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Faróis que se Extinguem

Vittorio Corinaldi

Na cacofonia do atual discurso da sociedade israelense, a voz de Amos Oz se erguia clara e límpida acima do grosseiro linguajar dos políticos e da vulgaridade generalizada de uma imprensa sensacionalista e tendenciosa, ou da mídia eletrônica infestada de entrevistas banais, debates ruidosos e confusos, programas medíocres de “reality” e uma enxurrada de publicidade promotora de incontrolado consumismo.

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Não é só sua valiosa contribuição literária e publicística que foi cortada com seu falecimento. Não se interrompeu somente sua inigualável capacidade narrativa no retratar a realidade israelense através de um prisma humano que lhe confere validade universal. Com ele se calou uma das últimas expressões de razão e consciência moral que deveriam reger – e uma vez regiam – o desenrolar da vida pública de Israel.

Sem descer ao nível da propaganda política e partidária que está na base do presente vocabulário da maioria dos representantes da atividade legislativa, executiva ou cultural, Amos Oz nunca se escondeu atrás de escusas manipulações intelectuais, nem tentou camuflar suas opiniões com roupagens de dupla aparência para agradar a todos os setores que seus escritos pudessem atingir. E suas palavras sempre foram de condenação da violência, do fanatismo, da demagogia, do poder absoluto e corrupto, da negação de liberdade de crença e opinião; e em favor da aceitação do diferente, do respeito à minoria: qualidades que a atual atmosfera política classifica pejorativamente como “esquerdistas”, numa O kibutz foi uma das mais elevadas manifestações do espírito humano, talvez uma das mais significativas que tenha partido do povo judeu na época moderna.

Na página anterior e nas seguintes: Fotos do Kibutz Hulda nos anos 1930. Crédito das imagens: National Photo Collection of Israel.

deformação proposital da verdadeira naNão é um mero acaso ção e um novo homem judeu; sobre a imtureza do conceito de esquerda. Amos Oz foi enterrado, com cerimonial espontâneo, isento do mecânico inaque de sua moradia no kibutz, Amos portância que estes tiveram na instituição de uma força de defesa ativa e no espírito do novo exército também como fator mistoso ritual ortodoxo, no cemitério do Oz tenha lançado de coesão social; sobre a criação de uma Kibutz Hulda, do qual foi membro por seus manifestos entidade física de características urbanas muitos anos. de humanidade. próprias e únicas, expressão construída do

O lugar do túmulo acrescenta um coesingular tipo de agrupamento social; soficiente simbólico à memória e à persobre o apoio voluntário que o nascente Esnalidade do falecido. Porque o kibutz, como a figura de tado de Israel encontrou na estrutura coletiva do kibutz Amos Oz, também deve ser visto hoje como uma luz que nos difíceis primeiros anos de penúria econômica e absorse apaga no cenário israelense e judaico. E não é um mero ção de massas de “olim”. acaso que de sua moradia no kibutz, Amos Oz tenha lanO princípio de não remuneração individual pelo traçado seus manifestos de humanidade. Porque o kibutz foi balho, que infelizmente não resistiu às pressões e à conuma das mais elevadas manifestações do espírito humano, corrência do ambiente externo, era um postulado essentalvez uma das mais significativas que tenha partido do cial que por muito tempo regeu os destinos da comuna kipovo judeu na época moderna. E o seu ocaso se assinala butziana. Enquanto aceito em virtude de um reconhecicom particular amargura no momento em que desaparece mento altamente consciente, sobreviveu a essas pressões e alguém que o inspirava e que nele se inspirava. à oposta afirmação muito difusa, de que a natureza huma

Muito se falou e escreveu a respeito do kibutz: sobre na se orienta para a concentração privada da propriedade o exemplar alicerce de igualdade em que se baseia; sobre e para comportamento individualista. a filiação livre e voluntária de seus membros; sobre a deO período “heroico” do nascimento dos primeiros kimocracia participatória destituída de hierarquias arbitrábutzim nos transporta para a figura de A. D. Gordon, o rias com que se rege; sobre seu inédito sistema educatiinspirador de uma doutrina de profunda dimensão ética, vo e a influência que teve na formação de uma nova geraque punha o trabalho (e em especial o trabalho da terra)

como dever e direito de cada indivíduo na sociedade, e o exemplo pessoal como regra pacífica de comportamento. Sua adesão ao Kibutz Degania já em idade avançada, que, porém, não lhe impediu de agir justamente dentro desta linha, fez dele um orientador e um profeta da “religião do trabalho”, que moldou a estrutura e o funcionamento da célula kibutziana.

