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Guivat Haviva: Viva a Alternativa de uma Sociedade Compartilhada
Este é o primeiro ano letivo da Escola Internacional de Guivat Haviva. 55 alunos, de 17 países, vivem juntos. Aproximadamente metade destes alunos são israelenses, sendo 25% judeus e 25% árabes.
Rafael Stern
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Ocórrego Haviva nasce nos arredores de Jenin (cidade palestina na Cisjordânia), atravessa as montanhas da Samaria (cheia de assentamentos judaicos), adentra o território de Israel entre o kibutz Magal e a vila árabe-israelense Yama, e desemboca no mar na cidade judaica de Hedera. Tudo isso em menos de 30 quilômetros de extensão. Como a maioria dos córregos em Israel, seu fluxo é intermitente – só tem água durante as inundações dos breves meses de inverno. E justamente numa das margens deste córrego tão complexo e amável (esta é uma das traduções do nome ‘Haviva’), é que árabes e judeus de cidadania israelense decidiram criar um grande núcleo do conceito de “Sociedade Compartilhada”.
Criado em 1949 pelo movimento kibutziano, da ala do Hashomer Hatzair, o centro de Guivat Haviva recebeu o nome de uma paraquedista eslovaca (Haviva Reik) que, após se mudar para Israel em 1939 e residir no kibutz Maanit, se alistou na brigada judaica de paraquedistas do exército britânico para combater o nazismo e ajudar na fuga de judeus da Eslováquia. Acabou sendo capturada e posteriormente executada pelos nazistas no final de 1944, enquanto ajudava um grupo de judeus a se refugiar nas montanhas.
Durante muitos anos, Guivat Haviva serviu como um importante centro de formação e educação dos kibutzim da região, contando também com um centro de memória do Holocausto e um arquivo de documentos do movimento kibutziano. Mas o local não recebeu apenas o nome da notória integrante do movimento Hashomer Hatzair e do córrego que passa no local. A conexão de Guivat Haviva com o seu entorno se manifestou desde muito cedo também com a sua mão estendida à população árabe que densamente habita aquela área.
Assim, já há muitas décadas, Guivat Haviva funciona como um centro para criar uma sociedade israelense mais coesa, engajando comunidades divididas em ações coletivas em prol de uma democracia israelense próspera e sustentável. Baseia-se em conceitos como responsabilidade mútua, igualdade civil e uma visão compartilhada do futuro. Para isso, o “Centro para uma Sociedade Compartilhada” de Guivat Haviva atua como um polo de engajamento, interação, apoio e empoderamento dos setores árabes e judaicos da sociedade israelense.
Os projetos já bem estabelecidos de Guivat Haviva incluem encontros culturais e religiosos entre árabes e judeus, educação em conjunto através de seminários e parcerias entre escolas, clube de culinária, clube de mulheres empresárias, treinamento de professores e servidores municipais, ensino mútuo do árabe e do hebraico, projetos de recuperação ecológica do entorno, um parque industrial compartilhado, manutenção de arquivos históricos em conjunto e serviços de emergência médica.
Guivat Haviva é também tradicionalmente conhecido por seu bem consolidado centro de estudos da cultura e do idioma árabe, com uma grande gama de opções de duração e níveis de cursos, que muitos judeus israelenses procuram como forma de abrir as portas para acessar seus vizinhos. Ao todo, cem mil pessoas já circulavam anualmente
pelo campus de Guivat Haviva participando de todos esses projetos. Esta longa e tradicional atuação para a união entre árabes e judeus rendeu a Guivat Haviva o prêmio da Unesco pela “Educação Para a Paz” em 2001.
No entanto, apesar de o conflito árabe-israelense apresentar aspectos muito únicos, diversas outras regiões no mundo vivem conflitos, e o diálogo e a troca de experiências podem se mostrar benéficos e inspirar todos. O conflito entre árabes e judeus é fundamentalmente mais um conflito humano. E no mundo globalizado atual, um conflito local pode ter influências globais muito além da compaixão que humanos podem sentir ao ver outros humanos sofrendo. O mote “pense globalmente, aja localmente” não se aplica – em Guivat Haviva, o lema é “pense globalmente, aja globalmente”. Por isso, e para engajar um público bem jovem por mais longo prazo, Guivat Haviva lançou uma iniciativa bastante ousada, ainda que seja mais um passo adiante em uma caminhada num solo bem firme, sedimentado por uma longa experiência na área. Em setembro de 2018 começou o primeiro ano letivo de uma escola internacional, onde estudantes de diversos países do mundo moram e estudam juntos todas as disciplinas de Ensino Médio seguindo um currículo escolar internacional, tendo como pano de fundo a resolução de conflitos.
