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Indo ao resgate do filho rebelde e desobediente

Ao mesmo tempo em que reconhecemos na Torá uma fonte inesgotável de significados, entendemos que estes podem ser atualizados.

Pablo Schejtman

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Exigência

Aordem dada no livro de Devarim / Deuteronômio é direta, e o procedimento a ser seguido com um filho rebelde e desobediente é detalhado nessa mesma passagem.

Se, mesmo depois de ter sido punido, ele continuar a desobedecer, seus pais o apresentarão perante a cidade e o deixarão à mercê dos anciãos. Eles deverão declarar publicamente seu mau comportamento e seus vícios. Por fim, ele será apedrejado até a morte.

A sequência descrita envolve reconhecer o problema dentro de casa e aplicar um corretivo. Caso não haja mudanças na conduta, deve-se recorrer ao espaço comunitário e se submeter à sentença da autoridade.

A cessão definitiva do destino do próprio filho ao beit din (tribunal), por si só, já desperta desconforto no leitor. Entretanto, a execução do garoto por apedrejamento recebe nossa imediata reprovação.

Ao mesmo tempo em que reconhecemos na Torá uma fonte inesgotável de significados, entendemos que estes podem ser atualizados. O caso em questão – o episódio do filho sorer u’morê (Devarim / Deuteronômio 21: 18-21) – demanda de nós um esforço de ressignificação.

Desequilíbrio

Se um chefe de família tiver um filho rebelde e desobediente, que não der ouvidos ao seu pai ou à sua mãe e não lhes obedecer mesmo depois que eles o disciplinem. 1

Um filho rebelde e desobediente. Mas quem é esse filho? Em princípio, ele é um insurgente “contra Deus e contra seus pais (se estes forem pessoas tementes a Deus)” (Ibn Ezra sobre Deuteronômio 21:18:21). Sorer u’morê está imerso em uma longa história de degradação da autoridade parental, a tal ponto que “sua contumácia removeu qualquer esperança de que seu estilo de vida viesse a se modificar” (Sforno sobre Deuteronômio 21:18:21). Parece ser alguém cuja rebeldia vai além do escopo familiar.

Depois que eles o disciplinem. Nossos Sábios definiram um protocolo estrito para essa punição. “Eles deverão discipliná-lo: ele será advertido diante de duas [testemunhas] e será açoitado diante de três; e se, mesmo depois de ter sido açoitado, ele não lhes der ouvidos, deverão obrigá-lo a se apresentar perante o beit din” (Sanhedrin 71a; Sifrei Devarim 218:11).

Denúncia

Seu pai e sua mãe o pegarão e o levarão para fora até os anciãos da sua cidade, no local público de sua comunidade.

Seu pai e sua mãe o pegarão. Observe que, em cada estágio, quer da punição no âmbito privado (Dt. 21:18), quer da exposição pública perante a cidade (Ibid. 21:19) – ou, como veremos a continuação, o ato declaratório (Ibid. 21:20) – a Torá conjuga a atividade dos pais na terceira pessoa do plural. Durante os três primeiros versos de uma sequência de quatro, eles – o pai e a mãe, como uma unidade – serão sempre os tomadores de decisão e os agentes. Além disso, o filho “não se torna um ‘sorer u’morê’, a menos que ambos assim o determinarem (que assim o desejarem)”. (Midrash Agadá Deut., 21:18:2)

O levarão. Essas duas pessoas, novamente qualificadas em 21:19, como seu pai e sua mãe, não o conduzem com gentileza, senão que preferem tomá-lo e levá-lo [retirá-lo] de casa. Além disso, aquele que foi retirado sequer é um filho deles, no momento em que o texto faz referência a “ele, isso”, por meio de um otô, que, apesar de estar sintaticamente correto, é um termo impreciso. Embora sua afiliação natural tenha sido confirmada, entre o primeiro e o segundo passuk, o ‘ben sorer u’morê’ foi objetificado, transformado em uma pessoa absolutamente incapaz, que não poderá recuperar a capacidade de tomar decisões sobre si mesmo.

Nesse aspecto, a descrição bíblica coincide com as prescrições clínicas atuais nos casos de pessoas que padecem de compulsão e dependência química.

Em ambos os casos, o sujeito indicado deixa de ser reconhecido por seus parentes, tornando-se um estranho no ninho, alguém ou algo que desperta em sua família o sentimento do sinistro (Freud, 1919). É comum encontrar em tais famílias o desejo de expulsá-lo, de se livrar dele.

Se agora voltarmos à situação descrita no primeiro versículo da série (surdez voluntária, desobediência e punição inócua), esse ‘otô’ pode ser entendido de maneira mais ampla e sistêmica. O privado tornado público representa um cenário familiar completo (outro otô), isso, no qual estão envolvidos não apenas um, mas todos os membros da família.