A seu lado, como portador de mensagem da livre associação dos homens do trabalho em organismos de democrática e essencial defesa de direitos, e como líder natural de uma geração sedenta de um significado antirretórica para seus impulsos de renovação, Berl Katzenelson foi o mestre unanimemente reconhecido do pioneiro socialismo humano dos primórdios do Estado, e como tal também figura de inspiração ideológica e espiritual para o então nascente movimento kibutziano.

A Israel de hoje rejeitou o endereço que aqueles homens de desinteressada dedicação, e tantos outros que atuaram naqueles anos decisivos, apontaram para uma sociedade justa e igualitária, “Or lagoim” (Luz para os povos) como a queria Ben Gurion. E voltou-se para o caminho da livre concorrência, da cultura do mercado, da propriedade não controlada. Os êxitos econômicos imediatos dessa po

lítica desviaram a identificação com aqueles valores originais para a filosofia do consumismo e para diferenças sociais, sobre as quais facilmente germinam sementes de nacionalismo, de retórico elitismo e até mesmo de racismo.

Toda a essência do Sionismo se vê hoje ameaçada por essa corrente. Dela não escapou o movimento kibutziano. Desfalcado de uma liderança à altura de seu conteúdo, e dos apoios e incentivos com que podia contar quando o poder político lhe era solidário, o kibutz teve que recorrer a instrumentos financeiros estranhos a seu costume, o que levou, nos anos 80, muitas das suas comunidades a uma séria crise, agravada por uma hostilidade de fundo ideológico da nova administração de direita.

O vital princípio da igualdade absoluta de todos os membros, e a elementar fórmula de “cada um conforme suas aptidões, a cada um conforme suas necessidades”, se viram atingidos e gradativamente substituídos pela remuneração diferenciada das diversas atividades e pelo pagamento pelos serviços oferecidos pela coletividade, que até então não fazia uso do dinheiro em suas relações internas. Os meios de produção (fossem eles agrícolas ou industriais), originalmente de propriedade comum e administrados como parte do patrimônio coletivo, foram transfor-

mados em empresas autônomas, responsáveis por seus destinos econômicos cada uma de per si. A moradia, direito outorgado igualitariamente, foi privatizada e o solo loteado em parcelas exclusivas para cada família. Este passo levou a seguir a um incontrolado surto de construção particular de dúbio gosto e racionalidade, no qual se destruiu o peculiar fluente tecido urbano e a amistosa escala que caracterizavam o espaço do kibutz.

Hoje, com exceção daqueles kibutzim que por seu sucesso econômico puderam se permitir manter a estrutura coletivista com um alto nível de vida, quase nada resta do original conceito do kibutz. Apesar da insistência de continuarem a se autodefinir como tais, a maioria dos kibutzim mais se parecem a suburbanos condomínios fechados, mantendo ao máximo algum limitado remanescente de ajuda mútua, principalmente devido à população mais velha, que tem dificuldade em enfrentar os vários aspectos da privatização.

Encerrou-se assim um capítulo que era um dos orgulhosos marcos da identidade israelense. Hoje se procura preencher esse vácuo com uma ufanista divulgação de nossa capacidade científica e tecnológica. Ainda nos vangloriamos dos numerosos Prêmios Nobel que a cultura ou a ciência israelense tem angariado – a despeito da vulgarização populista propagada por ministros ignorantes de um governo tendenciosamente hostil a genuínas manifestações do espírito.

Ainda contamos com um poderoso exército, que paradoxalmente põe freio a aventurosos desejos de políticos inescrupulosos, e mantém a um custo cada vez mais difícil a qualificação de exército da alta moralidade, obrigado como está pelo desígnio da autoridade civil a tarefas de policiamento alheias à sua verdadeira função de defesa, deturbada pela longa ocupação do território palestino.

Ainda temos um Poder Judiciário independente, último obstáculo às iniciativas antidemocráticas e anticonstitucionais de um governo orientado por interesses pessoais ou setoriais. Mas o título de “única democracia do Oriente Médio” com que insistentemente nos decoramos, só corresponderá a uma completa verdade se se puser fim – por um improvável resultado das urnas – à legislação repressiva e discriminatória que se alastrou e continuará se alastrando se se confirmarem os atuais prognósticos eleitorais.

Na treva dessa esperança, aguardamos com velado fatalismo a mão que reacenda o farol apagado de Amos Oz; a conjuntura histórica que repita condições para o renascimento de uma experiência humana como o kibutz. E, acima de tudo, o retorno à grande vocação do Sionismo de reconstruir a entidade nacional judaica dentro dos valores de justiça e tolerância trazidos das milenárias fontes de nossa cultura e alimentados pelo evangelho de profetas como Amos Oz, para benefício próprio e de todos os homens.

Vittorio Corinaldi é arquiteto formado pela FAU-USP. Mora em Israel desde 1956 e atuou como arquiteto no quadro do escritório central de planejamento do movimento kibutsiano, tendo sido seu arquiteto-chefe por dez anos.

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