A Escola Internacional de Guivat Haviva
Este é o primeiro ano letivo da Escola Internacional de Guivat Haviva. 55 alunos, de 17 países, vivem juntos, estudam e se engajam em diversas atividades extracurriculares. Aproximadamente metade destes alunos são israelenses, sendo 25% judeus e 25% árabes. Os outros 50% vêm de países como Sudão do Sul, Libéria, Georgia, Kosovo e outros lugares com histórico de disputas e conflitos. A escola segue o currículo do “International Bacclaureate Diploma Program”, que inclui todos os tópicos de escolas tradicionais (de Ciências Naturais a História), mas com um foco internacional. As disciplinas são oferecidas de forma teórica e experimental, e os estudantes têm a oportunidade de escolher o nível de aprofundamento em cada matéria.
Os professores são árabes e judeus israelenses, mas o idioma oficial da escola é o inglês. Além das aulas, os alunos também precisam realizar um projeto de pesquisa orientado por um professor, serviços comunitários, educação física e estudos de filosofia da ciência. Além das atividades curriculares e extracurriculares, no tempo livre os alunos ainda podem se inscrever em aulas de fotografia, cerâmica, dança, linguagem de libras, ioga, pintura, entre outras.
Os estudantes também se organizam em uma espécie

de grêmio estudantil para realizar projetos extracurriculares. Esses comitês são bem diversos, abrangendo áreas como política, sustentabilidade, engajamento social, cultura e comunidade. Quando eu estive na escola e almocei com os alunos, o comitê de sustentabilidade estava discutindo que dia eles se encontrariam com o membro do Parlamento de Israel, que tinha concordado em apoiá-los em uma iniciativa. Vi nesses alunos o brilho nos olhos que é essencial para realizar as grandes coisas de que o mundo precisa. O sentimento geral entre os estudantes é de que, como eles são a primeira turma da história dessa escola, eles não têm ideia do que vai ser no final dessa experiência, mas têm a certeza de que estão participando de algo grandioso. Essa é a fórmula ideal para aliar as aspirações juvenis de realizar algo grande com uma oportunidade prática de uma aventura que, sim, é capaz de mudar o mundo. Com todas essas atividades curriculares e extracurriculares, professores especializados e o fato de que os alunos vivem na escola, o custo anual por aluno é bastante alto (cerca de 30 mil dólares). Apenas 25% desse custo vem da mensalidade paga pelas próprias famílias dos alunos, enquanto que outros 25% vem do Ministério da Educação de Israel. Por isso, a escola baseia metade de seu orçamento em doações, que veem dos lugares mais surpreendentes, como do governo alemão. Mas o que talvez seja mais
interessante é que, atualmente, a maior parte das doações vem das famílias árabes-israelenses que vivem na região. A maioria dos alunos árabes que conheci na escola foram enviados por um encorajamento profundo de seus pais, que talvez enxerguem nisso uma oportunidade que eles não tiveram de se integrarem na sociedade israelense, se sentirem parte legítima do país, à vontade para circular, ir para a universidade e fazer amigos de todos os tipos e origens.
Abed Azab é professor de química na escola. É árabe, de cidadania israelense, e durante a juventude estudou num ensino médio judaico em Hedera. Me contou o quanto foi difícil no início, quando saiu de sua escola árabe e se viu numa turma que seguia o currículo judaico de ensino. 1 Mas, no final, foi incrível, e ele entendeu que queria coexistir com os judeus. Seguiu uma carreira acadêmica, fez doutorado em química e atualmente, além da pesquisa e de ser colunista do jornal Haaretz, faz questão de integrar o corpo docente da escola, por acreditar profundamente na visão de uma Israel para todos os seus cidadãos. Ele quer dar a novas gerações o gosto que ele teve de sentir, o elo de ligação entre árabes e judeus através da educação escolar.
1 Em Israel, o sistema educacional é dividido entre quatro setores: secular (judaico), nacional-religioso (judaico), ultraortodoxo (judaico) e árabe (que inclui drusos e beduínos, entre outros grupos ainda menores).

O mapa do caminho para a paz
Em dezembro de 2017, Guivat Haviva enviou para o parlamento israelense (Knesset) um documento intitulado “O Mapa do Caminho Para a Paz”. A entrega do documento foi acompanhada de uma reunião com 15 parlamentares, e o Grupo da Knesset Pela Promoção da Sociedade Compartilhada Entre Judeus e Árabes adotou o documento como a base para as suas atividades do ano de 2018. Para garantir a implementação das medidas recomendadas, Guivat Haviva está planejando promover reuniões especiais das comissões parlamentares nas áreas de educação e desenvolvimento econômico, e se reunir com o presidente de Israel (Reuven Rivlin), para garantir que suas demandas serão escutadas pelos principais tomadores de decisão.
