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Dois Povos – Dois Estados?

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Exil[h]ado

Exil[h]ado

O povo judeu tem muito trabalho a fazer em seu próprio seio: se libertar das amarras de um obsoleto judaísmo ortodoxo, retornar à sua vocação de justiça e liberdade, reviver a ligação vital Israel-Diáspora num diálogo de linguagem atualizada, tolerante, realista. E Israel terá que negar a validade da atual subcultura política, ignorante das bases éticas que inspiraram os líderes do renascimento nacional e do almejado Estado.

Vittorio Corinaldi

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Dois Povos. Dois Estados: nestas palavras se sintetiza em essência a solução para o conflito de mais de um século entre judeus e árabes no disputado território de Israel/Palestina.

O que para muitos parece um axioma indiscutível, por ser a opção mais verossímil dentre as possíveis vias de saída do conflito, pode, porém, ser analisado por ângulos diversos, e segundo critérios que variaram em épocas diferentes e em condições que passaram por transformações de ambos os lados.

O Sionismo, que se afirmou como um movimento de relevância política no panorama mundial a partir da ação visionária e ao mesmo tempo prática de Theodor Herzl, surgiu numa época em que em várias partes da Europa em meados do século XIX se formavam novas nações na onda de guerras e movimentos de unificação de pequenos estados e fragmentos de territórios que compunham impérios e monarquias já não condizentes com os acontecimentos históricos num mundo em crescente industrialização e mudança.

Esse fenômeno, caracterizado por um acentuado espírito de entusiasmo patriótico e nacionalista, se manifestou por exemplo na formação da moderna Alemanha ao redor da Prússia sob a liderança de Bismarck, e no “Risorgimento” italiano encabeçado por Cavour e Mazzini, e que se revestiu também de aspirações de liberalismo social.

À diferença, porém, daqueles, o movimento Sionista não contava com a existente base territorial que se incorporou à expressão concreta das reivindicações daqueles povos. E foi buscá-la na ressurreição da memória ideal do país de Sion.

Pouca atenção podia chamar então a existência de uma depauperada população árabe na remota província otomana da Palestina. Mesmo assim, desde aqueles inícios houve vozes que se pronunciaram em favor do estabelecimento de um estado binacional, pressentindo o contingente de atrito que viria a se criar com a crescente imigração judaica e as inevitáveis contradições éticas que se seguiram. Figuras ilustres como Martin Buber ou Gershon Sholem se contam entre estas.

As condições objetivas que se criaram ao redor deste assunto no decorrer do século XX provêm de vários fatores: *O aparecimento na região das novas potências coloniais (Grã-Bretanha e França, cujas políticas após a queda do Império Otomano foram sempre de defesa de seus interesses, mas com visível preferência pela causa árabe, que tinha atrás de si toda a massa dos povos do Oriente Médio e seu potencial econômico. As raras exceções a esta regra, como a Declaração Balfour, não contradizem a tendência geral). *As duas guerras mundiais, que trouxeram abalos à estrutura geopolítica da região. *O Holocausto do povo judeu, o trauma profundo, que deu ao movimento de redenção nacional um caráter de trágica urgência. *A criação do Estado de Israel, que foi o coroamento de um esforço heroico de salvação, sobrevivência e construção num irrepetível momento histórico. *A hostilidade dos países árabes naquele momento e por muitos anos a seguir, que conferiu a esse esforço legitimidade internacional e consenso solidário no mundo judaico.

Todos estes fatores fizeram calar qualquer discurso de coexistência. Ademais, os sentimentos nacionalistas judaicos ganharam força depois da vitória militar da Guerra dos Seis Dias (1967), e abriram o campo para ideais messiânicos da “Grande Israel” e o movimento dos assentamentos na Cisjordânia. Este, iniciado por um inadvertido consentimento do Movimento Trabalhista, recebeu ilimitado fomento com a subida ao poder da direita do Likud, chegando à realidade de hoje, que é de uma presença difusa da colonização judaica em pleno meio de densa população árabe. Seja qual for a fórmula a que se queira chegar para responder aos desejos das duas partes, é evidente que tal presença só pode criar obstáculos para o entendimento.

