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Oficina Saeed
Imigrantes são refugiados da guerra na Síria, que depois de verem suas casas e cidades devastadas, tentam recomeçar a vida em Curitiba
Texto: Caio Porthus e Daniel Malucelli Diagramação: Michel de Alcantara

Antranig enxerga na oficina mecânia de Elia um
recomeço para sua família.
Era uma madrugada fria e um clarão iluminou o céu de Alepo, província mais populosa da Síria. Bombas explodiam por todas as partes da cidade, lançadas em mais um ataque aéreo. Esta história é apenas mais um capítulo da triste rotina no Oriente Médio, que afeta a vida de milhões de pessoas que apenas queriam viver em paz, mas convivem diariamente armas, bombas e tanques de guerra.
Antranig Karajian, 52 anos, dormia depois de um árduo dia de trabalho. O estrondo das explosões o acordou. Sua oficina mecânica havia sido atingida em um atentado terrorista. Tudo o que foi conquistado e construído, ao lado de seu irmão Garbis, foi dizimado em segundos. Sobraram apenas os destroços. Sua casa em breve seria atacada, e sua família estava em risco.
“Eu perdi tudo. Graças a Deus não tinha ninguém na oficina no momento dos ataques. Eram 18 funcionários. Fazíamos o reparo de carros do governo, e por isso, fomos atacados pelo Estado Islâmico. Alepo está sobre ruínas. Somos católicos e estamos sendo caçados pelos terroristas na Síria. Se eles encontrassem minha família, iriam nos decapitar”, explicou Karajian fazendo aquele gesto da mão no pescoço.
A sua única opção era fugir. E o abrigo foi encontrado em uma cidade chamada Curitiba, no sul do Brasil. Um conhecido de Karajian havia sido abrigado por Elia Amma, um comerciante sírio-brasileiro, que estava recebendo refugiados de guerra em sua casa na capital paranaense. Mesmo sem conhecer Amma, ele fez o contato e recebeu a resposta que seria bem recebido.
Os altos custos com passagens fizeram Karajian partir de Alepo com uma missão: trabalhar para trazer sua família ao Brasil, enquanto eles se escondiam na
Síria. Em Curitiba, o fugitivo foi recebido por Amma, que teve uma ideia. Abrir uma nova oficina mecânica para Karajian, e seu irmão Garbis, e ajudá-los a trazerem seus familiares.
O plano saiu do papel, e Garbis também desembarcou no Brasil. Aos poucos, e contando com do

“Se coloque no lugar deles. Você está fugindo. Tem guerra e perseguição religiosa. Se o Estado Islamico te pega, você é jogado na vala.” - Elia Amma, dono da oficina


Elia Amma (à esquerda) abrigou Antranig e mais de 70 sírios refugiados.
ações de descendentes e sírios que vivem aqui, os irmãos Karajian conseguiram trazer seus filhos e suas esposas para a nova casa.
Hoje, a oficina é formada por refugiados de guerra, que agora
estão diante de uma nova batalha. “Imagine você ter a sua vida, ganhar o seu dinheiro, e do dia para a noite viver de doações de comida, roupas e remédio”, disse o comerciante sírio-brasileiro, que já abrigou mais de 70 desertores.
Aprender a língua é muito difícil para os imigrantes sírios, principalmente os mais velhos. As aulas
de português são caras e a maioria não tem condições de bancar. Com a dificuldade na comunicação, muitos recém-chegados não conseguem emprego e sobrevivem por meio de doações. Para realizar esta reportagem, a comunicação teve que ser feita com a tradução de Amma.
“Está sendo muito difícil. Na Síria, eu tinha minha história, minha vida. Imagine você ter o seu lar, e tudo isso acabar do dia para a noite. Minha casa foi destruída. Aqui, eu não sou ninguém. Não falo português e vejo os meus conterrâneos que chegam passando por muitas necessidades. É muito triste”, contou Karajian em árabe.
O Anfitrião
Era o início da década de 70 quando Elia Amma decidiu vir
ao Brasil em busca de oportunidades. O futebol brasileiro o fascinava e Pelé era seu ídolo. Construiu sua vida em Curitiba trabalhando com todo o tipo de comércio e é pai de 12 filhos.
A cada reportagem vista na tevê sobre sua terra natal, ele sentia uma pontada no peito. Ao contar sobre sua terra natal, sua voz vai ficando rouca e seus olhos cheios de lágrimas. “A guerra devasta meu povo. Por que na Síria nossas canções são tristes?”, ele questiona. “Nosso povo sofre. Os sírios querem a paz e não a guerra. Mas o que podemos fazer? Estão matando a nossa gente. Cantamos para superar a nossa dor”, conta Elia, com a voz cansada. Tudo começou em 2013. “Isaac foi o primeiro. Era um conhecido de um conhecido na Síria. Me pediram ajuda pela rede social. Não tive dúvidas. Como vou negar? Ele ficou oito meses na minha casa. Depois veio sua família inteira, tios, primos, todo mundo. 20 refugiados só de uma vez. Então, foi chegando mais gente. Chegaram mais oito... depois mais seis... depois mais quatro. Ao todo foram mais de 70. Eu não conhecia nenhum deles. A maioria é de Alepo, e chegou só com a roupa do corpo. Arranjei comida, locação, tudo o que você pode imaginar. Agora estou com uma dívida de mais de R$ 200 mil no banco, mas quando deito a cabeça no travesseiro, durmo em paz”, contou o sírio-brasileiro.
Sua vida se transformou. Levava uma rotina calma, até o momento em que se viu mergulhado em sua missão. Pessoas fugindo da morte, desembarcando em um país desconhecido, sem falar uma palavra sequer de português, em suas mãos. Não podia nem abrir sua rede social, que recebia pedidos de ajuda de famílias inteiras desesperadas. Seu coração, que sentia aquela dor profunda a cada notícia sobre seus conterrâneos, não suportou.
Enquanto trabalhava na oficina, Elia viu o céu escurecer e apagou. Acordou no hospital com um
Daniel Malucelli


