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Entre roms, sintis e calons

Descendente do clã dos roms, Claudio Iovanovitchi faz parte da terceira geracão de ciganos no sul do Brasil.

A saga dos ciganos em Curitiba na luta contra o preconceito e pela inclusão social

Jordana Machado e Thauane Mayara

Muito disposto e simpático, Claudio Iovanovitchi, presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana (Apreci) nos recebe em sua residência, e ao abrir o portão, com um sorriso no rosto, num tom de brincadeira, solicita os nossos passaportes. Estamos na embaixada cigana.

Iovanovitchi prontamente nos pede para entrar e sentar em sua sala e, em meio a tapeçarias, objetos dourados, baús ciganos prateados com pedras incrustradas e um aroma singular de incenso e tabaco, pergunta:

– Quem são os ciganos? Um misto de curiosidade e receio toma conta do ambiente e, em um sinal afirmativo, ele nos conta sua história.

‘’Engana-se quem pensa que os ciganos são todos iguais.” A etnicidade do povo cigano é tão variada quanto as suas características culturais. Existem três clãs principais, os roms, os sintis e os calons, sendo que dentro deles, há ainda inúmeros subgrupos. A principal forma de distinguir os clãs é por meio da forma com a qual cada um deles adota na hora de se vestir.

No caso dos calons, o visual adotado pelos homens remete ao estilo sertanejo, com uso corrente de botas, galochas, cintos e chapéu de cowboy. Já as mulheres utilizam vestidos longos e muito coloridos. Por outro lado, os roms se vestem de forma bem vistosa, gostam de cores brilhantes, acessórios chamativos e roupas estampadas, sobretudo em festas como casamentos, quando a noiva, além do tradicional vestido branco, usa um lenço na cabeça.

“Entre o clã dos roms e dos calons existe uma rivalidade histórica”, nos conta Iovanovitchi.

Pertencente ao clã dos roms, Iovanovitchi narra com muito entusiasmo a história de seu avô, que chegou ao Brasil oriundo da Bósnia, no Leste Europeu, no início do século XX, com a ideia inicial de chegar ao país e fixar moradia no Rio Grande do Sul, porém, por motivos desconhecidos, preferiu se estabelecer em Curitiba.

E há cem anos dão origem à comunidade cigana da cidade que hoje é composta por aproximadamente 300 pessoas. No Paraná, estima-se que são cerca de 40 mil ciganos entre fixos e itinerantes;

“Um povo sem registros, sem documentos, escrita, endereço, nem conta bancária.” Claudio Iovanovitchi

Thauane Mayara

Típica vestimenta rom em casamentos.

no Brasil, esse número chega a 600 mil integrantes.

Iovanovitchi explica ainda que o próprio termo “cigano” não é correto, pois carrega uma carga pejorativa muito grande. O ideal seria utilizar a terminologia rom, que significa cigano em romani, o idioma oficial do seu clã. Já em solo verde-e-amarelo, é comum os ciganos se referirem aos outros não-ciganos como gadgés ou apenas como “brasileiros”.

“Eles representam um povo sem nação, migram não somente por filosofia de vida.” Iovanovitchi explica que esse pensamento popular é um mito criado no imaginário coletivo para poetizar a problemática vivenciada pelos ciganos ao longo da história. Eles vão e vem pelo único motivo de ser um povo que nunca foi bem-vindo em lugar nenhum, e constantemente são expulsos dos lugares aonde chegam, sendo assim necessário se mudarem constantemente como verdadeiros nômades, já que não recebem nenhum tipo de apoio do governo e da sociedade.

– A marginalização faz com que os ciganos não sejam considerados como cidadãos e é por esta razão que centenas deles vivem nas ruas morando embaixo de pontes, como ocorre por exemplo no viaduto do Café Damasco, na Rodovia do Café em Curitiba.

“Um povo sem registros, sem documentos, escrita, endereço, nem conta bancária”, diz ele. Na cultura cigana, os conhecimentos são passados de pai para filho, de geração a geração, sendo essa a forma que acontece a perpetuação de um legado tão rico. Em uma tradição na qual nem eles mesmos sabem a diferença entre o real e a lenda, o imaginário e o mítico, a nação cigana tem uma relação diferente no que diz respeito ao tempo – para eles não existe horário, nem dia nem noite, meses ou anos, apenas vivem o Iovanovitchi tem em sua casa – diga-se de passagem uma construção de alvenaria muito bonita e não uma tenda de lona, como se espera de uma moradia cigana – um acervo de documentos, roupas, fotografias e vestimentas que são verdadeiros tesouros de herança de uma família tradicional cigana, o que é algo raro, já que eles não costumam guardar nem documentar nada de sua história. Na coleção, há inclusive a passagem do navio que trouxe a sua família até o Brasil no século passado, tudo muito bem conservado e cuidado com esmero.