O processo de elaboração desse documento durou dois anos, e incluiu mais de 40 reuniões (metade delas em árabe e metade em hebraico), com diversas pessoas (árabes e judeus) dos setores público e privado, além de representantes da sociedade civil. As pessoas eram divididas em cinco grupos, e cada um abrangia uma área de atuação diferente: educação, desenvolvimento econômico, governança, uso da terra e representação cultural (essa divisão foi baseado nos “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”
da ONU). A etapa das reuniões foi seguida por uma consulta pública on-line, da qual participaram 20.500 pessoas (4 mil judeus e 16.500 árabes). Os resultados dessa consulta pública foram compilados em um último encontro dos grupos de trabalho, e então o documento foi finalmente elaborado.
O “Mapa do Caminho Para a Paz” traz diversos passos concretos para a implementação de uma sociedade compartilhada entre judeus e árabes. Como recomendação geral, a tomada de decisão e implementação desses passos devem incluir os parlamentares árabes na Knesset, que atualmente estão muito à margem da tomada de decisões centrais, por diversos motivos. Alguns desses passos incluem: • Inclusão no currículo obrigatório para formação de professores módulos de “sociedade compartilhada”. Ou seja, para se tornar professor em Israel, a pessoa terá que passar por um currículo teórico e prático, que inclua contato e encontros com uma multiplicidade de identidades e de narrativas. • Segundo uma recomendação do próprio presidente de Israel, professores de cada setor da sociedade deverão dar aulas em escolas dos outros setores. • A criação de feriados nacionais seculares compartilhados (como “Dia da Eliminação da Discriminação Ra

cial”, “Dia da Reconciliação”, “Dia Internacional da Democracia”). • A recomendação de políticas públicas promovidas por diversos ministérios e órgãos governamentais com o objetivo de fomentar o desenvolvimento econômico das populações árabes, através da instalação de sedes de empresas, maior integração com conselhos regionais judaicos, estímulo ao interesse da população árabe por empregos ligados à alta tecnologia, melhoria do sistema de transporte público de cidades árabes pequenas para grandes centros econômicos em Israel, entre outros. • A proporção de mulheres árabes no mercado de trabalho é de 32%, em relação a 74% dos homens árabes e 80% das mulheres judias. 2 O documento propõe, portanto, recomendações específicas visando aumentar consideravelmente a inclusão das mulheres árabes no mercado de trabalho.
“Se Israel quiser ser uma sociedade multicultural, com espaço para as pessoas de todas as tribos, se quiser passar de uma situação de inimizade e conflito para parceria, então todo o
2 As razões para tais discrepâncias são múltiplas e incluem barreiras culturais da sociedade árabe, tanto quanto barreiras no próprio mercado de trabalho, falta de ofertas próximas, falta de infraestrutura de transporte...

sistema educacional, da infância até a universidade, deve facilitar encontros sérios, diálogo contínuo, e o cultivo de uma mentalidade multicultural fundamentada em tolerância e inclusão dos membros das diferentes tribos. O conhecimento pessoal, íntimo, é a chave para a criação de um diálogo humano com membros de outras tribos.
“Esse processo de encontro não pode ocorrer através de uma autonegação. Ele exige, de um lado, um foco mais preciso nos valores coletivos do próprio grupo, e de outro lado um reconhecimento da existência dos sistemas de valores e de crenças do outro, numa jornada para encontrar áreas de consenso que permite um acordo na determinação de valores comuns de comportamento.
“... Sem [o reforço da identidade do próprio grupo], os membros do grupo estão sujeitos a temer que o encontro provoque um enfraquecimento de sua identidade. Apenas um encontro que honre a identidade própria e pessoal de cada participante pode suscitar confiança e reduzir o medo do encontro com o outro.” (Trecho do documento “O Mapa do Caminho Para a Paz”)
No dia 24 de julho de 2018, Guivat Haviva recebeu o status de Organização Consultiva no Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC). Quando uma organização passa a fazer parte do ECOSOC, ela passa a ter acesso a programas, agências e fundos de financiamento especiais da ONU por diversas vias. Membros do Guivat Haviva podem agora, por exemplo, assistir como observadores reuniões da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos.
