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Nancy Hartevelt Kobrin
AS CRIANÇAS CORONAVÍRUS E OS CHAREDIM
Uma oportunidade de aprender e educar?
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Nancy Hartevelt Kobrin
Lembrei-me de uma cena do filme Witness (Testemunha) de 1985, sobre um menino amish de oito anos que, depois de testemunhar um assassinato, é arrastado para o mundo moderno. Em uma cena, o menino está em um banheiro público com seu pai, vestido com roupas amish tradicionais pretas. Enquanto a criança olha para a multidão confusa de estranhos, ele vê um judeu ultraortodoxo charedi, vestido com seu traje religioso austero preto. O garotinho tenta entender esse outro homem e descobrir onde ele “se encaixa” no esquema das coisas.
Foi dito, então, que a semelhança externa era uma ilusão e havia uma diferença real em substância. No entanto, a analogia falha em levar em conta a experiência interna do jovem garoto amish e a dos judeus ultraortodoxos. Ambos os grupos – amish e judeu – têm mundos internos muito diferentes, ricos, profundos e complexos. Suas distintas heranças históricas influenciam as fantasias e emoções que vinculam pensamentos conscientes e visões de mundo e, para cada indivíduo, a visão interna de seu senso particular de evolução pessoal.
Os psicólogos nos ensinam que as crianças tendem a “ler nas entrelinhas” quando começam a ter contato com o mundo além da mãe e da família. Ao entrarem nas casas de outras pessoas, elas se perguntam: O que realmente está acontecendo aqui? Quão semelhante ou diferente é este lugar do meu? Como essas outras crianças são tratadas – como eu, ou não? Há uma infinidade de perguntas não formuladas que surgem quando uma criança absorve o ambiente estranho como uma esponja, na tentativa de descobrir o mundo e tentar se sentir seguro nele.
Agora, quando todos nós experimentamos a pandemia mundial de coronavírus, essa “leitura nas entrelinhas” está agitando a mente das crianças charedim em Jerusalém, especialmente em Bnei Brak e muitos outros enclaves charedim em Israel. Essas mentes jovens tragicamente encontram o trauma do coronavírus ou o que foi chamado de “Haredi Hurricane Katrina”. 1 De fato, essas crianças já devem ter ouvido seus pais conversando sobre os filhos de seus parentes judeus na cidade de Nova York que estão de luto por seus pais, conforme relatado nos sites dos charedim. 2
Muitas das bem-informadas discussões sobre como as comunidades charedim na América e em Israel serão alteradas por essa experiência tenderam a se concentrar em três áreas – tecnologia, obediência a rabinos e economia/ mercado de trabalho. 3
De acordo com o Times de Israel: “O efeito real do vírus pode ocorrer aos poucos, ao longo do tempo e como parte de uma mudança mais ampla na cultura charedi. Não é um terremoto, mas seria um ponto de inflexão?” 4
No mínimo, para qualquer criança uma crise como essa é de fato um terremoto psicológico. Será que essas crianças irão se referir umas às outras como sobreviventes da Covid-19, de maneira semelhante às crianças sobreviventes do Holocausto, que se referem a si mesmas como primeira e segunda geração? É uma possibilidade concreta. Além disso, e ironicamente, muitos também são da geração do Holocausto, pois os charedim quase foram aniquilados durante a guerra junto com suas yeshivot, casas de estudo.
Embora, sem dúvida, muitos experimentem, infelizmente, as sequelas psicológicas e a retraumatização do impacto do coronavírus em suas comunidades fechadas, há uma possibilidade positiva de mudança que não foi mencionada até agora. Que eu saiba, ninguém mencionou o impacto da presença de membros da Força de Defesa de Israel, que tiveram pelo menos um contato pessoal fugaz com a comunidade e seus filhos. Assim, sob o coronavírus, foi permitido ao mundo exterior entrar na comunidade. As comportas parecem estar se abrindo.
