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Os sons de Curitiba























Personagens e histórias que ajudam a construir a identidade sonora da capital paranaense
Daniela Gusso, Dayanne Wozhiak, Luciana Prieto e Marina Creplive




Cturitibano que é curitibano, ao andar pela Rua XV de Novembro, com certeza já ouviu a voz de uma senhora que vende bilhetes do jogo do bicho, as flautas de bambu de um grupo boliviano, ou os acordes do violão de Plá. Do sofá, já ouviu ao longe um “olha ai freguesia, é o carro do sonho que está passando” ou as inconfundíveis notas de Beethoven, em “Für Elise”, quando o caminhão de gás aponta na esquina de casa.
Não é novidade que os sons têm um poder especial de remeter os indivíduos a diferentes espaços, épocas e pessoas. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Neurociência, localizado em Turim, na Itália, isso acontece porque a parte do cérebro que elabora os sentidos também é responsável, em parte, por guardar memórias emocionais. Nas cidades, ainda que de maneira involuntária, esses sons habitam o imaginário da população e ajudam na construção da paisagem sonora local.
Para o professor e mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) Marcos Torres, essa paisagem compõe a identidade da cidade e é fruto
da associação que se faz entre determinada melodia e o espaço geográfico em que ela se dá. “O som cria a marca de um lugar. Curitiba tem diversos personagens que podem ser classificados como marcos sonoros, que são pessoas que se fixam em um lugar, e a partir de então o som que bilhetes de loteria na Rua XV de Novembro.
O trabalho com a voz começou há 40 anos. Com filhos para dar de comer, ela precisava de um trabalho e, ainda, um trabalho que lhe permitisse cuidar dos filhos o dia todo. Foi então que ela conheceu uma mulher que lhe indicou vender os bilhetes. Rapidamente, a senhora simpática conquistou público. Algumas pessoas, inclusive, dizem que ela traz sorte.
Não é à toa. Até prêmios de R$ 500 mil ela já distribuiu. Mas a sorte só começou a virar em 1985, quando Teresinha se mudou para a casa construída com muito suor. Se é que se pode chamar de sorte. Os 38 anos trabalhados com o “bicho” lhe serviram para guardar dinheiro suficiente para conquistar o seu cantinho. E foi somente
Dayamme Wozhiak
Após anos vendendo bilhetes de loteria, Teresinha dos Santos ficou conhecida como Borboleta 13.
eles fazem ali passa a constituir identidade daquele lugar”, afirma.
Do Santa Cândida ao Pinheirinho, do apito do trem aos sinos da Catedral, são inúmeras as melodias e os ruídos que ajudam a compor a paisagem sonora da cidade. Entre tantas histórias, está a de uma senhora de sorriso fácil, olhos claros, já pequenos, com a raiz dos cabelos revelando
a pintura e um batom cor de rosa nos lábios. Quem vê de longe, não acha nada demais. É só uma senhora. Mas se o som da sua voz for ouvido, já de longe qualquer curitibano que se preze, sabe: é ela. Teresinha dos Santos, que ganhou o apelido de Borboleta 13, ficou conhecida por vender
Marcos Torres, professor e mestre em Geografia


