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Ó pátria amada (e medicada

Ó pátria amada

(e medicada)

Como o zeitgeist brasileiro deu à luz a geração do Rivotril

TEXTO Luciano Simão

FOTOS Natália Moraes

EDIÇÃO Aline Bonn

As gargalhadas de Marcela* ecoam diariamente pelo escritório onde trabalha, no coração do Batel. Alta, magérrima, fã de Star Wars, 007 e dos filmes da Marvel, a técnica administrativa de 36 anos tem um sorriso que ocupa metade do rosto, ainda sem rugas. De sua mesa próxima ao sagrado cafezinho, conversava em tom alto e incessante com a amiga no outro extremo da sala. Enquanto discutiam os spoilers do episódio final de Hannibal, Marcela mexia na bolsa em busca de uma bala ou chiclete. Foi então que percebeu:

“Ai meu Deus. Guria, acabou meu Rivotril”, disse, vasculhando a bolsa em vão. O sorriso sumira de súbito. Algo havia mudado em seu tom.

Puxou o celular do bolso e discou o número do marido.

“Você ainda tá em casa?”, suspirou aliviada. “Preciso que você passe na farmácia pra mim, eu estou sem a receita. Tá na cômoda, segunda gaveta. Passa lá, por favor.”

Ao desligar o telefone, parecia mais calma. Do sorriso de outrora, no entanto, não restavam resquícios. Então, a amiga cruzou a sala e foi até ela. Sacou da própria bolsa um comprimido branco, pequeno e redondo.

“Não tem problema, amiga”, disse ela. “Você pode tomar do meu”.

Farmacolândia

Naquela noite, ao me deparar com um colorido comercial de Neosaldina na TV (“Chama a Neusa!”, proclamava o anunciante, como um padre pregando a salvação), não consegui evitar pensar em Marcela. Sempre me parecera uma mulher tão alegre – jamais imaginara que passava o dia todo medicada, todos os dias. Que aqueles sorrisos, no fundo, não eram realmente seus.

Uma rápida busca no Google trouxe dados espantosos: de acordo com levantamento da consultora IHS Health, o clonazepam (princípio ativo do Rivotril) é o 2.° medicamento mais vendido do Brasil, que, por sua vez, é o maior consumidor da substância no planeta. Somente em 2015, foram vendidas 23 milhões de caixas do tal “remédio-milagre” no país. A receita para o medicamento tarja-preta, segundo relatos de usuários, é distribuída em abundância pelos médicos – principalmente os ginecologistas (é o caso de Marcela). De repente, não conseguia mais ver meu país de nascença com os mesmos olhos. Deixamos para trás o estereótipo holywoodiano de uma terra de sol e sorrisos e nos tornamos uma espécie de Farmacolândia – os reis do remédio. Para todo problema, uma pílula. Para todo drama, uma drágea.

No centro desse cenário, persistem as perguntas: como surgiu essa legião de Marcelas, ingerindo comprimidos como gomas de mascar? Por que precisam – ou sentem que precisam – tanto dos fármacos para serem felizes? A resposta, é claro, não é simples. Mesmo no país dos medicados, nada é preto e branco.

A Lua de Camboriú

Eram quase quatro horas da manhã quando Breno* enfim terminou seu relato.

“Até hoje eu não sei o que eu estava fazendo lá. Eu acho que eu só queria mesmo ver a Lua”, riu, tragando um cigarro já no fim.

Estávamos sentados na calçada em frente à república estudantil onde ele morou por três anos. Lá dentro, a festa continuava, sem música alta para não perturbar os vizinhos – ninguém ali queria problemas com a polícia. Na

parede da sala onde os outros estavam reunidos, há um único retrato: uma Monalisa moderninha, de olhos vermelhos e baseado na boca. Compreendi rapidamente por que Breno, hoje com 24 anos e trabalhando como designer gráfico, quisera sair de lá. Enquanto me contava sua história, sua namorada fingia não ouvir. Era parte de um passado que preferia ignorar.

Aos 19, Breno foi passar um feriado estendido com os colegas de curso em Camboriú, em Santa Catarina. É claro que havia bebida, “muita bebida”: cervejas long neck, vodca barata, cachaça Ypióca sabor guaraná. Certa hora, a dona da casa lhe ofereceu uma cartela de clonazepam. “Minha irmã consegue à vontade”, dissera-lhe a menina, que supostamente tomava o remédio para acalmar uma ansiedade constante. Breno, já bêbado, ingeriu vários de uma vez – “nem lembro quantos, derrubei alguns no chão” – e depois disso não sabe bem o que aconteceu. Perdeu-se dos amigos a caminho de outra festa, e então tem a vaga lembrança de caminhar sozinho até a praia para (talvez) ver a lua melhor.

Acordou estatelado na areia com o olho direito inchado e sangrando. Um mendigo cutucava seu pé para acordá-lo. O sol estava prestes a raiar.