Como psicanalista, não tenho dúvidas de que as crianças charedim estão tentando entender o que está acontecendo ao digerir tudo o que estão vendo, ouvindo e sentindo. As crianças charedim, muitas das quais vivem abaixo da linha de pobreza e em bairros lotados, foram ensinadas a chamar soldados das IDF (Forças de Defesa de Israel, na sigla em inglês) de nazistas. A ignorância e o medo entre os adultos foram transmitidos à sua geração. De repente, porém, meninos e meninas veem os soldados israelenses sob uma nova luz, como apoiadores em potencial que
lhes trazem comida, suprimentos e ajuAs crianças charedim, cia e conhecem bem as importantes tradam os doentes em suas famílias. Sua vimuitas das quais vivem dições médicas medievais judaicas da Essão de mundo está certamente passando por uma profunda alteração. abaixo da linha de pobreza panha e do Oriente Médio. Existem até rabinos contemporâneos que escreveram
Quando uma criança vive abaixo da e em bairros lotados, tratados sobre ciência. 8 linha da pobreza e não recebe o direito foram ensinadas a chamar Então, por que eles não ouviram as a um currículo básico que a educa para soldados de nazistas. De autoridades por semanas preciosas duo mundo moderno, ela fica com muitas necessidades psicológicas não atendidas. Por esse motivo, esses soldados israelenrepente, porém, meninos e meninas veem os soldados rante o surto inicial? Eu escrevi, em um artigo anterior sobre populações emocionalmente religiosas 9 , que eles estavam em ses estão ajudando inconscientemente esisraelenses sob uma nova profunda negação e se retiraram em seu sas crianças a aliviar as ansiedades que luz, como apoiadores. mundo religioso insular para conforto. O existem ao seu redor e acalmar as preocuque escrevo agora também é aplicável a pações específicas que absorvem pelos olhos de seus pais todas as crenças religiosas que estão tão profundamente e sentem no terreno emocional tácito da família e da viarraigadas em suas tradições que falharam em ver o escrizinhança. Naftali Moster trabalhou incansavelmente em to na parede em relação ao coronavírus. Nas comunidaNova York através de sua organização Yaffed 5 para estabedes cristã ou muçulmana, é claro, os detalhes da negação lecer um currículo moderno para os Haredim. serão diferentes. Aqui, abordo algumas das questões mais
Recentemente, tive o privilégio de ser voluntária com a importantes em relação à população charedi em Israel em Sarel 6 em um grupo enviado a Tsrifim (Bahad-16), o Corelação ao exército israelense. mando de Frente Interna da IDF (Pikud HaOref). Tendo A negação é uma curiosa defesa psicológica nascida da conhecido os soldados especialistas que lidam com desasexperiência da primeira infância com a mãe durante a fase tres e sabendo também que os paraquedistas do Batalhão de apego. Meu colega Norman Simms e eu escrevemos 890 e as brigadas de comando da 98ª Divisão foram enuma monografia referente em parte à questão da negação viados para os hotspots charedim, percebi que estas mis(lançamento previsto para novembro de 2020, com dosões não apenas foram sabiamente estratégicas para a conwnload gratuito em MentalitiesJournal.com). A negação tenção do vírus, mas também entendi que se produziu é transferida para a idade adulta de maneiras profundas, um encontro psicológico profundo entre o mundo secucomo acabamos de testemunhar com os rebeldes charedim lar e os charedim. 7 que não ouviram os avisos sobre a Covid-19. Esse fracas
As lembranças traumáticas que esses garotos charedim so faz parte do que foi chamado de efeito de apego (Loveguardam podem perfeitamente terem sido temperadas ao nheim, 2018), encontrado principalmente em associação testemunhar atos de bondade amorosa do “outro”, os solà liderança carismática e a uma mentalidade de grupo que dados israelenses. Pela primeira vez em muitas de suas jopermanece assustada demais para questionar. O Rebe Chavens vidas, eles encontram judeus de todas as diferentes deredi é apenas um imperador vestindo roupas invisíveis? A nominações religiosas, desde os reformistas aos ortodoxos negação é uma estratégia defensiva para proteger o eu frágil modernos e aos seculares, unidos a drusos, cristãos e mue subdesenvolvido de seus terrores que são profundos. Esçulmanos, homens e mulheres servindo juntos como solsas emoções poderosas surgem de necessidades psicológidados israelenses. É um momento educativo, que as IDF cas não atendidas – especialmente a necessidade de serem sabiamente aproveitaram. experimentadas, exceto como objeto para outra pessoa.
