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Cócegas no Raciocínio
SHLOSHIM – AMÓS OZ: TRAIDOR OU TRAÍDO?
Paulo Geiger
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Já se escreveu bastante sobre Amós Oz, o escritor. Sobre Amós Oz, o ativista político. Textos de críticos literários, de colegas escritores, de militantes pró e contra seus pensamentos e suas causas já foram publicados, ao longo de sua vida e neste mês que o shloshim encerra. A partir de agora, o texto mais eloquente sobre Oz, o único a ser considerado, o único inequivocamente autêntico, será o dele, não só sobre si mesmo, mas principalmente sobre sua visão de um mundo e uma época em que ele esteve sempre fora da curva, arauto ou invocador de uma realidade possível, mas cada vez mais distante, em que coexistem todas as diferenças, e todas as diferenças contribuem para um futuro compartilhado.
Neste número de Devarim procurou-se fazer ressoar a voz de Oz, para que não se cale nem seja esquecida. Para que conquiste corações e mentes numa jornada de contestação e de esperança, quando se mata em Utrecht, em Pittsburgh, em Ariel, na Nova Zelândia, em Suzano, Estrasburgo, Paris, Londres, Boston, Oslo, Cairo, Madrid, Barcelona, Buenos Aires, e onde não, como fato consumado, como perigo e como ameaça? Por que e para quê?
Quando o Irã instala bases militares na Síria, o Hezbollah anuncia a futura destruição de Tel Aviv e de Haifa, o Hamas lança foguetes contra civis no sul de Israel e em Tel Aviv, balões incendiários contra plantações e florestas. Por que e para quê?
Quando a ideia de que Israel – sionista e democrático – seria ao mesmo tempo o Estado nacional do povo judeu e também o Estado de todos os seus cidadãos é poluída pelo conceito de que só judeus podem se orgulhar de sua pátria e se sentirem cidadãos plenos.
Quando o ideal maior de um mundo formado por miríades de identidades que se entrelaçam, se sobrepõem e se completam para o bem comum – e também para preservar o futuro de um planeta que é o lar de todos, ricos e pobres, poderosos e vulneráveis – é sufocado pelo aqui e agora de um desenvolvimentismo não sustentável, de chauvinismos excludentes, movidos mais por ganância de acúmulos e reservas de mercado do que pela ideia de liberdade, fraternidade e igualdade, como retrato da vida real e não como lemas demagógicos.
Quando a reivindicação dos palestinos de um Estado nacional – mais um entre os muitos Estados árabes e as dezenas de Estados islâmicos – baseiase na negação à existência de um só e minúsculo estado judeu no único lugar no mundo em que pode existir. Quando o islamismo radical alega que aquela terra só é, e só pode ser, islâmica. Quando mais de 3.000 anos de história judaica são ignorados ou descartados.
É quando tudo isso acontece que a voz de Amós Oz tem de ser ouvida, cada vez mais forte. Ele, sionista declarado e patriota convicto, que muitos consideram um traidor da causa sionista por vê-la como um projeto de mútuas concessões com causas e anseios alheios, o que é o fundamento mesmo de qualquer projeto para um futuro de paz e de convivência, em nível individual, familiar, cultural, comunitário, nacional e planetário.
Oz tampouco se iludiu com a ideia de que isso seria possível quando a ideia não é recíproca na maior parte do mundo árabe e islâmico, nos antisse
Dreamcreation/ istockphoto.com
mitas, antissionistas e anti-israelenses crônicos, numa esquerda retrógrada e engessada em lemas antigos, numa direita cada vez mais chauvinista, fascista e neonazista. Não era um pacifista iludido com miragens. Sabia que teria de mudar ‘o outro lado’ também, e que isso está muito mais distante do que o senso de justiça que suas palavras inspiram.
Oz sabia, e escreveu sobre isso, que às vezes o ‘traidor’ é o verdadeiro visionário, aquele que vê uma possibilidade melhor que a maioria ainda não enxerga, quem pensa no total e não na parcela, no resultado final e não na etapa transitória. Na verdade, ao ser considerado um traidor, ele estava sendo traído. Traído por quem não leu o que escreveu, ou leu com a mente fechada nas idiossincrasias e nos radicalismos e fanatismos que Oz tanto combateu.
No shloshim de Oz, tihie nafsho (udvaro) tsrurá betsror hachaim. Que sua alma (e sua palavra) se enfeixem no feixe da vida.