“Foi a pior noite da minha vida”, finalizou, jogando a bituca no bueiro.

O maquinário bioquímico

Eram seis da manhã e eu ainda estava intrigado com o relato de Breno. Como podia o mesmo remédio produzir efeitos tão distintos nesse maquinário bioquímico que é o corpo humano? Peguei o celular e abri o WhatsApp. Cliquei na foto de meu irmão, Felipe, doutorando em Bioquímica na Universidade de Genebra, e disparei as perguntas, esperando que já estivesse acordado por lá. Logo vieram as respostas, metade em texto, metade em áudios gravados no trem:

“O Rivotril é um benzodiazepínico. Ele aumenta o efeito de um neurotransmissor. A mudança nos impulsos nervosos reduz a ansiedade (efeito anxiolítico). Em doses altas, pode causar dissociação e amnésia anterógrada.”

Quando lhe questionei sobre os efeitos do clonazepam misturado com álcool, foi curto e enfático: “o álcool potencializa o efeito do remédio, que também potencializa o efeito do álcool. É perigoso pra c*****. Pode até matar.”

Perguntei sobre o potencial viciante do remédio. Felipe respondeu com a elegância habitual: “A tarja preta não tá ali de enfeite, p****”.

Mais tarde, chegou outra mensagem:

“O pior nem é o vício. É o efeito paradoxal – quando o remédio psiquiátrico causa justamente o efeito contrário do que deveria.”

Essa informação me deixou curioso, mas não quis mais perturbá-lo. Logo ia querer começar a cobrar pelas respostas.

Não precisei usar a imaginação por muito tempo, pois minha próxima fonte sabia exatamente do que se tratava o tal paradoxo.

Hambúrgueres e paradoxos

Quando me contou que sofria de depressão, Daniel* estava embriagado. Chorava da maneira compulsiva que só os bêbados sabem chorar. Meses depois, liguei para ele:

“Você tá tomando algum remédio?”, perguntei.

“Sim”, respondeu.

“Qual?”

“Ah, aquele que todo mundo toma – Rivotril.”

Bingo.

Enquanto devorava um enorme hambúrguer artesanal, com bacon e bechamel escorrendo pelas bordas, Daniel detalhou o tratamento que iniciara havia seis semanas. Raro mestiço de mãe negra e pai japonês, fala numa mistura peculiar de sotaque carioquês e gíria curitibana (“Os piás” vira “ush piáish”, e assim por diante).

“O pior de tudo é que esse remédio não tem feito diferença nenhuma na minha vida”, queixou-se. “Se fico sem tomar por uns três dias, meu cérebro entra em pane. Perco o equilíbrio de repente e estou sempre enjoado. E mesmo tomando, me sinto ainda mais ansioso. Tem toda uma pressão em cima de você: o remédio tem que te ajudar. É pra isso que ele serve. Se ele não funciona, parece que a culpa é sua. Aí você fica cada vez pior.”

Após devorar as fritas, começou um discurso contra a indústria farmacêutica:

“Os laboratórios enfiam isso goela abaixo do povo com a ajuda dos médicos. Mesmo minha mãe, que é super honesta, ganha pilhas de remédios de graça. Até viagem os laboratórios querem pagar para ela. Nunca gastei um centavo em remédios.”

Perguntei o que ia fazer, se o tratamento não estava indo como o planejado.

Um pouco constrangido, Daniel respondeu: “Vou ter que trocar de remédio, né?”

“Isto é uma porta”

Silvina e Antonio Godino Cabas são psicanalistas com um senso de humor. Perturbados por vizinhos pretensiosos, cujas portas são adornadas com placas douradas proclamando títulos como “Dr. Barroso, desembargador”, o casal decidiu retrucar. Abaixo do olho mágico, colocaram uma pequena plaqueta. Diz o letreiro: “Isto é uma porta”. Refugiados no Brasil durante a ditadura argentina, falam um português eloquente, tingido de um leve sotaque castelhano. “Essa é uma peculiaridade da medicina contemporânea: sua excessiva medicalização”, discorreu Godino, revirando um isqueiro e um cachimbo apagado nas mãos. “O paciente não é mais aquele que vem pedir uma cura, e tampouco alguém disposto a fazer um tratamento de longa continuidade. O paciente contemporâneo é um impaciente.”

Para o psicanalista, há um panorama epistêmico complexo por trás da cultura da prescrição medicamentosa excessiva. Nas últimas décadas, desde a descoberta dos neurotransmissores e da febre do Prozac, a eficácia do remédio psiquiátrico passou a ser tão inconteste quanto a de um implante ortopédico. A confiança na ciência se transformou na confiança absoluta na técnica.

“Tornou-se suficiente dar uma solução à queixa – não à doença! – do paciente. A medicina contemporânea é um verdadeiro western em países como o Brasil. A questão é quem é o mais rápido do faroeste, o mais rápido em remediar o mal. O objetivo imediato do médico passou a ser a melhora do ânimo do paciente”, disse Godino.

