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Na calada da noite

Alessandro Pinheiro André Wuicik Lara Farias Rodrigo Dornelles

Fotos: Washington Cesar Takeuchi

Curitiba é conhecida por ser uma capital organizada e que toma atitudes criativas para abrigar as pessoas que nela vivem. Não à toa, sua fama externa é de ‘’cidade-sorriso’’, devido à sua positiva imagem urbana.

Inclusive, algumas atitudes simples ajudam a abrigar os diversos tipos de pessoa que circulam pela metrópole. A cidade conta, por exemplo, com ruas temáticas na região central, a fim de proporcionar praticidade no cotidiano.

A Rua Riachuelo, por exemplo, abriga diversos comércios de móveis e eletrodomésticos usados. A 24 de Maio, é o point para quem procura produtos eletrônicos do mais variados tipos, e a XV de Novembro, é o calçadão mais famoso da cidade, sendo que comércios de todas as espécies podem ser vistos.

“Meu passado me condena”

Existem também, algumas ruas que no passado foram conhecidas por prestar serviços diferentes dos que oferecem na atualidade, mas que nem por isso deixaram de ter características marcantes que as diferenciam de outras localidades.

Um exemplo é a Rua Saldanha Marinho, que se inicia ao lado da Catedral e percorre todo o centro curitibano, e sua irmã Cruz Machado, menor em extensão, mas não em relevância.

A primeira, que tem nome de importante jornalista, era conhecida como uma rua maldita, pois ainda no século XX abrigava funerárias e açougues, serviços considerados impuros na época, segundo apontam estudantes de arquitetura da Universidade Federal do Paraná e seu professor Humberto Mezzadri.

Já a Cruz Machado teve até nome diferente. Até 1902 conhecida como Travessa do Thezouro, era uma ruela mal cuidada e sem glamour, mas que honrava o nome: ali existia a Secretaria das Finanças, Comércio e Indústria, que cuidava do “thezouro” da cidade.

Hoje, tanto a Saldanha Marinho e Cruz Machado são conhecidas por outros motivos. Sua temática, é o entretenimento noturno, que em nada se assemelha com o oferecido em regiões mais prestigiados e nobres.

Durante o expediente convencional, esses eixos são idênticos a qualquer outro lugar do Centro, mas a noite, o cenário se transforma e o perímetro fica parecido com o que algumas pessoas costumam de chamar de “inferninho”.

Curitiba Lado B

Quando anoitece nessas ruas, não é só a luz do céu que muda. Boa parte dos comércios fecham as portas, sendo que estudantes, doutores e comerciantes saem para dar vez aos trabalhadores de bares e boates que ficam praticamente invisíveis durante o dia. Um dos locais que abre as atividades notívagas da região é o Cine Lido. Localizado na Ermelino Leão quase esquina com a Cruz Machado, este é o maior cinema pornográfico da cidade, que tem amplo bar, sala para 300 espectadores e TV a cabo.

Ali dentro, há basicamente dois tipos de pessoas diferentes, mas que possuem o mesmo objetivo: acabar com a solidão. Grupos de homens bem apresentáveis se encontram nas poltronas, e de outro lado alguns curiosos vão se aconchegando com mulheres que aproveitam do ambiente apimentado para sair ganhando.

Segundo o gerente do estabelecimento, Alexandre Polydoro, a atividade é as vezes vista com certo preconceito. “Os clientes são como quaisquer outros. O problema é o medo do julgamento, ninguém quer ser visto entrando em um cinema pornográfico, tem medo que falem algo depois, encontrem algum conhecido”, explica.

Após anoitecer, a prostituição é uma atividade recorrente.

Rio é o mar. Curitiba é o bar

Ainda na Ermelino Leão, mas desta vez fazendo fronteira com a Saldanha Marinho, está localizado um dos restaurantes mais emblemáticos da cidade, o Gato Preto. Um felino de neon vermelho enfeita a entrada do lugar.

Unindo gastronomia, música e paquera, este restaurante dançante é oficialmente conhecida como “Pantera Negra”, mas poucos o chamam assim.

