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Feminismo. Para quê?

Na maior parte da história da ciência ocidental, inicialmente restrita ao campo da filosofia, a mulher foi reduzida a um ser frágil e sem controle sobre seus instintos, cuja função primordial seria a reprodução.

Marcia Rozenthal

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Os judeus sempre deram muita importância às palavras, valorizando sobremaneira a função e o peso que elas têm por representarem, de forma sintética e simbólica, um conjunto a partir das características mais marcantes de suas partes. O reconhecimento destas características exige agudeza no discernimento e profundidade na compreensão daquilo que é nomeado.

A Torá conta que, após criar Adão, Deus lhe trouxe todas as criaturas do Céu e da Terra, para que ele lhes desse um nome. Como nada do que consta nesse livro é por acaso, pode-se dizer que nomes não se referem a meras convenções ou conveniências. Também fica claro que Adão, primeiro ser humano, provável protótipo de nossa espécie, teria a capacidade de identificar as características e a essência de cada criatura, e de representá-las por palavras. Podemos observar que também os nomes dos personagens bíblicos, longe de serem aleatórios, têm, como característica, um profundo significado relacionado às suas histórias ou missões.

Conceito de feminilidade e as palavras

Esta introdução serve de base para enfocarmos, a partir do estudo das palavras, um tema bastante atual, que é o conceito de feminilidade. Este termo é, sem sombra de dúvidas, extremamente controverso e motivo de muitas querelas em nossa sociedade.

Podemos começar observando que o A mulher foi bilidade de migrar pelo corpo e, depenórgão que melhor expressa a feminilidade, por estar presente apenas na mulher, é o útero. Sigamos, pois, a história da nomencompreendida pelo povo judeu de modo dendo do local que se instalasse, diferentes sintomas surgiriam (p. ex. obstrução do ar, angústias, perturbações variadas). clatura deste órgão na cultura ocidental. bastante distinto Essa ideia permaneceu por quase seiscenA medicina grega usava três termos daquele que vimos nas tos anos. A título de curiosidade, o chapara nomear este órgão: Mitra, Hystéra e culturas grega, romana mado “útero errante”, usado por HipóDelphys, os quais constam ainda na terminologia utilizada na biologia e medicina modernas (p. ex. endometriose, histee as que se derivaram delas. Ela ocupou crates, ocorreria principalmente nas “solteironas e viúvas”, a quem ele receitava gravidez e um marido. rectomia, útero didélfico). um papel digno no O termo histeria se cristalizou, semA partir do termo Hystéra foi tamcenário cultural, o que pre designando uma doença misteriosa, bém cunhado o termo histeria, que é atribuído, provavelmente de modo indevido, à Hipócrates. Os gregos entendiam que o útero seria um ser vivo, aparentea deixou numa posição forte e fundamental para a estruturação muito estudada pela variedade e inconstância de suas manifestações. É fato que isto acentuou a histórica conexão entre “doença” e feminilidade. Só como exemmente autônomo e possuído do “desesocial e familiar. plo, em 1758 Raulin escreveu, sem qualjo de fazer crianças”. Acreditavam que, quer pudor: “Essa doença, na qual muquando o útero era privado desta possibilidade, ele polheres inventam, exageram e repetem todos os diferenderia se irritar e entrar em estado de fúria. Teria a possites absurdos de que é capaz uma imaginação desregrada,

por vezes tornou-se uma epidemia contagiosa”. A histeria era assim tida, como uma doença exclusiva das mulheres, derivada do mau funcionamento do aparelho sexual feminino.

Posteriormente, a histeria foi conduzida para o grupo das doenças nervosas e, mais tarde, na época de Charcot e Freud, para o campo dos transtornos mentais. Foi objeto de estudos importantes da Psicanálise, que manteve esta mesma designação, embora sob um novo prisma, que transcende o escopo deste artigo. As classificações psiquiátricas mais recentes aboliram esta terminologia, que foi substituída pelos grupos dos transtornos conversivos e dissociativos.

Em resumo, podemos dizer que, na maior parte da história da ciência ocidental, inicialmente restrita ao campo da filosofia, a mulher foi reduzida a um ser frágil e sem controle sobre seus instintos, cuja função primordial se

ria a reprodução. A frustração desta “missão” a colocaria sob o risco de desenvolver sintomas sem sentido e causar transtornos aos conviventes. Em contrapartida, os homens podiam desfrutar de uma posição confortável, em que teorizavam sobre uma “fraqueza”, da qual eram biologicamente refratários.

Judaísmo e o conceito de feminilidade

Vejamos agora como a cultura judaica representou a feminilidade, seguindo o mesmo paradigma, que é entendimento do simbolismo expresso na palavra útero.

A palavra hebraica que designa útero é Rechem, raiz de outra palavra, Rachamim, que significa misericórdia. Essa particular relação entre essas palavras é quase poética, pela forma natural como se encaixam, e pela beleza deste conjunto – palavra–significado. O útero, que carrega e pro

tege o feto até o nascimento, é a representação visceral da palavra misericórdia; é através dele que a mulher doa, incondicionalmente, tudo o que o feto precisa, protege-o e deposita sobre ele sua força criadora e afirmativa, comprometida com a vida. Assim, a misericórdia – Rachamim – é uma representação feminina e o útero é a sua representação física. A mulher é assim entendida como uma verdadeira força da natureza, que promove a vida através da doação incondicional.

A mulher foi compreendida pelo povo judeu de modo bastante distinto daquele que vimos nas culturas grega, romana e as que se derivaram delas. Ela ocupou um papel digno no cenário cultural, o que a deixou numa posição forte e fundamental para a estruturação social e familiar.

Vale ainda uma outra curiosidade. A palavra misericórdia, que resulta da combinação dos termos do latim – miserere (compaixão) + cor (coração) + dare (dar) –, localiza este sentimento no coração, e não no útero. Na cultura judaica, o coração é a sede da razão.

Conclusão

Este texto pretendeu expor um aspecto da visão da feminilidade na ótica da cultura judaica. Também visou a ressaltar o peso dos nomes que damos às coisas. Entendemos que esta é uma missão bíblica, que nos foi dada por Deus, desde o princípio da nossa existência. Erros podem ser nefastos, como aqueles abordados no correr deste artigo.

Nosso povo tem uma longa história. Acumulou nestes milênios um imensurável cabedal de conhecimentos e entendimentos, que sempre estiveram disponíveis para serem compartilhados com o mundo, de forma incondicional. Isso não é misericórdia? Certamente, no caso particular do tema abordado neste artigo, poderíamos ter trazido um feixe de luz onde ainda restam trevas.

Marcia Rozenthal é médica – Neuropsiquiatra, Doutora em Psiquiatria e Professora. Associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UFRJ.

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