“Não são todos os médicos. Não sejamos maniqueístas”, interrompeu Silvina. O marido aproveitou a deixa para dar três tragadas lentas no cachimbo. “Muitas vezes, a medicação psiquiátrica é necessária. É possível que a análise não consiga reduzir certos graus de angústia que não permitem à pessoa dormir, comer, viver. Aí você tem que entrar com o remédio.”

“E é preciso considerar o panorama econômico: colocar um

médico para acompanhar um paciente é muito caro”, Godino enfatizou. “Se você puder substituir o médico por um técnico e um técnico por um produto químico, você faz uma considerável economia. E a medicina privada não ocupa esse nicho, porque tem como limite o impaciente que a consulta. O impaciente quer uma solução já. Ele vai insistir até encontrar o que procura – e vai encontrar. Isso está no espírito do nosso tempo.”

Por uma saída

Enquanto escrevo estas palavras, pensando em Marcela, Breno, Daniel e todos os milhões de brasileiros como eles, me dou conta do absoluto poder do zeitgeist Pois também cresci na cultura dos remédios, numa família com tantos médicos quanto hipocondríacos, em que muitos não dormem sem auxílio farmacológico. Anos atrás, passei por um período depressivo terrível, do qual consegui sair graças ao apoio de algumas pessoas próximas. Ainda hoje, sofro de episódios esporádicos dessa melancolia paralisante. Por isso, conheço de perto a angústia de quem busca conforto na química. Sei o que é estar diante de um gigantesco Nada, um vazio que te persegue até em sonhos, uma massa de morte com fome de você. Seria tão fácil arranjar uma receita com médicos conhecidos, ou ir a certas farmácias ou grupos no Facebook, ou então acessar a deep web em busca de medicamentos contrabandeados – mas não.

Porque há outra saída. Ainda tenho esperanças de ver a cultura mudar. Que mais pessoas busquem tratar as causas, que mais médicos olhem além das queixas, e que a medicação possa desempenhar seu verdadeiro papel: o de salvar quem realmente precisa.

* Nomes ficticios usados a pedido dos entrevistados.

IDEIAS

URBANAS

gazeta do povo

O desenhista

Como o arquiteto Abrão Assad fez de Curitiba sua tela viva

O arquiteto Abrã Assad na rua XV de novembro - uma de suas obras.

Fernanda Novaes

Ele vê Curitiba como uma folha em branco. Desenha sua silhueta moderna. Colore a vida dos cidadãos. Enxerga a alma das ruas, das calçadas e dos prédios. Entende todo o mecanismo que faz pulsar o coração da capital paranaense.

Tanto entende que desenhou uma parte de sua principal artéria, a Rua XV de Novembro. Palco de artistas, a Rua das Flores é o trecho inicial da Rua XV, a primeira grande via pública exclusiva para pedestres do Brasil. Inaugurado em 1972, o caminho das flores percorre um total de 3.300 metros. A extensão procura atender às funções sociais, econômicas e culturais dos curitibanos e, ao longo do caminho, exibe suas flores, cores e mosaicos portugueses que foram dispostos pedra a pedra no chão.

Ocoração exige trabalho! Imagina traçar outras partes do corpo. Ele aceitou o desafio. O desenhista fez a restauração do Teatro Paiol. Não foi fácil, a estrutura estava quase cedendo e o desenho teve que ser completamente a mão livre para poupar tempo. Nesse processo, a liberdade revelou-se uma obra-prima. As características únicas, representadas com traços arquitetônicos romanos em forma circular, foram mantidas e em 1971, 220 espectadores puderam contemplar o show de inauguração, com Vinícius de Moraes e Toquinho.

Depois, o foco virou-se para a natureza. O desenhista quis sentir as diferentes formas e texturas naturais. Desejou que o vento carregasse os aromas e guiasse sua mão. À procura desse encantamento, projetou o Jardim Botânico de Curitiba, que foi inaugurado no dia 5 de outubro de 1991. A criação era ambiciosa, misturava a geometria dos jardins franceses com uma estrutura metálica, estilo art nouveau, inspirada em um palácio de cristal que existiu em Londres, no século 19. Na época, as terras dominadas por araucárias recebiam um toque europeu que se tornaria um dos principais cartões-postais de Curitiba e do Brasil.

Para o desenho ficar completo, só faltou o sangue circular para desfrutar todo o potencial do organismo cheio de vida. O desenhista então criou as estações tubo, pontos de paradas de ônibus que protegem os cidadãos enquanto eles aguardam o veículo que os levará aos seus destinos.

Quem é o desenhista? O arquiteto Abrão Assad, responsável pelo olhar que transformou Curitiba e fez dela uma cidade modelo de planejamento urbano. Abrão e Toquinho compartilham uma filosofia: “Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo”.

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