Apesar das repetidas declarações em favor da fórmula dos dois Estados para os dois povos (a mais lembrada das quais é a famosa afirmação feita anos atrás em conferência na Universidade Religiosa Bar-Ilan), Netanyahu e o Likud nunca tomaram qualquer iniciativa nesse sentido, e vêm jogando a responsabilidade pela prolongada interrupção de negociações sobre a Autoridade Palestina, com o fabricado argumento da recusa desta em reconhecer Israel como Estado judeu: um típico recurso da direita sionista, que desde os tempos do Revisionismo e seu líder Jabotinsky põe mais peso sobre afirmações declarativas do que sobre a ação pragmática: pois que importância prática teria um tal proclamado reconhecimento (que, de qualquer modo, o lado palestino teria dificuldade em externar) quando a realidade do Estado judaico é viva e funcional, e não necessita de frases retóricas para ser sancionada?

E mesmo sabendo que o lado árabe nunca primou por uma equilibrada interpretação das circunstâncias de momento político e não deixou de ter sua parte na obstrução das negociações, o impasse vem servir os verdadeiros interesses da direita, na qual o ramo dos partidários da inspiração divina para o assentamento na Terra Prometida exerce uma forte pressão sobre o Likud e o governo para impedir qualquer medida em direção a um Estado palestino. Ele é alimentado pelo imprevisível comportamento do presidente americano Trump, e pelo apoio dos crentes evangelistas, que moldam sua atitude política segundo o inflexível ditame missionário de sua leitura da Bíblia.

A posição unilateral de Trump encontra naturalmente plena aprovação de seu amigo Netanyahu: que governo israelense iria se opor à transferência da embaixada americana para Jerusalém, desde sempre a capital do Estado em que nenhum país quis até agora estabelecer sua representação? Por que iria se opor à anexação jurídica e prática dos assentamentos e do solo usurpado sobre o qual se erguem, se os Estados Unidos a apoiam – ora velada, ora abertamente, em conformidade com momentâneas considerações eleitorais? Por que recusar um projeto decididamente tendencioso como o “Deal” proposto pela administração americana, redigido por conselheiros em boa parte judeus refratários à presença de uma consistente população árabe?

Por muito tempo, o lado árabe não cooperou para realmente levar avante qualquer projeto de solução. Depois da assinatura do acordo de Oslo em cerimônia solene, Arafat não se apressou em transformar seus termos em atos de prática aplicação – ora se entrincheirando na questão dos

refugiados, ora se sujeitando à intransigência de grupos islâmicos radicais, ora contemporizando em passos de criação de confiança mútua.

Com isto, ao mesmo tempo em que os assentamentos se reforçavam no agarramento ao solo palestino, tomava vulto a ideologia fanático-religiosa pregada por rabinos militantes de um fascismo clerical que, com sua retórica de incitação, foi capaz de conduzir ao inimaginável assassinato de Rabin. Agora, a divisão de mandatos na Knesset, obtida depois de três turnos de eleições e da mais inexplicável reviravolta do partido “Azul e Branco” sob pretexto da emergência pela “Corona”, denota uma clara maioria para a direita, e um clamoroso enfraquecimento da esquerda. Esta mantém um ínfimo potencial de influência apenas graças ao bom resultado obtido pela Lista Árabe Unida.

A este propósito, convém observar o que se passa entre os árabes de Israel. Sua trajetória na sociedade israelense apresenta um balanço de integração e desenvolvimento econômico. Em certas profissões, como a Medicina e a Farmacologia, sua posição é de destaque e essencial dentro do esquema nacional de saúde. O mesmo pode-se notar em vários outros setores.

