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A vida em montanha russa

Conhecida com mal do século, a depressão tem atingido cada vez mais pessoas, devido ao ritmo que a rotina lhes impõe. Para atender a essa e outras tantas demandas de pessoas com transtornos mentais, faz-se necessário um serviço de qualidade. A Prefeitura de Curitiba traz os Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS) como alternativa aos hospitais psiquiátricos para reinserção desses pacientes na sociedade.

Reportagem: Bruna Martins Oliveira Fotos: Alana Dombrowski Lima

Olhares inquietos e desconfiados são características comuns à maioria dos pacientes que frequentam os Centros de Atendimento Psicossocial. Esquizofrênicos, bipolares, depressivos, portadores da Síndrome do Pânico. Mais do que um diagnóstico, essas pessoas carregam uma história e, na maioria dos casos, vivem nos extremos, em uma montanha russa de emoções, limitações e dificuldades por causa da doença. Com 14 anos de existência no país, o serviço dos CAPS nasceu como uma alternativa aos hospitais psiquiátricos tradicionais que, na maioria das vezes, desperta o imaginário social com imagens de dor e sofrimento pelas condições de atendimento. Na capital paranaense, há 12. Sendo quatro destinados para transtornos mentais. Um deles é o CAPS do Boqueirão, que funciona 24 horas e atende a população das regionais próximas a ele, assim como da região sul de Curitiba.Um pátio razoavelmente grande, árvores e uma horta cuidada por seus frequentadores. Bancos de madeira, alguns inteiros, outros apodrecendo. Cadeiras espalhadas no espaço. Olhares inquietos, tímidos e alguns penetrantes. Expressões de dor, felicidade, tristeza. Homens e mulheres com idades e histórias diferentes, mas que, por algum motivo, tiveram suas trajetórias entrelaçadas a esse lugar. Alguns têm a sorte de ter o apoio da família, outros sequer se lembram do próprio nome e de ter alguém próximo.

Os portões ficam abertos, característica da nova forma de pensar e atender a esse público que, em anos de história, teve o isolamento como principal companhia. Não que isso ainda não exista, porém, aqui, tudo (ou quase) é mais livre. Médicos e funcionários permanecem com as salas de reuniões abertas. Várias salas compõem os corredores, são consultórios, espaços de terapias e oficinas de música, artesanato e pintura, entre outras atividades. Em cada canto, uma peculiaridade. Alguns se reúnem em roda e compartilham cigarro livremente, outros choram, falam sozinhos, brigam, riem, independentemente do diagnóstico, todos os pacientes compartilham o mesmo espaço.

Aparentando pouco mais de 25 anos, barbudo, calça preta, blusa de moletom e boné, um homem anda impaciente de um lado para o outro. Balança o corpo e as mãos, enquanto desvia o olhar para o chão. Ele caminha em direção da sala de administração e entra aflito. Uma funcionária,

Os leitos nos CAPS são em número reduzido, apenas para casos extremos.

Alana Dombrowski Lima

Durante o tratamento, é essencial uma infraestrutura que atenda às necessides dos pacientes.

delicadamente sorri, perguntando o que ele deseja. Com a respiração ofegante e as mãos trêmulas, o paciente pede à moça:

— Ô, tem um sabonete líquido pra me arrumar, enfermeira? É que tá faltando ali no banheiro. Quero um, porque preciso lavar a minha mão.

Ela faz sinal para que ele espere. Entra na salinha e revira o armário. E o rapaz continua inquieto, a aguardando. Ao retornar, a mulher entrega em suas mãos o sabonete líquido em um copo plástico. Ele sorri e desce as escadas apressadamente.

O movimento é intenso. Enquanto muitos vão embora, outros chegam. Nas sessões de psicoterapia, é comum que todos se sentem em círculo e o terapeuta peça para que cada um compartilhe suas experiências da semana, suas angústias e incertezas. Sempre no meio da manhã, à tarde ou à noite, todos os presentes são convidados a ir ao refeitório. Logo uma fila considerável se forma e auxiliares distribuem as refeições. Enquanto alguns vêm e vão embora, outros, geralmente em estado de crise, permanecem nos escassos leitos. Os quartos são simples: uma cama, cobertas finas, travesseiros, armários para guardar os pertences e uma decoração ou outra na parede.

Elisabeth* é uma das mulheres que dependem do atendimento na instituição. Ex-professora de História, ela passou 25 anos lecionando no estado e hoje não suporta a ideia de entrar em uma sala de aula. Consciente de seu estado, ela sofre de depressão. No momento, seu quadro é estável, mas ela reclama:

— De quatro meses que faço acompanhamento aqui, faz dois que estou esperando uma consulta com o psiquiatra. E a receita, fazem o quê? Dão para o terapeuta, não sei até que ponto isso adianta, já que eles nem têm contato com a gente”.