Dentro do recinto pode-se encontrar desde o mais simples trabalhador até o mais notável empresário, com espaço inclusive para candidato a deputado fazendo campanha. O ambiente é enfeitado com luz psicodélica e diversos lustres, além de música ao vivo. Uma película de insufilm na entrada chega a enganar a vista, tornando difícil perceber quem está dentro ou fora do local.

Um dos garçons mais solícitos da casa se chama Junior, que fala sobre os segredos para andar na região. “Você tem de vir com tranqüilidade, comer, beber e sair na sua que não vai arrumar confusão”. A explicação começa a fazer sentido após a meia noite, horário em que o movimento começa a aumentar.

Junior revela outro segredo de qual foi testemunha e que recentemente estourou nas conversas dos curitibanos. Julio Iglesias, famoso cantor espanhol, teria feito um show em Curitiba no ano de 2008, quando cansado da monotonia de seu quarto de hotel caminhou até o Gato Preto e cantou para os clientes. O próprio Iglesias confirmou o fato para o jornal Gazeta do Povo, e Junior mostra com orgulho uma coluna moldurada do jornalista Dante Mendonça sobre o ocorrido, que orna uma das paredes do restaurante.

Caminhos perigosos

Saindo do restaurante, avista-se na Saldanha Marinho um pequeno mercado, sempre com movimento. Não é raro encontrar mendigos e bêbados pelos cantos da desativada Sinagoga Francisco Frischmann, e assovios misteriosos podem ser ouvidos, como se um código Morse das ruas estivesse sendo aplicado. Já na larga Cruz Machado, muitas lanchonetes continuam funcionando durante a madrugada, a maioria com placas oferecendo canja de galinha. Mais a frente encontra-se o bar Som de Cristal. Dentro e fora do estabelecimento, pouca coisa chama a atenção. Alguns clientes na entrada, e menos ainda dentro do bar, bebem e quase nada conversam.

Mais à frente, no memorial de Belarmino e Gabriela, mocinhas da cidade se agrupam em frente ao monumento, que tem desenhos de Fernando Canalli e uma bonita moldura da foto da dupla caipira. Uma delas, com nome fictício de Patrícia, diz que “com mais quatro amigas, domina aquele ponto”.

Nos arredores do memorial há diversas boates, algumas já desativadas, e o ambiente democrático é um fator curioso. Muitos carros de alto valor estacionam nos espaços vagos, e jovens bem apessoados, que aparentemente não figurariam em um cenário como o da Cruz Machado, apoderam-se da paisagem, junto também com alguns senhores de idade e pedestres solitários.

Praça Santos Dumont e Memorial de Belarmino e Gabriela: Homenagens a figuras importantes são ícones da Cruz Machado.

Taxi Driver

Um dos meios de transporte mais utilizados quando se acaba um tour pela Cruz Machado e Saldanha Marinho é o taxi. Aos montes, os veículos laranja estacionam em frente às panificadoras 24 horas a espera de clientes e também de um café da madrugada.

Um destes taxistas, que pediu para não ter seu nome divulgado, será chamado de “Prado”. Prado disse que gosta de trabalhar na região, e assim como a maioria dos que por ali dirigem, não recusam nenhuma viagem.

“Eu gosto de trabalhar de noite, porque recebemos melhor, dá para pagar umas contas a mais. Quem gosta de trabalhar no centro não troca por nada. Às vezes é perigoso, mas nos sabemos como nos defender também”, releva.

Quando o sol começa a nascer e os pássaros a cantar, nada daquilo que se vê a noite faz mais sentido. Logo, os comerciantes matutinos voltam ao trabalho, cobradores e ônibus já figuram pelas ruas, e adolescentes uniformizados aparecem prontos para mais um dia de aula.

Quando menos se percebe, o ciclo dia-noite na cidade já está encerrado, e Curitiba prova que dentro de seu enorme “sorriso”, de uma forma ou de outra, pode abrigar gente de todo tipo.

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