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A cabala e o Ministerio del Tiempo

Juliano Klevanskis

Os assinantes da Netflix, provedora global de filmes e séries de televisão, que devotamente seguem a série espanhola de ficção histórica El Ministerio del Tiempo veem-se diante de um inusitado enredo: o ministério é uma instituição governamental secreta que se reporta diretamente ao primeiro-ministro espanhol e suas patrulhas vigiam as portas do tempo para que a história não mude. 1

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No quarto episódio da primeira temporada, intitulado “Una negociación a tiempo”, a série se edifica sobre uma tradição rabínica, designada pelo termo Cabala. Um dos protagonistas do episódio é um fictício cabalista espanhol. O episódio mostra que o Ministério do Tempo foi estabelecido em 1491 pela rainha Isabel I (apelidada de “Isabel, a Católica”) depois de obter o Libro de las Puertas diretamente do Rabino Abraham Levi em troca de proteção para ele e sua família contra a Inquisição. Mas o inquisidor Tomás de Torquemada o condena a morte. O advogado da família do rabino, no tempo presente, encontra documentos que provam que a rainha nada faz para protegê-lo e exige uma alta remuneração ao ministério em troca de silêncio. Assim, três agentes do ministério – os personagens Amelia Folch, Julián Martínez e Alonso de Entrerríos – são enviados a 1491 para salvar Levi.

A série segue as façanhas das patrulhas do ministério, que lida com incidentes causados por viagens no tempo. Alguns dos episódios, que mesclam história real e fictícia, remetem-nos ao período de ouro do misticismo judaico. Desvencilhando-nos da ficção, Gershom Scholem, filólogo e historiador da mística judaica, define o conceito de Cabala:

Em alguns episódios de Ministerio del Tiempo é possível refletir sobre imagens a partir da mescla de dois aspectos que Jorge Luis Borges considerou essenciais no tratamento da literatura fantástica: a viagem no tempo e o labirinto.

“Este movimento, com cujas etapas e A série aborda a história shom Scholem, creditam ter sido “escrito tendências principais precisaremos famiespanhola e assuntos provavelmente entre o século III e o IV”. 3 liarizar-nos, tem se desenvolvido desde os tempos talmúdicos até os dias de hoje; caros à história judaica: É possível dividir o seriado em dois ti pos de episódios. O primeiro tipo apre seu desenvolvimento foi ininterrupCabala, Inquisição, senta uma sequência de temas ligados a to, embora de forma alguma uniforme, Shoá. O uso destes assuntos judaicos, como o nazismo e a e muitas vezes dramático. Vai do Rabi temas em uma série cabala. Nesses, o fio narrativo é a vida e Akiva, que, segundo o Talmud, deixou o “Paraíso” da especulação mística são e salvo, tal como nele penetrara – o que televisiva talvez banalize assuntos mais profundos principalmente a obra de Abraham Levi, sobre a qual se baseiam as viagens no tempo, e que se encontra dentro do universo não se pode, na verdade, dizer de todos do que a TV consegue da Cabala. No restante do seriado, há dios cabalistas –, ao falecido Rabi Abraham lidar, mas, ao mesmo versos temas caros à história da Espanha, Isaac Kook, o líder religioso da comunitempo, populariza-os. seus personagens e fatos importantes. dade judaica na Palestina e um esplêndiNo terceiro episódio da primeira temdo espécime de místico judeu”. 2 porada, intitulado “Cómo se reescribe el

Assim, os criadores do seriado inserem a obra Libro de tiempo”, aparece o tema Nazismo. Heinrich Himmler, um las Puertas, de Abraham Levi, no rol de manuscritos mísdos principais líderes do regime nazista, é informado da ticos judaicos. Vale observar que aqui os criadores do seexistência de uma porta no Mosteiro de Montserrat e viariado poderiam estar remontando a importantes rabinos ja até lá. Ao mesmo tempo, há o encontro entre Adolf Hicabalistas espanhóis, dentre eles Avraham Abuláfia, autor tler e o ditador Francisco Franco em Hendaye. O episódio de “Livro do Justo”, “A Vida do Mundo”, “Luz do Intelecalerta para o perigo de os nazistas dominarem o mundo e to”, “Livro do Sinal”, “Palavras de Beleza”, obras do sécureescreverem a história. A patrulha composta por Amelia, lo XIII, e autor de comentários ao “Guia dos Perplexos” e Julián e Alonso é incumbida de evitar isso, enquanto Erao “Livro da Formação”. Esta última é uma das obras prinesto Jiménez e Irene Larra vão para Hendaye, onde Himordiais da Cabala, atribuída ao patriarca Avraham (cerca tler e Franco negociam a participação da Espanha na Sede 1800-1600 AEC), embora muitos, dentre os quais Gergunda Guerra Mundial.

