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Pandemia, ciência, política e religião

Renata Leborato Guerra e Ilan Gottlieb

Na vigência de uma pandemia, a ciência deveria ser a estrela-guia da humanidade ao fornecer as informações necessárias para lidarmos com um agressor invisível e mortal. Mas, supreendentemente, na maior pandemia que as gerações atuais já viveram, a ciência foi uma das que mais sofreu agressões à sua imagem, credibilidade e integridade. Esse fenômeno certamente merece um estudo, pois, dependendo de como digerirmos o papel da ciência nessa pandemia, poderemos ter tempos vindouros de absorção e nutrição pelo progresso que ela nos proporciona ou, contrariamente, de regurgitação e consequente desnutrição.

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O conhecimento científico foi o fator primordial que permitiu que a humanidade chegasse ao formidável estágio em que se encontra hoje. Como um barco à vela que mareia ziguezagueando ao vento, a humanidade vem cambaleante vencendo a entropia da natureza, usando a ciência como bússola. Prolongamos assustadoramente o tempo de vida das pessoas, controlamos doenças que matavam em abundância no passado, reduzimos a uma fração as mortalidades infantil e materna de apenas 200 anos atrás. Em 1798, Thomas Malthus explicava que as mortes de milhares de pessoas por escassez de comida eram inevitáveis e que só iriam piorar, porque “a população cresce exponencialmente e os meios de subsistência crescem aritmeticamente”.

Revoluções científico-tecnológicas o provaram errado. Desde o nascimento da agricultura há aproximadamente 10 mil anos, os seres humanos vêm modificando geneticamente sua comida, selecionando os grãos mais resistentes, mais

O momento atual é o melhor que já vivemos na história da humanidade. Incrível como a ciência, principal instrumento que nos fez chegar até aqui, seja tão incompreendida.

produtivos e de crescimento mais rápido. Verdades absolutas provarmos que não há vida fora da TerEntre 1961 e 2009, a quantidade de terra introduzidas no mundo ra deveríamos vasculhar todo o Univerutilizada para agricultura aumentou 12%, enquanto a quantidade de comida produpela religião qualificam so, algo impossível. Para comprovar a hi pótese contrária (chamamos isso de hi zida aumentou 300%, reduzindo a fome a cultura onde pótese nula), basta achar um extraterrese a miséria a uma pequena fração do que afloram as verdades tre. Cientificamente, não podemos dizer era há apenas 100 anos. transitórias da ciência. que não há vida fora da Terra, mas apenas

Às vezes, pode não parecer, mas o moque, procurando sistematicamente, ainda mento atual é o melhor que já vivemos na história da hunão encontramos evidências de que há vida, ou seja, uma manidade! Incrível como a ciência, principal instrumento verdade transitória. Como disse Popper: “Nenhum númeque nos fez chegar até aqui, seja tão incompreendida. Ciênro de observações de cisnes brancos pode comprovar a teocia não é um objetivo, mas um caminho; não é fé absoluria de que todos os cisnes são brancos. Apenas um cisne ta, mas incerteza bem informada, não é crença, mas fato. negro já prova essa teoria errada”.

Fato com incertezas incorporadas e não verdade abA diferença entre verificabilidade e refutabilidade soluta. pode parecer um detalhe teórico menor, mas faz com

A ciência é uma forma de testar e compreender o munpleta diferença, pois resolve um dos maiores problemas do natural, a partir do desenvolvimento cultural no sécuda interpretação da ciência que é a indução humana, ou lo XVII que valorizou o pensamento crítico, e aprimorada seja, interpretação de resultados de estudos científicos a ao longo do tempo. Envolve o emprego de observação cuipartir de hipóteses que apenas confirmem alguma ideia dadosa, seguida por formulação e testagem rigorosa de hipreconcebida. Parece que essa pandemia trouxe de volta póteses que possam explicar essa observação. Esse procesà superfície as discussões do Círculo de Viena de mais de so deve ser repetido por diferentes investigadores para que um século atrás. Ideias preconcebidas por indução humaos achados sejam confirmados, cada um colocando um na poluíram a discussão sobre eficácia e segurança de mepequeno tijolo no muro do conhecimento, sustentando e dicamentos, estratégias sociais de combate ao vírus e posendo sustentado pelos outros tijolos. Foi a isso que Isaac líticas governamentais. Newton se referiu quando disse “se hoje eu enxergo mais Vejamos o exemplo icônico da hidroxicloroquina nos longe, foi me apoiando no ombro de gigantes”. dois primeiros meses da pandemia. Aqueles que, antecipa