cateter cardíaco. “Não tenho mais condições físicas, financeiras e mentais. Nunca passei na minha vida o que passei nesses últimos dois anos. Dor, tristeza. Se coloque no lugar deles. Você está fugindo. Tem guerra e perseguição religiosa. Se o Estado Islâmico te pega, você é jogado na vala. Mas minha parte está feita. Precisamos da ajuda dos brasileiros. Eles precisam ser acolhidos para recomeçar suas vidas. O Brasil é um país acolhedor, é por isso que eles estão aqui”, apelou Amma. De 2011 até agosto de 2015, de acordo com dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), 2.077 sírios já foram acolhidos pelo Brasil. E devem chegar mais imigrantes. Um dos fatores os atrai é a grande comunidade sírio-libanesa e de descendentes árabes no país.
A professora de História Márcia Martinello destaca também outros motivos de o Brasil receber esse número de sírios. “Atualmente, nós recebemos mais sírios do que os Estados Unidos, os países da América Latina e até mesmo alguns europeus, como a Grécia e a Espanha, que têm dificultado a chegada de refugiados. Isto ocorre porque, em 2013, o Conare criou uma norma que facilita a concessão de vistos a imigrantes da Síria; de lá para cá, mesmo com a distância, as pessoas estão preferindo vir ao Brasil do que correr risco de enfrentar problemas na Europa.”
Entenda o caso dos refugiados sírios
Desde 26 de janeiro de 2011, a Síria está em guerra civil. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que mais de 220 mil pessoas já morreram e quatro milhões fugiram, seja para outros locais internos ou espalhados pelo mundo. São os refugiados de guerra, inocentes em busca de paz. E o número de mortes não para de aumentar, entre elas, de muitas mulheres e crianças.

A pergunta é: quais os motivos que originaram essa guerra? A situação é complexa. O doutor em História Ulisses Galetto explica: “A guerra na Síria é fruto de várias circunstâncias. É um reflexo da Primavera Árabe, iniciada em países do Oriente Médio em 2010, mas também de condições derivadas de zonas de influência dentro de um contexto geopolítico”.
Os protestos contra Bashar Al-Assad, presidente da Síria que se está no poder desde 2000, começaram pacíficos, mas sofreram forte repressão do governo, que reprimiu os rebeldes com muita violência, utilizando força militar. A revolta contra Al-Assad se espalhou pelo país, que entrou em guerra armada. O conflito gerou o interesse político de diversos grupos e países, já que a Síria é vista como um país de excelente localização no Oriente Médio, além de possuir boas fontes de petróleo.
O número de rebeldes combatentes contra Assad é de cerca de 100 mil homens, espalhados em diversas facções, entre moderados, radicais, e militares que se rebelaram contra o Exército. No início de 2014, o grupo religioso jihadista autodenominado Estado Islâmico (EI), criado a partir da facção terrorista Al-Qaeda, e que controla territórios na Síria e no Iraque, entrou em cena. Inicialmente, o EI entrou no conflito apoiando os rebeldes contra o presidente. Mas hoje, o grupo luta tanto contra o ditador quanto seus opositores, a fim de dominar toda a região e criar um estado teocrático.
Um dos opositores é o peshmerga, nome dado as forças de autodefesa curdas que combatem o Estado Islamico. Os curdos são um grupo étnico pertecente a países do Oriente Médio, como Irã, Iraque, Turquia, Armênia, Geórgia e a própria Síria. na disputa com diversos interesses, como Arábia Saudita, Irã, Iraque, Turquia, França, Reino Unido, além dos Estados Unidos e da Rússia. Os americanos apoiam os rebeldes moderados e são contra o EI, os rebeldes radicais e o ditador Assad. Já os russos apoiam o governo sírio, e opõem-se ao EI e os rebeldes.
“Os interesses entre Estados Unidos e Rússia estão em jogo na Síria. A justificativa de que Bashar Al-Assad é um ditador sanguinário foi o estopim para o início de um conflito que logo em seguida extrapolou os limites e interesses internos daquele país. Hoje, a guerra na Síria é muito mais uma disputa de hegemonia no Oriente Médio, com todas as suas implicações econômicas e políticas”, explicou Galetto.
Com todas essas disputas, o povo sírio é quem paga a conta. “Há o estereótipo do ‘árabe terrorista’, construído por uma cultura irresponsável e conservadora do Ocidente. Esse mito destrutivo contribui, e muito, para o acirramento da intolerância e da violência em relação a qualquer diferença. E os sírios são as vítimas dessa onda conservadora baseada na ignorância”, finalizou o historiador.
Mapa mostra as zonas de dominação e conflito no país. Além da guerra interna, entre o Exército, os rebeldes opositores e os curdos, o Estado Islâmico avança pelo território sírio. Estados Unidos e Uniào Européia também combatem os terroristas planejando ataques na Síria.
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