No segundo episódio da terceira temporada, intitulado “Tiempo de espías”, reaparece o tema Nazismo. Os agentes viajam para 1943 para garantir o sucesso da “Operação Mincemeat”. O enredo vai fazer com que Hitler defenda a Grécia, ao invés da Sicília, fato crucial para a derrota nazista. Os personagens Ernesto e Lola são capturados e torturados pelos nazistas, depois enviados a um pelotão de fuzilamento. O cenário é o campo de concentração de Gurs, nos Pireneus franceses, construído em 1939 para reunir exilados espanhóis do regime de Franco e que acabou como prisão para judeus presos pelos alemães. Este é o campo de concentração no qual a filósofa Hannah Arendt ficou presa, juntamente com seu marido, Heinrich Blüche, quando a França foi invadida pela Alemanha, na Segunda Guerra Mundial. 4

No nono episódio da terceira temporada, denominado “El cisma del tiempo”, os Anjos Exterminadores – espécie de conspiração do mal – mantêm o rabino Abraham Levi como refém. Levi escapa ao ano de 1417, aparecendo no castelo de Peñiscola, onde se reúne com o Papa Bento XIII. Os agentes do tempo trabalham para libertar Levi e Bento com a ajuda dos últimos Cavaleiros Templários de 1317. Há muitos caminhos e épocas que se cruzam, tal qual um labirinto.

Em alguns episódios de Ministerio del Tiempo é possível refletir sobre imagens contidas na narrativa (o misticismo e diferentes espaços judaicos) a partir da mescla de dois aspectos que o escritor argentino Jorge Luis Borges considerou essenciais no tratamento da literatura fantástica: a viagem no tempo e o labirinto.

A viagem no tempo linear que conhecemos é uma marca da narrativa de Borges. Os contos “A casa de Asterión”, “Abenjacán, o Bokari, morto em seu labirinto” e “Os dois reis e os dois labirintos” conduzem o leitor por diversos labirintos. 5 E este tempo labiríntico remete à definição, de Ricardo Foster, da identidade do judeu forçado à conversão ao cristianismo, pela mesma Inquisição que vitima o personagem Avraham Levi:

“O marrano é aquilo que não representa e, ao mesmo tempo, representa aquilo que não é. Na impossível resolução desse conflito que cinde sua vida, esse ex-judeu cristianizado, que secretamente retorna às suas origens, esboça as linhas labirín

ticas de uma identidade cujo ponto de partida é o estalido, a fragmentação em mil pedaços de uma biografia que jamais poderá se reconstituir, precisamente nesse lugar onde mais se insiste na fidelidade à lei de Moisés”. 6

Os protagonistas da série são agentes de um ministério cuja missão é a manutenção da história espanhola, algo de certa forma análogo à tradição cabalista que, apesar das adversidades históricas, luta pela sobrevivência de suas obras, ao longo de uma história marcada por guerras e censuras, obras que perpetuarão pontos de vista, marcas, cicatrizes e monumentos.

A série aborda principalmente a história espanhola, mas também assuntos caros à história judaica: Cabala, Inquisição, Shoá. O uso destes temas dentro de uma série televisiva contemporânea talvez banalize assuntos mais profundos do que a TV consegue lidar, mas, ao mesmo tempo, populariza-os. Quanto à Cabala, a atual busca entre judeus e não judeus pela tradição mística judaica é um fato que não pode ser negado.

Uma possível razão para explicações espirituais mais profundas é a tentativa de entender grandes tragédias como a Galut, Inquisição, os pogromse a Shoá. Mas essa busca deve ser cuidadosamente direcionada. Infelizmente, há um amplo mercado para todo tipo de “produto místico”. O termo Cabala designa “tradição” ou “recebimento”: quem se dedica ao seu estudo é conhecido como Cabalista ou mekubal. A Cabala é a interpretação mística da Torá e foi aos poucos revelada por grandes sábios como Arizal (Rabi Yitschak Luria), Maharal de Praga (Rabi Yehuda Loewe), RaMHaL (Rabi Moshe Chaim Luzzatto), Baal Shem Tov (Rabi Yisrael ben Eliezer), entre outros de abençoada memória.

Juliano Klevanskis é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários (PósLit) da Faculdade de Letras (Fale) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), bolsista da Ca pes e pesquisador do Núcleo de Estudos Judaicos (NEJ) da UFMG. É membro da Comissão Cultural do Instituto Histórico Israelita Mi neiro (IHIM), professor de hebraico e escritor. Publicou a coletânea de contos Novos fármacos & outras histórias (Scriptum, 2019).

Referências Notas

1

2 3 4 5 6 A série Ministerio del Tiempo foi exibida na Televisión Española (TVE) em 2015- 16 e na Netflix a partir de 2017. Scholem, A mística judaica, p. 193. Scholem, A mística judaica, p. 76. Stolcke, Pluralizar o universal, p. 93-112. Nascimento, Borges e outros rabinos, p. 154. Foster, A ficção marrana: uma antecipação das estéticas pós-modernas, p. 10-11.

Foster, Ricardo. A ficção Marrana: uma antecipação das estéticas pós-modernas. Trad. Lyslei Nascimento; Miriam Volpe. Dentzien. Belo Horizonte: UFMG, 2006. Nascimento, Lyslei. Borges e outros rabinos. Belo Horizonte: EDUFMG, 2009. Scholem, Gershom. A mística judaica. Trad. Dora Ruhman [et al.]. São

Paulo, Perspectiva: 1972. Stolcke, Verena. “Pluralizar o universal: guerra e paz na obra de Hannah Arendt”. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 93-112, Apr. 2002.

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