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O inferno moral dos justos
Ruth Kelson
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Apergunta sobre o Mal acompanha a humanidade desde os seus primórdios e proveio quase que necessariamente das religiões. O assim denominado “O Problema do Mal” foi enunciado da seguinte forma: “Como pode um Deus bom criar um mundo cheio de sofrimento inocente?”
A Teodicéia, ou seja, “a justiça de Deus”, termo criado por Leibniz no século XVII, tenta responder esse paradoxo, explicando e justificando Deus diante da existência do mal no mundo.
Em 1961, a filósofa judia alemã Hannah Arendt acompanhou em Jerusalém, como repórter da revista The New Yorker, o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, acusado de ser o encarregado de coordenar o transporte dos judeus de toda a Europa para os campos de concentração, aonde seriam exterminados. No livro que escreveu a respeito: Eichmann em Jerusalém, ela introduziu uma nova concepção de Mal, diversa da concepção usual do Mal Radical, que seria uma inata propensão ao Mal e o que denominou de “Banalidade do Mal”.
Nesse livro alertou que o pior Mal, o de maior alcance e destrutividade, geralmente não é cometido em condições da monstruosidade patológica do agente, porém, de sua banalidade, do abandono de si mesmo e de sua responsabilidade moral.
Durante o julgamento, observou que Eichmann, assim como a totalidade dos nazistas anteriormente julgados, alegou em sua defesa que unicamente cumprira com o seu dever. Que não podia ser responsabilizado por seus atos,
pois as ordens de Hitler, que sem dúvida executou o melhor que pôde, possuíam força de lei no Terceiro Reich. Para o sistema legal nazista então existente, ele nada fizera de errado.
E não se arrependia: “Arrependimento é para criancinhas”. Quando perguntado quanto à sua consciência, respondeu que ela só lhe pesava quando não cumpria o que lhe fora ordenado: embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com grande aplicação e o mais meticuloso cuidado.
Para Hannah Arendt, Eichmann foi um burocrata obediente, o típico agente da “Banalidade do Mal”: alguém que não pensa. Abdicou do pensamento e de seu julgamento moral e anulou-se como pessoa, exercendo a atitude burocrática e corriqueira da simples e irrestrita obediência, na base de pequenas ambições, oportunismo, indiferença moral e um desejo feroz de conformidade a qualquer preço.
Apesar da monstruosidade de seus atos, dele não se podia extrair qualquer profundidade diabólica ou demoníaca. Ele não era nem pervertido, nem sádico, nem insano, mas terrível e assustadoramente normal. E era normal na medida em que “não era uma exceção dentro do regime
nazista”. Não era movido por nada pior do que o desejo de agradar a seus superiores fazendo bem o seu trabalho, movido principalmente por desejos mesquinhos de sucesso pessoal. Orgulhava-se de exercer a “obediência incondicional” que jurara a Hitler.
O nazismo fora constituído principalmente por estes homens banais, que apenas deslizam sobre a superfície dos acontecimentos e se deixam levar adiante. É a sua normalidade que é monstruosa.
Disse Arendt: “Os criminosos nazistas renunciaram voluntariamente a todas as qualidades pessoais, como se não restasse ninguém a ser punido ou perdoado. Durante seus julgamentos no pós-guerra, quase todos alegaram não serem os responsáveis pelos crimes e que apenas obedeciam as ordens” de Hitler.
A consciência de Eichmann falava com a voz da sociedade respeitável à sua volta. Para os assassinos e seus cúmplices, bastava que tudo acontecesse de acordo com a vontade e a palavra do Führer, às quais foram incapazes de opor seu próprio julgamento.
