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Exil[h]ado
Rabino Sérgio R. Margulies
É mais fácil para um judeu sair do exílio do que o exílio sair dele
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– Sh Levin (1867-1935)
Oexilado despejado do lugar, alienado do tempo e desenraizado de sua condição ao fugir leva o que pode. Buscando reverter os trapos que a vida se tornou, anseia pela normalidade possível. Se pouco – às vezes até nada – traz consigo, envolve-se com as referências inalienáveis da identidade que o constituem como ser. Carrega os estilhaços da vida despedaçada para reconstituí-los como viável em outra situação.
Ser exilado é uma condição entranhada na jornada judaica. Segue de lugar em lugar para que possa simplesmente ser o que é, realizar o desejo básico de viver com liberdade, ter a chance de concretizar sonhos e de, se preciso, lidar com a frustração dos sonhos fracassados.
Ser exilado é sentir-se fraco, pois à mercê dos que decidem ao sabor de seus desejos ou interesses, expulsar, rasgar direitos e suprimir a dignidade. Estes exilados, no entanto, em reversão se fortalecem com uma esperança renovada. Não uma esperança envolta pelo desvario ilusório, e sim lapidada pelas árduas lições da história. Estas lições são preciosos instrumentos para construir a vida e, quando necessário, reconstruir.
Ser exilado é carregar as bagagens da vivência pessoal e coletiva inconfiscáveis pelos déspotas. Com esta bagagem aporta num novo lugar. Ao abrir a bagagem que carrega também se abre para incorporar o que brota da sociedade na qual se estabelece. Vive, então, a dualidade de trazer o passado e vislumbrar
Líderes espirituais das comunidades judaicas sempre residiram e trabalharam sem distanciamento dos constituintes de suas congregações.
um futuro. Para poder alavancar o potenA santidade não está no judaicas sempre residiram e trabalharam cial que o futuro esperançosamente armaexílio do mundo – numa sem distanciamento dos constituintes de zena, abastece-se das referências do passado. Este passado evita o sentimento de caverna real ou simbólica suas congregações e sem afastamento das pressões do cotidiano que afetam a todos. solidão diante dos desafios que enfrenta. – e, sim, na vontade de Esta concepção aprofunda a capacidade Para cultivar este passado reproduz, sob a atuar neste mundo a cada de atuação religiosa ao abranger as vicisforma de núcleos comunitários, os modia. Santidade não é ser situdes que todos enfrentam. O ensinadelos e costumes de seu lugar de origem ou pelo menos de algum de seus lugares de origem. Simultaneamente, em movium náufrago desgostado com a realidade que mento do Capítulo da Ética dos Pais, ‘não se separe da tua comunidade’, se aplica a todos e, neste sentido, também aos seus mento oposto, segue para integrar-se na encontra refúgio numa líderes. De outro modo, o líder e a conova sociedade. É o estado líquido do ex- ilha de isolamento. munidade estariam exilados uns dos ou-exilado: congela em seu convívio comutros, como se cada um fosse uma ilha isonitário o passado e absorve a fluidez do vapor de uma solada do convívio. ciedade porosa. O filósofo Martin Buber (1878-1965) exprime com es
Seres exilados: não mais um indivíduo e sim uma copecial beleza que a santidade encontra-se nos afazeres do munidade, uma congregação. Dois mundos: o de ontem cotidiano e no convívio. A santidade não está distante e e o de hoje, o lugar que já foi e o que é. O que em dado sim próxima, e até, quem sabe, nem próxima, já conosco: momento faz sentido, com o transcorrer do tempo pode“Come-se em santidade, saboreia-se a comida em santidará não mais fazer, e, assim, estes espaços comunitários que de, e a mesa torna-se um altar. Trabalha-se em santidade, reproduziram no novo lugar o antigo, tornam-se ilhas do elevando as centelhas escondidas em todas as ferramenexílio, daí a expressão exil[h]ados. tas. Anda-se em santidade através dos campos e as suaves
Enquanto o exílio era imposto pelo desespero, manter melodias das espécies, que emitem sua voz para Deus, enuma ilha isolada do contexto maior que aufere liberdade é tram nas canções da nossa alma. Bebe-se em santidade um uma decisão que contradiz a missão religiosa de levar os vacom outro e com as companhias, e é como se eles lessem lores humanitários para o mundo. Esta concepção se coada Torá juntos. Dança-se em roda em santidade e o brilho duna com a determinação do código de leis Shulchan Arureluz no encontro. Um marido une-se com sua esposa em ch (séc. 16) de estabelecer a necessidade de janelas na sinasantidade e a Shechiná (presença divina) repousa neles”. goga, pois através delas há uma troca entre os mundos interno e externo, entre o mundo sacro e o mundo profano. Como o vivo pode negar o vivo? – Talmud
Nenhuma religião é uma ilha – A. J. Heschel (1907-1972)
O sagrado e o profano. Um vivenciado ritualisticamente no templo e outro no cotidiano mundano. Categorias vistas como estanques, como se o ambiente se tornasse sagrado ao estar à margem das questões ordinárias. A suposta pureza religiosa ficaria assegurada ao se isolar dos assuntos corriqueiros. É a vida religiosa exilada do mundo. É o templo visto como uma ilha à parte.
