorno para casa, passava pela Mariano Torres”. Christiane relata o pânico que sentiu ao ver a cena: “Quando cheguei à praça em frente ao Círculo Militar [Largo Bittencourt], percebi que não havia como passar: a água estava na altura dos joelhos. Fiquei assustada, com medo que a correnteza me carregasse”.
De lá pra cá, muitas águas correram pelo rio até que chegassem, em 1992, à beira da casa de Gessimiel Fabricio, serralheiro que vive no bairro Uberaba. As reminiscências de Fabrício, contudo, não lembram nem um pouco o saudosismo de Carlos Cella. E, se Christiane tinha medo de ser levada pela correnteza das águas, o serralheiro teme ser levado pela correnteza de lixo: “Se é que um dia foi limpo, isso foi muito tempo atrás. Quando vim morar aqui, em 1992, o rio já era muito sujo. Toda a sujeira do IML [Instituto Médico Legal], por exemplo,vem para cá. E quem mora na beira do Belém, como eu, não suja. Quem polui são as pessoas que moram longe. Cansei

crédito: Mario Spaki

Rio Belém acompanhou a formação da cidade.
de ver as pessoas jogarem sacos de lixo de dentro do carro para dentro do rio, de cima da ponte”, revolta-se.
Carlos Garcia, professor de Engenharia Ambiental da PUCPR concorda com Fabrício: “O rio não é um canal para condução de esgotos dos moradores que não cuidam da cidade. Ele era limpo até a cidade de Curitiba se instalar às suas margens.”, lamenta-se. Em nota, a assessoria da Secretaria Municipal do Meio Ambiente informa que está em fase de elaboração o Projeto de Gestão de Risco da Bacia do Belém, dividida em 23 sub-bacias.
O bairro Uberaba, conforme dados da assessoria, possui parte de três sub-bacias e, a medida que o projeto avança, também será atendido.
“Quando uma população começa a usufruir das águas de um rio, começa o processo de poluição das águas.” – Marcelo Sutil, pesquisador crédito: Mario Spaki
Progresso e meio ambiente

O pesquisador da Casa da Memória da Fundação Cultural de Curitiba Marcelo Sutil faz uma reflexão de como a situação teria chegado, do nascimento da cidade até as queixas de Fabrício e Garcia: “A partir do momento que uma população começa a usufruir das águas de um rio, seja para lavar rou Gessimiel Fabrício: mora a poucos metros do Rio Belém.
pas, animais ou despejar dejetos, começa o processo de poluição das águas. Se pegarmos as ordenações escritas pelo Ouvidor Pardinho, na década de 1720, para Curiitba, já vamos localizar itens referentes às questões da limpeza das ruas e das águas.”, explica. Sutil destaca ainda momentos em que a participação do Rio Belém teria sido preponderante para o surgimento da cidade: “É importante lembrar que não só o núcleo central de Curitiba se formou à beira do rio, mas ao longo do seu curso, no passar do tempo, pequenas propriedades surgiram aproveitando a água para o cultivo e o trato dos animais, bem como estabelecimentos fabris também se localizaram. No caso do Rio Belém, podemos lembrar do antigo curtume e fábrica de cola que se transformou em um Centro de Criatividade.
Christiane Chioppo, que é doutora de Educação em Ciências e autora de trabalhos científicos em Educação Ambiental, analisa os impactos do progresso sobre o meio ambiente, lembrando que, antigamente, as prioridades eram outras: “A preocupação inicial da sociedade moderna foi com a energia elétrica. Estudos da história e da arquitetura mostram que os rios eram considerados lugares naturais para emissão dos dejetos e, por isso, as casas eram construídas com suas fachadas viradas para o lado oposto aos cursos d´água. Nos fundos, ficavam as ‘cloacas’, com os esgotos cinza e negros caindo diretamente nos rios, que eram considerados emissários naturais dos dejetos. Discussões sobre preservação ambiental vieram somente depois”, esclarece.
Esperança
Mas as novas gerações ainda guardam uma esperança para o “velho senhor”. A professora Eliane Vieira atuou no projeto Aprendendo
crédito: foto/ divulgação

Projeto Aprendendo Educação Ambiental: consciência de preservação para as novas gerações.
Educação Ambiental com o Rio Belém, com alunos do 6.° ano, entre 2002 e 2010, em uma escola de seu bairro. O projeto estimulava os alunos a desenvolverem atitudes ambientais adequadas para minimizar os impactos negativos sobre o Rio Belém. “Em alguns trechos, percorríamos o trajeto a pé; em outros, íamos de ônibus fretado.
“Gostaria de ter Descíamos em pontos predeterminados para tido a oportuniobservação e análise ambiental”, explica. dade de admirá- E é assim, vivendo entre o -lo mais de perpassado e o futuro, que Eliane transita entre to e ter brincado as memórias do rio, narradas pelafamília, e as em suas águas.” (belas) histórias que pretende fazer os alunos – Eliane Vieira, escreverem, revelando seus anseios: “Gosprofessora taria de ter tido a oportunidade de admirá-lo mais de perto, ter brincado em suas águas e molhado os meus pés”. Presente nas recordações de infância de Carlos Cella, o “velho senhor” Belém também é capaz de provocar reações eufóricas, desembocando em declarações apaixonadas: “É uma história única, que faz parte da cidade e não pode morrer em nenhum de nós”, desabafa o fotógrafo.