Em um momento muito pessoal durante a conversa, Iovanovitchi nos conta que um dos seus grandes sonhos é conquistar um espaço na cidade que homenageie a cultura cigana, onde as famílias possam ter um museu para dividir sua história com outras pessoas. “Existe pouco interesse do governo em nossa causa, eles poderiam nos ceder uma praça abandonada, um espaço para o nosso povo, mas infelizmente não há interesse público”, lamenta.

Dificuldades

O preconceito é o grande desafio que os ciganos enfrentam hoje em dia. Por conta disso eles acabam encontrando cada vez mais dificuldade na integração com a sociedade, fato que pode ser exemplificado pelos altos índices de analfabetismo e de doenças que poderiam ser prevenidas. “As mulheres ciganas são as que mais sofrem devido ao alto índice de desenvolvimento do câncer de mama por não poder de qualidade”, afirma.

O que impede os ciganos de estudar e utilizar os serviços dos hospitais é, principalmente, a falta de documentos originais, como RG e CPF, algo que para os curitibanos pode ser tão simples e acessível, mas que para o povo cigano é muito burocrático; a falta de um CEP, por exemplo, impede que pais matriculem seus filhos nas escolas, além de não permitir que os mesmos tenham acesso ao sistema único de saúde (SUS) por falta de informações em seus cadastros.

Desde cedo, os ciganos são acostumados a lidar com situações de preconceito às quais são submetidos desde crianças. Iovanovitchi conta que durante a infância, tanto sua filha como sua neta foram vítimas de preconceito racial em escolas por onde passaram quando pequenas, situação que dificultou ainda mais a integração das meninas com o restante das crianças.

Para o cantor sertanejo Santhiago Piemonte, ser cigano significa “ser usado”. O genro de Iovanovitchi, descendente do clã calon, conta que por várias vezes se sentiu explorado por outras pessoas em diversas situações, principalmente em contextos que envolviam dinheiro e até mesmo o próprio preconceito contra a etnia cigana. “Por várias vezes, fui julgado por terceiros, por pessoas que achavam que, por eu ser cigano,

Duchan Iovanovitchi, avô de Claudio.

eu agiria de má fé em questões profissionais através de corrupção ou até mesmo de roubo, já que essa, infelizmente, é a forma com que o meu povo é identificado – como ladrões e aproveitadores”, conta.

O desafio

Engajado numa causa que tem como objetivo principal desmitificar a crendice popular instilada no inconsciente coletivo das pessoas em relação a seu povo, Iovanovitchi desenvolveu, em parceria com Denize Carvalho, coordenadora da Secretaria de Estado da Educação (SEED), um curso ministrado por meio de palestras que ocorrem em diversas instituições de ensino.

O programa conta também com a apresentação de uma peça de teatro com foco em diluir o preconceito estigmatizado. “Atualmente, o público-alvo são professores, pedagogos, jornalistas, advogados e formadores de opinião em geral, para que possam se preparar e conhecer mais sobre a cultura cigana”, afirma Denize. Donos de uma das culturas mais misteriosas do mundo, a fama de ladrões e trapaceiros descrita em obras literárias como A Ciganinha, de Miguel de Cervantes (1547-1616), são fortemente criticadas por transmitir uma imagem equivocada sobre o povo cigano. Com a peça teatral, Iovanovitchi tem o intuito de dissolver o estereótipo incutido no imaginário da população sobra a cultura cigana.

A integração das crianças ciganas dentro das escolas é um outro anseio não apenas de Iovanovitchi, como também de todos os 600 mil ciganos que vivem em solo brasileiro.

“Meu objetivo é que as criancas entrem dentro das escolas e sejam alfabetizadas pois, sem a educacão, não existe futura para o cigano e o futuro não é construído através da leitura de mãos como muitos pensam, mas sim, pela corrida através de seis sonhos e objetivos”, finaliza Iovanovitchi.

Clãs

Rom

Provenientes dos países balcânicos, principalmente da Romênia, falam romani. Consideram-se os “ciganos autênticos”.

Sinti

Populares na Italia, França e na Alemanha. Falam a língua sintó, uma variante do romani. Não há uma presença significativa desse grupo no Brasil.

Calon ou Kalé

Originários da Espanha e de Portugal, porém, se espalharam por toda a Europa e América do Sul. São os criadores do flamenco. Falam a língua caló e são bastante populares no Brasil.

Thauane Mayara

O cobre é a principal materia-prima utilizada na confecção de objetos que eram produzidos e negociados pelos ciganos como fonte de renda ao longo de sua história.

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