Daniela Gusso
há quatro anos, que ela regularizou sua situação com a Cohab.
Quanto ao trabalho, também mudou. Há oito anos, Teresinha trabalha em uma ótica, ainda no Centro. Mas mesmo trocando o posto e a narrativa, ninguém a esqueceu. Segundo a própria senhora, ainda há quem a procure, perguntando quando é que ela voltará a vender os bilhetes. “Onde estão as cobras e as borboletas?”, perguntam as pessoas. Porém, ela não pretende voltar.
Apesar de ter os filhos já crescidos, ela aceitou a proposta dada pela ótica, pois significava ganhar um pouquinho mais. “Eu precisava de uma oportunidade melhor. Aqui é bom, porque eu não preciso gastar para ganhar, eu só ganho”, conta. Hoje ela fica na Desembargador Westephalen. Quem passa por lá, continua não tendo dúvidas. “Borboleta e cobra corre hoje”, nunca mais se ouviu. Mas os anúncios de promoções de óculos ganharam outro sentido ao som da voz da Borboleta 13. Umberto Ramirez embala as tardes nas praças curitibanas ao som de sua flauta de pan.
Praça de Palco
Os traços indígenas do avô levaram o pequeno Ramirez não somente a tocar a flauta de pan, instrumento de sopro tradicional em sua aldeia, mas também a carregar consigo, não importa onde estivesse, a cultura e os ensinamentos de sua tribo localizada em Quito, no Equador. Foi este sentimento de pertença que levou o garoto, anos mais tarde, a percorrer boa parte do mundo expondo sua arte.
Umberto Ramirez, de feições cansadas e traços indígenas que certamente lembram o avô, tem a Praça Carlos Gomes como palco para sua cultura. Desde 2008, as árvores altas e os passos apressados de quem não perde o ônibus se acostumaram com sua presença. Ele chega cedo e monta seu espaço junto com outras pessoas que o acompanham. Os filtros dos sonhos pendurados recebem cores vivas e os CDs com suas composições encontram-se prontos para serem vendidos.
De longe, ouve-se o som da flauta, hora em melodias autorais, ora interpretando músicas que já estão de costume na boca do povo. Independentemente do que se ouve, o som já é conhecido de quem passa, fazendo parte da rotina dos sons que cercam a cidade. “As pessoas gostam da música e compram, quando gostam do artesanato, também compram, isso é importante para a nossa sobrevivência”, conta.
Embora o flautista queira aproveitar o máximo de tempo no Brasil, sabe que em algum momento vai ser hora de voltar para casa.
Bike e violão
Cantor, mas muito mais ainda, ativista, Ademir Antunes dos Santos viu, entre festivais e auditórios, a rua como o melhor palco para mostrar seu trabalho. Formado em música pela Universidade Estadual do Paraná – FAP (Faculdade de Artes do Paraná) e ainda com mais um ano de Musicoterapia no currículo, o Plá começou a apresentar seu trabalho na rua em 1984.
Desde então, não há quem passe pela Rua XV e não pense estar ouvindo um cover de Raul Seixas. Mas não é. As músicas são autorais e têm sempre um chamado a uma certa revolução, seja contra o capitalismo ou a favor da sustentabilidade. As bicicletas, então, já lhe renderam três CDs e até sucesso fora de Curitiba. Ele foi ao Rio de Janeiro no último semestre e se sentiu lisonjeado ao ouvir a música “Pra Andar de Bicicleta Tem Que Ter Moral”, dele, sendo cantada em um movimento a favor das bikes.
Entre 57 CDs gravados, 13 livros e o reconhecimento do público, o que mais importa para Plá é passar sua filosofia. “Sempre digo que vivo aquilo que faço, e não do que eu faço. O importante não é ganhar dinheiro, e sim a causa. Eu passo a minha filosofia e o retorno vem naturalmente”, diz. A causa é transmitida também em suas roupas: as camisetas dele são feitas com o tecido rabiscado pelas pessoas que passaram por ele.
O objetivo é apenas um: tentar fazer do mundo um lugar mais agradável através de sua mensagem. A vida o transformou em um poeta com causa e, diante de um universo que ele acredita ser tétrico e racional, imerso no automatismo, o jeito é colaborar de alguma forma.
Todos os dias, com exceção de quando o músico está viajando, é possível encontrá-lo por volta do meio-dia na Rua XV. O Largo da Ordem também é palco para o artista aos domingos. “Sem pretender, eu sinto que faço mesmo parte da identidade sonora de Curitiba. Muita gente me conhece da rua, da música, e isso faz o meu som ser popular por aqui.”
Olha aí, freguesia!
“É o carro dos sonhos que está passando.” Conhecido pela maioria dos curitibanos, o jingle da Sonhos Alfa ultrapassa gerações e conquista os curitibanos há mais de 15 anos. Diariamente, 5 mil sonhos saem do forno e invadem as ruas da capital ao som da famosa trilha sonora. São mais de 20 veículos que circulam pelos quatro cantos da cidade, levando sonhos sempre fresquinhos e com os mais diversos sabores.
Velho conhecido das ruas da capital paranaense, Plá já possui 57 CDs e 13 livros.





Daniela Gusso