Assim como Elisabeth, outros pacientes (cujo número pode variar entre 300 e 400 para esse tipo de CAPS) também demoram para conseguir uma consulta

Alana Dombrowski Lima

com um especialista, já que, em média, dois ou três psiquiatras estão disponíveis para atuar nos centros, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde Mental. Enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos “Ô, tem um sabonete pra e terapeutas também compõem me arrumar? É que tá fala equipe e, geralmente, acabam tando ali no banheiro. Preavaliando os que ali estão de uma forma ciso lavar a minha mão.” descentralizada. Paciente do CAPS A intensidade e a agitação fazem parte da rotina desses locais. Assim como muitos enfermos se encontram numa situação estável, não é incomum que de repente, alguém entre uma crise e precise de uma interferência profissional que pode variar de uma conversa seguida de medicação ou até uma contenção, como confirma a maioria dos enfermeiros. Dia após dia, as cenas se repetem e os Centros de Atenção Psicossocial são, muitas vezes, o lugar de refúgio dos que sofrem com as próprias confusões, com olhares estranhos, com o estigma e, muitas vezes, com a invisibilidade.

*A entrevistada pediu que seu sobrenome fosse omitido

A dor compartilhada e o papel da família

Ter o apoio familiar quando se passa por problemas psiquiátricos faz muita diferença na recuperação do paciente, como comprovam vários estudos da área.

A universitária Jaqueline Santos acompanha de perto a rotina de sua mãe que lida com a bipolaridade há 16 anos. A filha, acostumada a ver a mãe em fases depressivas e eufóricas que resultaram em seis internamentos, revela a preocupação. “Eu tenho uma ligação forte com ela e quando ela estava em crise ficava muito triste, até deixei um emprego para cuidar dela. Acho o tratamento importante, mas alguns lugares dopam os pacientes e nem se preocupam com a reação ao remédio e é importante que esses locais se preocupem em fazer reunião com os familiares.”

Assim como Jaqueline, a história da estudante Thayná Andrade (nome fictício) é parecida. Há 15 anos, a mãe da jovem foi diagnosticada com depressão e passou por internações, sendo a última há 8 anos, quando o médico informou que na realidade ela tinha transtorno bipolar. O companheirismo e apoio familiar fazem diferença. “Eu tento sempre mostrar que eu estou ao lado dela e a apoio. Hoje ela está bem e trabalha normalmente. Acho fundamental o apoio da família para que a pessoa não se sinta abandonada. Só quem passa por isso, ou tem um familiar que passou, sabe que não é frescura e nem loucura como muitos dizem.” Além da família, a humanização no atendimento dos pacientes é uma preocupação cada vez maior desde a reforma psiquiátrica e a implantação de tratamentos diferenciados. É o que explica Karin Gabardo, terapeuta ocupacional e coordenadora do CAPS Portão 3. “Você tira um pouco o foco do diagnóstico e passa a olhar o paciente como um sofrimento mental, uma pessoa que tem um contexto social. Não é todo depressivo que vai agir da mesma maneira. A gente não coloca o transtorno mental dentro de um saco, a gente considera vários aspectos, envolvendo a vida e o contexto que a pessoa vive”, diz.

Contradições

A década de 80, no Brasil, não deu apenas força para os movimentos em defesa da reforma psiquiátrica e do atendimento humanizado aos pacientes psiquiátricos, como influenciou a criação dos CAPS, serviço que foi intensificado em 2001 com a aprovação da lei 216, que prioriza o atendimento fora dos hospitais psiquiátricos tradicionais.

No Paraná, desde 2005 houve uma redução de 36% dos leitos psiquiátricos. Em 2013, 182 leitos foram descredenciados enquanto 67 foram criados nos CAPS, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde. A medida divide opiniões. Para o presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatria, André Rotta, por mais que a lei seja positiva no sentido de humanizar o atendimento, pontos importantes estão sendo esquecidos. “A lei não está sendo cumprida em algumas situações. Infelizmente, há um fechamento significativo de leitos psiquiátricos, até mesmo de hospitais que têm condições de manter esse tratamento. Porém, não há uma estrutura de apoio como ambulatórios, alas psiquiátricas em hospitais gerais, em Curitiba só há seis leitos. Falta ambulatórios, falta suporte”, pontua. Apesar de a ideia de atendimento multiprofissional ser disseminada nos CAPS, a falta de especialistas é outro ponto que interfere na eficácia do tratamento.

Para Rotta, os CAPS são insuficientes para a demanda e os pacientes, que eram acompanhados em ambulatório, foram encaminhados para as Unidades de Saúde e geralmente são atendidos por um médico da família que é orientado por especialistas por matriciamento, ou seja, um especialista orienta esses médicos . É muito difícil dar um suporte adequado para o paciente dessa forma. A situação tende a piorar cada vez mais. Outra discussão é o tratamento porta aberta e a autonomia do paciente. “Muitos pacientes, antes internados, saíram de alta praticamente obrigados e estão na rua. Alguns não têm condições e discernimento sobre o que está acontecendo, pode estar psicótico, por exemplo”, alerta Rotta. Em resposta ao novo modelo de saúde mental e a eficácia dos CAPS, a secretária municipal de Saúde Mental Luciana Savari justifica: “Curitiba entende que hospital psiquiátrico é um ponto da nossa rede e não é lugar para ninguém morar. A gente não quer prescindir desse serviço, porém, a ideia é atender a essas pessoas em uma rede conforme a necessidade do caso. Para Curitiba, a gente conseguiu avançar pouco em hospitais gerais, porém, a proximidade que eu tenho com os hospitais psiquiátricos possibilita a construção de um plano terapêutico com esse olhar da humanização no atendimento”.

Número de internamentos psiquiátricos em Curitiba

2014

247 2015

231

186

176 199

190

Jan Mai Set

Em 2013, 182 leitos foram descredenciados, enquanto 67 foram criados nos CAPS.

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