Deve haver outro caminho
O tradicional festival de música Eurovision mobiliza milhões de espectadores da Europa e do mundo. Cada

país europeu (e alguns agregados especiais, como Israel) enviam uma música para representar o país, nesse festival que acontece em maio, e que, este ano (2019), vai acontecer pela terceira vez em Israel (devido à vitória no ano passado da israelense Netta Barzilai).
Em 2009, as enviadas para representar Israel foram as cantoras Noa (Achinoam Nini, judia israelense), e Mira Awad (árabe israelense). Elas levaram a música “There Must Be Another Way” (“Deve Haver Outro Caminho”), cuja letra original é em árabe, hebraico em inglês. Elas ficaram em 16º lugar no concurso, de um total de 25 países. Mas talvez a maior vitória foi levar para o mundo uma mensagem de paz, de “sociedade compartilhada”, que talvez ainda não fosse na época e nem hoje uma realidade total em Israel, mas sem dúvida já havia desde então um embrião, gente disposta a construir junto esse futuro.
No mesmo ano de 2009, Mira e Noa foram agraciadas com o “Prêmio pela Paz Haviva Reik”, criado pela organização Guivat Haviva para honrar anualmente aqueles que se engajam na busca pelos direitos humanos, compreensão mútua e a paz. Um dos aspectos curiosos da união das duas cantoras é que, devido à sua ascendência iemenita, Noa possui traços físicos mais relacionados ao Oriente Médio e Mira Awad tem pele, cabelos e olhos claros, parecendo uma judia ashkenaziá. Quem não as conhece, mas sabe que a dupla é formada por uma judia e por uma árabe, pode facilmente pensar que a árabe é a Noa e a judia é a Mira. Mas, enfim, numa sociedade compartilhada, isso não faz a menor diferença. Ambas são israelenses, ambas são humanas.
Rafael Stern é geógrafo e doutorando no Departamento de Ciências Espaciais e da Terra do Instituto Weizman para a Ciência, em Rehovot, Israel. Na próxima página, a letra da música “Deve Haver Outro Caminho”
DEVE HAVER OUTRO CAMINHO Letra e melodia: Achinoam Nini, Gil Dor e Mira Awad
Deve haver outro Deve haver outro caminho
Seus olhos, irmã Dizem tudo o que o meu coração pede Chegamos até aqui Através de um longo caminho Um caminho tão difícil, de mãos dadas E as lágrimas caem, escorrem em vão Uma dor inominável Nós esperamos Somente pelo dia que virá depois
Deve haver outro caminho Deve haver outro caminho
Seus olhos dizem Que virá o dia em que todo o medo vai sumir Nos seus olhos a determinação De que existe a possibilidade De continuar o caminho Como vai se alongar Por não haver um endereço para a tristeza Eu clamo para o céu tão teimoso
Deve haver outro caminho Deve haver outro caminho Deve haver outro Deve haver outro caminho
Vamos passar por um caminho longo Um caminho tão difícil Juntas, para a luz Seus olhos dizem Todo o medo vai sumir E quando eu choro, eu choro por nós duas Minha dor não tem nome E quando eu choro, eu choro Para o céu inclemente e digo Deve haver outro caminho
E as lágrimas caem, escorrem em vão Uma dor inominável Nós esperamos Somente pelo dia que virá depois
Deve haver outro caminho Deve haver outro caminho Deve haver outro Deve haver outro caminho
TH E R E M UST B E ANOTH E R WAY Letra e melodia: Achinoam Nini, Gil Dor e Mira Awad
There must be another Must be another way
Einaich, achot Kol ma shelibi mevakesh omrot Avarnu ad ko Derech aruka, derech ko kasha yad beyad Vehadma’ot zolgot, zormot lashav Ke’ev lelo shem Anachnu mechakot Rak layom sheyavo achrei
There must be another way There must be another way
Aynaki bit’ul Rakh yiji yom wu’kul ilkhof yizul B’aynaki israr Inhu ana khayar N’kamel halmasar Mahma tal Li’anhu ma fi anwan wakhid l’alakhzan B’nadi lalmada l’sama al’anida
There must be another way There must be another way There must be another Must be another way
Derech aruka na’avor Derech ko kasha Yachad el ha’or Aynaki bit’ul Kul ilkhof yizul And when I cry, I cry for both of us My pain has no name And when I cry, I cry To the merciless sky and say There must be another way
Vehadma’ot zolgot, zormot lashav Ke’ev lelo shem Anachnu mechakot Rak layom sheyavo achrei
There must be another way There must be another way There must be another Must be another way