O judaísmo compreende que a espiritualidade não é uma esfera afastada da concretude do dia a dia. Ao contrário, a dimensão do sagrado encontra expressão através da realidade vivida. Assim, o rabino Abba Hillel Silver (1893- 1963) observa que os líderes espirituais das comunidades
A santidade que se isola da vida provoca o exílio da religiosidade da vida e, aí, a santidade deixa de ser santidade. Torna-se refúgio da incapacidade de fazer brotar as sementes do sublime que existem em cada situação. Ao invés de reclusão, a santidade é inclusiva, pois vislumbra a construção da vida através de conexões. Uma passagem da tradição judaica lembra que o rabino Shimon Bar Iochai (séc. 2), ao fugir da perseguição dos antigos romanos, passou anos numa caverna. Ao sair dela estranhou e criticou a dedicação de tantos aos assuntos mundanos. Então, uma voz celestial o repreendeu e o ordenou a voltar para a caverna. Após esse novo período, ao deixar a caverna apreciou as tarefas de cada um e as obras realizadas. Este episódio ensina que a santidade não está no exílio do mundo –

numa caverna real ou simbólica – e, sim, O estreitamento que vislumbra o futuro a ser lapidado e não o na vontade de atuar neste mundo a cada recusa as perguntas e retorno a um tempo que não existe mais dia. Santidade não é ser um náufrago des gostado com a realidade que encontra re modula as colocações é ou sequer existiu. fúgio numa ilha de isolamento. como uma orquestra de Traduttore, traditore
A antropóloga Marta F. Topel, proum só instrumento. Mas fessora da USP, descreve a frustração de o judaísmo é uma sinfonia O ditado italiano, num jogo de paum jovem com a visão religiosa que não de múltiplos sons: escuta lavras, diz que a tradução é uma traição. responde as relevantes questões da vida: “Minha crítica aos rabinos é não só que e reverbera a vida. A tradução que tenta reproduzir o original num outro idioma é uma traição, pois não respondem as suas perguntas, mas cada língua tem suas peculiaridades. Tamnão deixam você fazer perguntas”, e conclui que falam do bém a tentativa de transpor uma linguagem espiritual de tefilin, mas não do sexo. Este estreitamento que recusa as um lugar e de um tempo para outro pode ser uma tradiperguntas e modula as colocações é como uma orquestra ção se desconsiderar que cada lugar e época exigem uma de um só instrumento. Mas o judaísmo é uma sinfonia de linguagem própria. Assim, também – num novo jogo de múltiplos sons: escuta e reverbera a vida. palavras –, a tradição é traída. como referências um passado mítico e absoluto. É o refúA tradição é traída quando, ao invés, sugere o rabino Como uma língua, a religião perece se cessa de mudar Richard Hirsch (1926-), de trabalhar para espiritualizar a – Zangwill (1864-1926) política cede à politização da espiritualidade. Neste senti
Há o exilado geográfico que, ao deslocar-se de um lugar ses que contradizem a essência de seus valores há a traição para outro na busca de melhores condições de vida, foca de traduzir para a espiritualidade multifacetada a polarizana integração à sociedade que o acolhe. Há o exilado espição e há a traição da tradição que abdica da missão de esritual, que desenvolve uma identidade defensiva. Mesmo tabelecer o convívio apregoado pelo profeta bíblico Malaque integrado como cidadão, cria uma singularidade rechi [Malaquias]: “Então os tementes a Deus conversaram clusa, separada das questões que emergem no mundo em uns com os outros e [aí] Deus atentou e ouviu”. Que não que se insere. É uma polarização interna. sejamos como ilhas afastadas uns dos outros para que a di
Esta identidade defensiva e ilhada em si mesmo ergue mensão divina não seja exilada de nós. do, quando a prática religiosa é subserviente aos interesgio ilusório que nega a realidade. O próprio sonho – tão O Rabino Sérgio Roberto Margulies serve na Associação Religiojudaicamente acalentado – de transformar esmorece, pois sa Israelita do Rio de Janeiro (ARI).