Segundo o passuk, esse drama íntimo, essa ferida interior aberta ao mundo, é dirigida a dois públicos. Um deles é o contexto comunitário, aparentemente informal: minha rua, a esquina, o bairro – aquele espaço comum, próximo e significativo.

No local público de sua comunidade. Nada aqui acontece em segredo. Ao contrário, a Torá prescreve uma exibição de desordem familiar e da insuficiência de ambos os pais diante dos olhos da vizinhança. Essa vem a ser uma primeira esfera de exposição, talvez antecipadora do apedrejamento coletivo.

A segunda, os anciãos da sua cidade. 2

Cessão

Eles dirão aos anciãos da sua cidade: “Este nosso filho é desleal e desobediente; ele não nos dá ouvidos. É um glutão e um beberrão”.

Esta declaração dá permissão ao apedrejamento. E di

rão ... não nos dá ouvidos.

Reconhecemos em nossos Sábios um esforço para manter os regulamentos, limitando ao extremo a sua aplicabilidade. Em Sifrei Devarim 20:4, por exemplo: “Se um deles (pai ou mãe) tivesse uma mão decepada, ou fosse coxo, mudo, surdo ou cego, [isto] faria com que [o filho] não se tornasse um soror u’morê. Está escrito ‘e eles o tomarão’ e isto não seria possível se tivesse a mão decepada; ‘e eles o levarão’, o que não seria possível se fossem coxos; ‘e dirão’, e não se fossem mudos; ‘este, nosso filho’, e tampouco se fossem cegos, ‘não dá ou-

vidos à nossa voz’, e não se fossem surdos Beneinu reconhece o outra maneira, será digno da pena de mor(nesse caso, não poderiam ouvir sua recusa pertencimento irredutível te”. (Sifrei Devarim 220: 3; Sanedrin 72a) em prestar atenção ao que dizem). Ele é advertido diante de três (juízes) e são aplicae a responsabilidade O caráter preventivo do apedrejamento é respaldado pelo Midrash. Por um das chibatadas. Se ele voltar ao seu erro, ele mútua dentro do núcleo lado, usando o critério da redução de daserá julgado por vinte e três, mas não será familiar. E assim possam nos: “Previamente, ele é julgado com base apedrejado, a menos que os três primeiros recuperar para si um filho. em seu comportamento futuro: porquanto é estejam entre eles, uma vez que está escrimelhor que ele morra enquanto é inocente to ‘Este, nosso filho’, cujas chibatadas foram e não sendo culpado [por pecados mais graaplicadas na sua frente – por aqui, somos ensinados que se um ves]”. Por outro lado, a penalidade é justificada pela extradeles morrer, ele não poderá ser apedrejado”. polação dos limites da família para os fundamentos da so

Rambam também o entende dessa maneira: “A morrelevantes: quando a fé se debilita ou quando se comete um ciedade: “Uma variante: ‘sorer’ – contra as palavras de seu Execução pai; ‘u’morê’ – contra as palavras de sua mãe. ‘Sorer’ – contra as palavras da Torá; ‘U’morê’ – contra as palavras dos profetas. Por isso o conselho da sua cidade o apedrejará até a mor‘Sorer’ – contra as palavras das testemunhas; ‘U’morê’: contra te. Assim você varrerá o mal de seu meio: todo Israel ouas palavras dos juízes”. (Sifrei Devarim 218:7) virá e temerá. Tentando resolver a contradição entre o conceito de

Em circunstâncias ordinárias, os tribunais judaicos apeGênesis 21:17, Rosh Hashaná 16b), R. Eliyahu Mizrahi nas decretariam a pena de morte como uma punição sevesugere que esse filho tivesse começado a trilhar um camira por crimes já cometidos, considerados pela Torá como nho de rebeldia. sendo antissociais. Existem diferenças significativas entre o Apesar da insistência nas razões das leis ben sorer u’morê, presente caso e outras situações de crime capital na lei. Seas regras devem ser consideradas de uma forma tão estrigundo a Mishná, o que esse filho recebe é “nidon al shem ta que não podem ser aplicadas na prática. De fato, parece sofo” (julgado a partir do seu fim). provável que elas nunca tenham sido aplicadas.