Esta tendência é paradoxal se considerarmos a longa linha de discriminação e limitações a que vêm sendo submetidos desde a “Autoridade Militar” (“Memshal Tsvaí”) dos primeiros anos da independência (abolida pelo primeiro ministro Levy Eshkol no período de seu exercício). A incitação assume proporções preocupantes nos anos de poder do Likud, e obteve sua máxima expressão na inútil e desnecessária “Lei da Nacionalidade” recentemente aprovada.

Foi o que levou à fusão dos numerosos pequenos partidos árabes, que pleiteavam – cada um com seu determinado acento – a representação daquela minoria. Mas levou também a um surto de simpatia de uma parte do eleitorado judeu, descontente com a crescente limitação das liberdades democráticas e a ofensiva contra o poder judiciário. Uma colaboração árabe-judaica que nascesse de um teórico partido conjunto poderia sugerir um modelo para uma solução de convivência.

Mas que perspectivas podem realmente se ver para a almejada implantação dos dois Estados? Em base à referida situação eleitoral e à persistência do endereço de direita da maioria do público israelense, o Estado palestino não tem probabilidade de surgir num futuro visível.

Por outro lado, não se pode deixar de pesar uma série de novas considerações, que se fazem necessárias sob um prisma global.

O próprio conceito de nação está hoje sujeito a dúvidas e contestações devido à mudança de realidades – uma das quais, e não a desprezível dentre elas, é a expansão da

atual epidemia de “Corona”: esta não respeita fronteiras, nem diferenças raciais, sociais ou nacionais. Os efeitos econômicos e sociológicos que se anunciam para os anos a vir afastam para um grau de surrealismo fantasioso aspirações messiânicas e ilusões de grandeza ou superioridade como aquela propagada pelos rabinos e seus discípulos das “yeshivot” do Sionismo religioso radical.

O quadro que se descortina é o de uma agravada continuação da ocupação militar, da usurpação de propriedade, da limitação brutal de movimento dos cidadãos, do tratamento cada vez mais violento e indiscriminado na busca de “terroristas” – classificação que abrange todos aqueles que protestam (às vezes em condições de desespero) contra a situação intolerável de seu povo.

Esta é a visão que a direita cultiva de um Estado binacional. O único veículo de protesto agora acessível é o Partido Árabe Unido. Se ele se demonstrar capaz de patrocinar uma coexistência com a maioria judaica de Israel, pode-se sonhar com a paralela imagem de uma coexistência da minoria judaica no Estado palestino: numa atmosfera de respeito mútuo, cada um dos lados poderá manter seu legado cultural e sua identidade. A materialização deste sonho poderá se chamar “Estado binacional” ou “Dois estados para dois povos”, em função do detalhado caráter que venha a assumir o almejado acordo. E poderá evoluir para uma fórmula definitiva que somente uma nova geração saberá enunciar, depois de um período de controlada experiência.

Até que esta aparentemente utópica imagem se concretize, o povo judeu tem muito trabalho a fazer em seu próprio seio: se libertar das amarras de um obsoleto judaísmo ortodoxo, retornar à sua vocação de justiça e liberdade, reviver a ligação vital Israel-Diáspora num diálogo de linguagem atualizada, tolerante, realista. E Israel terá que se desfazer de um governo corrupto, nocivo, repleto de personalidades medíocres, porta-vozes de interesses setoriais ou individuais que formam sua plataforma. Terá que negar a validade da atual subcultura política, ignorante das bases éticas que inspiraram os líderes do renascimento nacional e do almejado Estado: o Estado que agora, há 72 anos de sua proclamação, é solicitado a pesar com consciência e honestidade a justificativa de sua existência.

Vittorio Corinaldi é arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-SP), vive em Israel desde 1956. Foi membro do Kibutz Broch Chail e atuou em diversas funções ligadas à arquitetura, ao planejamento e à organi zação dentro do movimento kibutziano.

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