Mas, o que deu errado no mundo charedi que fez seus Para que não esqueçamos, mesmo esses rebeldes charabinos e o ministro da Saúde, um charedi, não levar a redim que falharam com os membros de suas comunidasério a pandemia de coronavírus até que as notícias de des foram, em geral, criados em isolamento social e pobreNova York chegassem a eles, onde muitos de seus correliza e, portanto, têm suas próprias ansiedades residuais de gionários estavam morrendo? É ainda mais curioso, connecessidades psicológicas não atendidas, necessidades insiderando que os charedim, em geral, entendem a ciênconscientes que alimentaram e construíram, uma postu
ra grandiosa e narcisista altamente defenPrecisamos lidar com Este ensaio foi publicado pela primeira vez siva. Eles também são das gerações sobreessas crianças, que em inglês no site https://americascivilwarviventes do Holocausto. Por causa da negação nas últimas semanas, muitos chase tornarão a próxima rising.org/the-coronavirus-and-haredi-children-an-educable-moment-dr-nancy-harredim morreram. Essa tragédia ainda está geração, agora, para que tevelt-kobrin/ em processo para as crianças. No entanse tornem cidadãos mais to, os olhos dessas crianças foram abertos engajados e ativos em Dra. Nancy Hartevelt Kobrin é psicanalista com e sua realidade foi profundamente alterada pelos soldados das IDF que as estão ajudando. Esta é uma janela de oportunipleno funcionamento para a melhoria da sociedade. doutorado em Literatura Islâmica. Ela estudou no Rio de Janeiro e em Lisboa. Fez aliá de St. Paul Minnesota e vive em Tel Aviv. Publicou os dade para todos nós abrirmos a discussão seguintes livros: The Banality of Suicide Terro sobre como melhorar as condições de vida dessas crianças rism, Penetrating the Terrorist Psyche, The Maternal Drama of the assustadas, oferecendo-lhes melhores oportunidades eduChechen Jihadi, The Jihadi dictionary e The Last Two Jews of Mo cacionais, melhores ambientes de vida, juntamente com gadishu Living under Al Shabaab’s Fire. ajuda psicológica.
Até o ano 2065, prevê-se que 49% das crianças israelenTraduzido do inglês por Giovanni Yannai Dossena Frank. ses serão Haredim. 10 Precisamos lidar com essas crianças, que se tornarão a próxima geração, agora, para que se torNotas nem cidadãos mais engajados e ativos em pleno funciona1 http://www.middleisrael.net/_ultra_orthodox_katrina_10_apr_20_/ mento para a melhoria da sociedade. Assim como a obser2 https://www.timesofisrael.com/more-basic-than-a-crisis-of-faith-will-the-virus-uvação sobre o menino amish e o homem charedi na cena 3 pend-ultra-orthodox-society/ https://en.idi.org.il/articles/31256. do filme Witness, temos que nos perguntar: é tudo super4 https://www.timesofisrael.com/more-basic-than-a-crisis-of-faith-will-the-virus-uficial e carente de substância? Pode haver uma maneira de pend-ultra-orthodox-society/ 5 https://www.yaffed.org manter diferenças culturais e ainda assim viver pacífica e 6 https://www.sar-el.org cooperativamente em um mundo ou nação compartilha7 https://www.haaretz.com/israel-news/.premium-israeli-soldiers-are-sure-they-re- dos? A crise do coronavírus nos encoraja a mergulhar fun8 -saving-this-ultra -horodox-coronavirus-hot-spot-1.8750121 https://www.timesofisrael.com/more-basic-than-a-crisis-of-faith-will-the-virus-udo nos problemas psicológicos que assombram as comunipend-ultra-orthodox-society/ dades charedim, bem como a sociedade israelense em ge9 https://itct.org.uk/archives/itct_article/the-danger-of-the-coronavirus-in-emotionally-religious-populations ral. É uma rara oportunidade de mudança que nós todos 10https://www.jewishpress.com/news/israel/report-by-2065-49-of-israeli-children- não devemos ter medo de abraçar. -will-be-haredi -so-quem-irá-trabalhar / 2019/11/12 /