te determinada pelo Tribunal de Justiça acontece em casos Ressignificação “nidon al shem sofo” e “ba-asher hu sham”(‘onde está agora’, grande crime, a saber, idolatria, incesto, assassinato ou ações No apedrejamento, o caráter exemplar importa, como que levam a esses crimes. É decretado ainda mais quando se determina o passuk “e todo Israel ouvirá e temerá”, e o Siviola o Shabat (Êxodo 31:15); ...um falso profeta e um anfrei Devarim (220:1) esclarece: “Quer dizer que toda a pocião rebelde são executados por causa da desordem que caupulação da sua cidade o apedreja? A intenção é, na verdasam; quem bate no pai ou na mãe é assassinado por sua grande, [que aconteça] na presença de todas as pessoas da sua de audácia e porque faz ruir a constituição da família, que é cidade”. O apedrejamento permitiria “learchik et haadam a base do Estado. Um filho rebelde e desobediente é exemeaverá” (afastar o homem da transgressão). cutado pelo que poderia se tornar, porque provavelmenMas, em face da óbvia inviabilidade dessa solução, pote será um assassino...”(Maimônides, 1190, III. 41:11). demos recorrer a outro princípio: o de shalom bait, ou seja,

Na mesma linha de raciocínio, Rashi esclarece (sobre promover a paz no lar em um contexto mais amplo, conDeuteronômio 21:18:3) que “o filho rebelde e desobedienforme foi expressado no Talmud, Shabat 23b: “De igual te é executado por causa do destino ao qual necessariamente maneira, se [em uma família de baixa renda] se encontrar conduzirá o curso da sua vida (não porque seu crime atual o diante de um impasse entre comprar óleo para acender uma faça merecedor da morte)... A Torá entendeu sua última dislâmpada para sua casa ou vinho para a santificação [kidush] posição: no final, deteriorará a propriedade de seu pai e busdo Shabat, a lâmpada da sua casa tem prioridade, por caucará em vão os prazeres aos quais está acostumado, ficará à essa da paz no lar [ao evitar que essa família venha a jantar preita na encruzilhada e roubará as pessoas, e de uma ou de no escuro] ”.

A esse respeito, trazemos o começo de Sanedrin 88b: “Aquele filho rebelde e desobediente, cujo pai e mãe queiram perdoá-lo por seu comportamento de glutonaria e embriaguez, podem fazê-lo”.

Para tanto, uma proposta de significação possível se encontra na releitura do versículo 21:20, o terceiro de nossa série. Lá vamos nos aprofundar na expressão beneinu (nosso filho) que os pais expressaram a uma só voz.

Desde esse ponto de vista, beneinu é a peça que faltava, é a cerimônia de retomada da paternidade e da maternidade, que estiveram ausentes no otô do passuk anterior (21:19). Beneinu reconhece o pertencimento irredutível e a responsabilidade mútua dentro do núcleo familiar. Talvez, parar em beneinu possa inibir a entrega, restringir a tentação dos pais de denunciar e renunciar ao ben sorer u’moré. E assim possam recuperar para si um filho.

Recapitulando: a família tinha partido do centro da sua interioridade, passando do espaço privado para o público. Ela avançou ao buscar os cohanim ou o juiz (ou a autoridade competente) que havia naqueles dias e foi-lhes demandado que esclarecessem seu veredito (ou sua indicação), a ser executado de acordo com tudo o que ensinassem (Deut. 17: 9-11).

Cabe então às instituições metaforizar a morte por apedrejamento que começa em 21:21. Elas, as instituições, devem traduzi-la como o tratamento mais adequado entre os disponíveis nestes dias.

Ela deve ser entendida como o fim de um ciclo no qual a instituição e a comunidade intervêm ativamente. E ain

da mais: deve-se reinserir, retornar seus proscritos e seus condenados.

A recuperação ocorre, por exemplo, quando uma certa dinâmica familiar disfuncional se esgota, dando lugar a uma nova dinâmica. Ou quando paramos de depositar o Mal em alguns, a fim de justificar a sua aniquilação. Ou ainda, quando decidimos transformar uma certa ordem social que se sustenta no medo.

Pablo Schejtman é estudante de Rabinato no IIFRR – Instituto Iberoamericano de Formação Rabínica Reformista – e membro da SIC – Sociedade Israelita do Ceará.

Traduzido do espanhol por Kelita Cohen.

Notas

1

2 Traduções conforme a edição em português do livro A Torá do rabino W. Gunther Plaut, a ser lançado pela UJR em 2021. A tradução da Torá utilizada inverte a ordem das expressões “os anciãos…” e “local público…” para melhor legibilidade em português.

Referências

Berger, Sh. (2017) Sanedrín 71a-b: castigo preventivo. A partir del Talmud Bavli Koren con comentario del rabino Adin Steinsaltz, URL: https://steinsaltz.org/daf/sanhedrin71/ Freud, S. (1919). Lo siniestro. Obras completasdeSigmund Freud. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. Maimónides, M. (1190). Guia de descarriados, Barcelona, Obelisco, 1997.

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