O que significa que o maior mal possível foi cometido por um “Ninguém”, isto é, por um ser humano que se recusava a ser uma pessoa. Para Arendt, ser uma pessoa é
distinto de ser meramente humano. Falar Perguntou Hannah ria-prima eram seres humanos e o produem personalidade moral é uma redundânArendt: “Como estes to final, a morte. cia. A Personalidade é o resultado quase automático do pleno exercício da capacialemães comuns Pois foi a comunidade organizada que coordenou os esforços para implementar dade de pensar. foram transformados o objetivo ordenado por Hitler: a Solução
E, no entanto, esse Ninguém era o tínos perpetradores do Final, o genocídio judaico. Diante dele, as pico funcionário do Holocausto que, ao extermínio em massa? igrejas oficiais quase sempre mantiveram abdicar de sua liberdade e autonomia, praticou a pior forma de mal, um mal sem raízes e sem arrependimentos, um Quanto tempo leva uma pessoa mediana para silêncio. Diante da desumanidade organizada, todos os departamentos da burocracia estatal, todos os ministérios e todo mal que um burocrata pode realizar, um superar sua repugnância o serviço público cooperaram. fantoche pode realizar, alguém que não inata pelo crime?” O Holocausto foi um sucesso tecnopensa pode realizar: o mal na forma da lógico e organizacional de uma sociedaBanalidade do Mal. de burocrática preocupada com os procedimentos corre
Em uma carta à Gershom Scholem ela escreveu: Mitos, as minúcias e a obediência às leis segundo regras mennha opinião agora é que o Mal é apenas extremo e não possui suráveis e impessoais. nem profundidade nem qualquer dimensão demoníaca. Ele O extermínio em massa dependeu de habilidades e hápode invadir tudo e assolar o mundo inteiro precisamente porbitos que melhor se desenvolvem e medram na atmosfeque se espalha como um fungo na superfície. Essa é a sua bara do escritório, na tediosa rotina burocrática. A burocranalidade. Apenas o Bem tem profundidade e pode ser radical. cia tende a transformar homens em funcionários, meros
Para Kant, filósofo alemão nascido no século XVIII, a dentes da engrenagem administrativa, e, assim, a desumacapacidade de distinguir o certo do errado pertence ao donizá-los. Tornados apenas um elo intermediário numa camínio da razão. É a faculdade do pensamento que impedeia de ações, distanciam-se das consequências finais de de o mal. E o faz por uma questão de dignidade humana, seus atos. E o comportamento moral passa a equivaler a de respeito por si próprio. O padrão da verdade para o hoconformidade e obediência social às normas observadas mem emancipado, aquele que “ousa pensar”, deve ser o eu pela maioria. e não o mundo. Ao transgredir este imperativo, a pessoa se Nenhum horror perpetrado pelos tecnocratas alemães contradiz a si mesmo, à sua razão, e por isso se despreza. era inconsistente com a visão consagrada da ciência de que
Portanto, a liberdade é o pressuposto para o julgamenos valores são inerentemente subjetivos, de que as ações to moral. Kant definia a liberdade como obediência à Lei não têm valor moral intrínseco e de que a ciência deve ser Moral que um sujeito autônomo dita para si mesmo. A heinstrumental e livre de valores. Não lhe cabe ver a humateronomia significa abdicar desta liberdade ao permitir que nidade dos objetos humanos. O processo tecnológico gaalguém pense ou aja por si. nha autonomia de quaisquer propósitos morais, sendo-lhe
Diferente da ordem política legal de determinada codesnecessária qualquer outra justificação além do reconhemunidade que não requer integridade moral, mas apenas cimento de que a tecnologia disponível a tornou possível. cidadãos respeitadores da lei, a ordem moral é obrigatória É o poder que diz o que é certo – e este é o senso comum para todos os homens. E quando lhe é tirada ou quando ele de nossa moderna sociedade racional. O Holocausto foi abdica de sua autodeterminação, da escolha de si próprio, o um morador legítimo da casa da modernidade. homem vira meio. Deixa de ser sujeito, torna-se coisa, obPerguntou Hannah Arendt: “Como estes alemães cojeto destituído de sua humanidade, de sua essência. muns foram transformados nos perpetradores do extermí
Zigmund Baumann, em seu livro Modernidade e Honio em massa? Quanto tempo leva uma pessoa mediana locausto, mostra como o Holocausto foi um produto legípara superar sua repugnância inata pelo crime?” timo da mentalidade racional da civilização moderna para Os assassinos, na maioria, não eram sádicos ou crimia solução de problemas. Auschwitz teria sido uma extennosos por natureza; ao contrário, foi feito um esforço sissão mundana do moderno sistema fabril, em que a matétemático para afastar todos aqueles que sentiam prazer fí
sico com o que faziam. Segundo Arendt, o problema que se apresentava na consecução da “Solução Final” não era tanto como superar a consciência moral dos agentes, mas sim a natural piedade animal que afeta todo homem normal em presença do sofrimento físico.
Era recomendado evitar recrutar para os grupos de extermínio ou como guardas dos campos de concentração os mais sádicos ou os mais fanáticos. As iniciativas individuais eram desencorajadas. O esforço era manter toda a “tarefa” num quadro estritamente impessoal, prático e eficiente, preservando a sanidade mental e os padrões morais dos subordinados. A lealdade à sangrenta tarefa devia derivar da lealdade à organização. Instintos inferiores, disfuncionais para a capacidade de agir, eram indesejáveis. Uma multidão de indivíduos vingativos e homicidas não igualaria a eficiência de uma pequena, mas disciplinada, burocracia estritamente coordenada.