Um dos estudiosos mais importantes do método ciendamente, eram contra o uso deste medicamento concluítífico foi Karl Popper (1902-1994), um austríaco que faram que “a hidroxicloroquina tem maior risco de morte zia parte do famoso “Círculo de Viena”. A dominante dispor arritmia cardíaca”, baseados em estudos que não tivecussão da época era sobre a demarcação da ciência, a linha ram tal postulação como hipótese verdadeira ou falsa. Por que separa teorias científicas de outros campos como meoutro lado, aqueles que, antecipadamente, eram a favor do tafísica e mitologia. medicamento concluíram que “a hidroxicloroquina dimi

Pare agora e pense: Como você definiria o que é ciênnui a mortalidade pela Covid”, baseados em relatos (e não cia? A definição dominante na época usava o critério da estudos) que, da mesma forma, não tiveram tal postulação verificabilidade: as postulações científicas deveriam ser vecomo hipótese verdadeira ou falsa. rificáveis. Por exemplo, a postulação “não há vida extraterHá ainda duas questões imprescindíveis para a interrestre” pode ser verificada, enquanto a postulação “a alma pretação dos achados de um estudo. A primeira diz resé imortal” não pode ser verificada e, portanto, está fora do peito à possibilidade de vieses (erros sistemáticos ou aleaescopo científico. tórios) que potencialmente contaminam os resultados de

Popper defendia, no entanto, que a refutabilidade era um estudo, e a segunda, ao grau de incerteza associado ao melhor critério que a verificabilidade. Por este critério, o resultado encontrado. Ambas estão intimamente ligadas, objetivo da experimentação é rejeitar que a hipótese do de forma que, quanto maior o número de vieses de um escientista seja falsa. Este duplo negativo complica a frase, tudo, maior o grau de incerteza nos seus resultados. Exismas é possível simplificá-la com um exemplo. Para comtem diferentes tipos de estudos, cada qual com seu grau

de possibilidade de vieses e consequente importância, analogamente representada por diferentes tamanhos de tijolos no nosso muro do conhecimento. Mas temos que notar que mesmo os estudos mais robustos ainda apresentam algum grau de incerteza, pois eles corrigem os erros sistemáticos, mas erros aleatórios apenas podem ser estimados.

Os estudos com menor possibilidade de vieses devem preferencialmente ser utilizados para a tomada de decisão, mas tais estudos exigem mais tempo, recursos e estrutura. Diante da urgência em meio a uma pandemia, estudos minimamente bem desenhados, ainda que representando pequenos tijolos, podem ser utilizados para pautar decisões, desde que reconhecidas as suas limitações, e apenas até que melhores dados sejam apresentados.

Ao contrário da religião, a metodologia científica, de fato, pressupõe que não há verdades absolutas, apenas transitórias. Ao mesmo tempo, e de forma paradoxalmente irônica, é a verdade absoluta da dignidade de todo ser humano, criado igualmente à semelhança de Deus, e também a verdade absoluta da transcendência de Deus, que está fora da natureza e, portanto, não a influencia, que permite a investigação humana quanto ao funcionamento da natureza e a proposição de métodos objetivos para domesticá-la. Essas verdades absolutas introduzidas no mun

do pela religião qualificam a cultura onde afloram as verdades transitórias da ciência.

O aspecto transitório da ciência a fortalece porque não permite acomodação. Diante de um problema real e iminente, devemos, de forma isenta, usar os dados científicos disponíveis para tomar decisões, sabendo que informações futuras podem nos fazer mudar de direção, sem que a decisão inicial tenha sido errada, e sem que isso signifique a falência do método científico. O que se deve evitar a todo custo é a utilização de fragmentos de informação científica desconexos para provar um determinado ponto político. Política é atividade humana, para a qual a ciência é absolutamente cega. Não devemos deixar o mau uso da política sequestrar a ciência.

Há um legado fantástico a ser extraído dessa pandemia. Momentos como esse, quando temos a atenção mundial sincronizada, é oportunidade única de evoluirmos como humanidade. Que esse infortúnio de 2020 sirva como ocasião para discutirmos as diferenças entre informação e conhecimento, entre religião e ciência, entre ética e oportunismo, entre política e politicagem.

Renata Leborato Guerra e Ilan Gottlieb são médicos pesquisadores e vivem no Rio de Janeiro.

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