A disciplina substituía a responsabilidade moral. Negar autoridade à consciência pessoal tornava-se a mais elevada virtude moral. A responsabilidade moral pertencia única e exclusivamente ao chefe, o Führer, e o caráter moral da ação era invisível ou propositalmente encoberto.
Burocratas compunham memorandos, redigiam planos, participavam de conferências. Podiam destruir todo um povo sentados em suas escrivaninhas. As ligações causais entre as suas ações e o assassinato em massa eram difíceis de distinguir. A distância entre as intenções e as realizações práticas era preenchida por uma infinidade de atos insignificantes em que cada um fazia coisas em si mesmas inofensivas. Os dilemas morais saíam de vista e se tornavam cada vez mais raras as oportunidades para um exame cuidadoso e uma opção moral consciente. Esta é também a característica da guerra moderna: torna as vítimas psicologicamente invisíveis através da distância e do uso da tecnologia.
Como distinguir o certo do errado independentemente da lei se a maioria do ambiente já prejulgou a questão? Arendt indaga: “Não são apenas os bons que são incomodados pela má consciência, que é rara entre os criminosos reais?” Contra a esmagadora maioria do povo alemão que acreditava em Hitler, havia um número indeterminado de indivíduos isolados, conscientes da catástrofe nacional e moral e que sobreviveram à decadência moral de toda uma nação. Que, sem jamais fraquejar, se opuseram a Hitler. Eles podiam ser encontrados por toda parte, em todos os estratos da sociedade, entre as pessoas simples, assim como entre os educados. Tinham de decidir sobre cada caso quando ele surgia. Diante da impotência de agir, os


que resistiram, ou pelo menos se abstiveram, foram os únicos capazes de julgar por si mesmos.
Para Arendt, exige-se que os seres humanos sejam capazes de diferenciar o certo do errado, mesmo quando tudo o que têm para guiá-los seja apenas o seu próprio juízo, que pode estar inteiramente em conflito com a opinião unânime de todos à sua volta. A responsabilidade é individual. Não existe culpa coletiva ou inocência coletiva.
A Moralidade se manifesta na insubordinação face aos princípios socialmente sustentados e numa ação em desafio ao consenso social. Mesmo se condenada pelo grupo, a conduta individual deve ainda assim ser moral. A autoridade e a responsabilidade pelas opções morais repousam na pessoa.
A conduta de inspiração moral não pode ser atrelada a nenhum propósito, ela é autônoma, é um ato gratuito. É o não pensar que impede o juízo, bloqueia a capacidade que temos de dizer “isto é certo” ou “isto é errado”. Os resultados do pensar são incertos e não verificáveis. O pensar é como o véu de Penélope: desfaz toda manhã o que tinha acabado na noite anterior.
Os diálogos de Sócrates são aporéticos, não produzem definições nem resultados. Provocam as pessoas a pensar, sem dar em troca a verdade. A busca de significado dissolve e examina de novo todas as doutrinas e regras já aceitas. O pensamento tem um efeito destrutivo e solapador em todos os critérios estabelecidos, nos valores e nas medições do bem e do mal, nos costumes e nas regras de conduta. Ficam somente perplexidades.
É o diálogo socrático entre eu e mim que leva os homens a absterem-se de fazer o mal. Disse Sócrates: “É melhor estar em desacordo com o mundo todo do que estar em desacordo comigo mesmo”. Preciso deste acordo, pois falo e vivo comigo mesmo. O eu é a única pessoa de quem não posso me separar, com quem estou fundido.
Para Arendt, o horror inexprimível do Nazismo teria nascido da autonegação do homem, da abdicação de sua responsabilidade como pessoa, da renúncia à sua autonomia, abandonada nas mãos do primeiro louco que se apresentou. Os homens, isolados uns dos outros, o Um das sociedades totalitárias e da sociedade de consumo é realmente um Nenhum, a massa, o indiferenciado, o que aponta a morte da individualidade, apesar da retórica extremamente individualista do mundo contemporâneo.
Para Sócrates, somente as coisas merecedoras de amor podem ser pensadas: a sabedoria, a beleza, a justiça, etc. A
feiúra e o mal aparecem como deficiênPara Arendt, o horror Para Derrida, a abominação ao acaso cias, falta, não têm raízes próprias, neinexprimível do Nazismo e à contingência motivou a longa marcha nhuma essência que o pensamento pos sa apreender. O Mal consiste em ausên teria nascido da da humanidade para uma ordem perfeita e imutável, para a norma arrogante do decia, privação, negação, em algo que não é. autonegação do homem, terminismo e da transparência cognitiva Apenas as pessoas investidas de Eros, desda abdicação de sua do mundo. Necessitamos escapar do sense amor desejoso de sabedoria, beleza e responsabilidade como tido unívoco e restaurar o valor do indejustiça são capazes de pensamento. É o Bem que é radical, porque tem raízes, profundidade, o que equivale a dizer pessoa, da renúncia à sua autonomia, abandonada terminado em sua justa condição de base de todo ser. Expor a impostura das tentativas de eliminá-lo de todo. nuances, contradições, luzes e sombras. nas mãos do primeiro Nos totalitarismos nazistas e stalinistas As ideologias que alimentaram a horrenlouco que se apresentou. só existiam certezas, determinismos, leis da maldade dos totalitarismos, achatando da natureza ou da história. Atualmente o a realidade em um rígido determinismo, eram totalmente bastão da autoridade está investido nas mãos da ciência, banais e superficiais. que se diz a detentora da última palavra no que diz respei
Arendt constatou que Eichmann não pensava, ou seja, to à verdade. O que faremos se a ciência determinar o dede que havia abdicado de sua autonomia em favor da obesaparecimento de pedaços inteiros da natureza ou da hudiência a Hitler. Ele concedeu a Hitler o poder de pensar manidade? O que faremos se ela nos der o modelo inconpor si. Este é o comportamento típico da “Servidão Votestável de como a natureza deveria ter sido feita e arroluntária”, que alivia o peso das massas de ser um alguém. gantemente empreender esta engenharia reparadora? Ao Tornando-se um Ninguém, ele abdicou de si mesmo, e se tentar possuir e domar o inabarcável, nós nos empobrecetornou com isto agente deste Mal Banal, um Mal que não mos terrivelmente. se responsabiliza por si mesmo. Para Zigmund Baumann, as únicas forças capazes de
Para o judaísmo, os 10 mandamentos são impositiconter e isolar o destrutivo potencial genocida da modervos, são referências fixas e indiscutíveis. Porém, mesmo a nidade são o pluralismo, que devolve ao indivíduo a resTorá, considerada sagrada, é aberta a infinitas interpretaponsabilidade moral pelas suas ações, e a ambiguidade, ções, como se vê no Talmud. Faz parte da tradição judaique a mentalidade moderna acha tão difícil de tolerar. Em ca afirmar que quanto mais santo, quanto mais elevado é Modernidade e Ambivalência ele cita Hans Jonas: “... o hoo sábio, o Tsadik, mais ele se sente responsável pelas conmem autêntico está sempre lá e esteve lá durante toda a histósequências de suas ações e por tudo o que acontece à sua ria conhecida, nas suas alturas e profundezas, na sua glória e volta. Ele é atormentado, vive um inferno moral, pois sua em seu tormento, na sua justiça e culpa – em suma, em toda consciência é mais alargada e assim também sua autoexia sua ambiguidade, que é inseparável da sua humanidade”. gência. Ele não tem “um outro” em quem jogar o peso de suas responsabilidades. Não tem um Führer que seja seRuth Kelson, médica, fez mestrado em Ciências da Religião na nhor de sua vontade. Ele se indaga constantemente: está PUC-SP em 2011 com o tema da Banalidade do Mal de Hannah certo o que fiz? É justo? Arendt. Trabalho apresentado no Seminário NEMES da PUC-SP
Para Zigmund Baumann, Deus deu aos homens atraem 28/11/2014. vés de Moisés um texto para interpretar e não uma coleção de proposições definidas. O processo de interpretação Bibliografia é interminável, jamais pode acabar, nunca chegará ao fim. A dádiva de Deus para conosco foi a da ambivalência e a Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, Companhia das Letras, 1999. capacidade de viver com ela. Zigmund Baumann, 1998. Modernidade e Holocausto, Jorge Zahar Editora,
Susan Neiman considera que a integridade requer esta Zigmund Baumann, Modernidade e Ambivalência, Jorge Zahar Ediafirmação da dissonância e do conflito. Significa reconhecer tora, 1999. que nunca estamos metafisicamente à vontade no mundo. Susan Neiman, O Mal no Pensamento Moderno, Difel, 2003.
