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Continuidade e Assimilação. De Shtisel a Gerson Cohen

CONTINUIDADE E ASSIMILAÇÃO

De Shtisel a Gerson Cohen

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Manter e copiar o judaísmo dos avós para transmitir aos filhos absolutamente não é o modelo predominante na história judaica. Como posso ser bem-sucedido em transmitir a tradição do passado para o futuro se esqueço do presente?

Rabino Dario Bialer

Shtisel virou um sucesso de audiência logo após sua aparição no Netflix e, como tantas vezes acontece na comunidade judaica, não há consenso. Muitos adoraram acompanhar as histórias em que Akiva, Shulem e Giti, entre outros, vivem o amor, as ilusões e as perdas, e para outros foi chocante a rigidez com a qual mulheres e crianças são tratadas no seio dessa família haredi (ultraortodoxa) do bairro de Geula em Jerusalém. 1 Já eu me encontro entre os que se deliciaram em ir descobrindo como os personagens de Shtisel vão pouco a pouco manifestando suas imperfeições, seus anseios e temores, numa trama que poderia perfeitamente estar acontecendo numa sociedade secular, mesmo que com costumes e prioridades bem diferentes. Existe uma evidente distância entre valores que entram em jogo na comunidade haredi e na nossa, mas os relacionamentos familiares, a educação, o bem-estar dos filhos e a busca de conquistar um lugar no mundo, são temáticas que nos perpassam a todos. Por isso, penso eu, Shtisel é tão bem-sucedido em aproximar dois mundos tão diversos.

Mas, independentemente de gostarmos mais ou menos do seriado, de nos envolvermos e comovermos com as histórias de amor, humor e drama, Shtisel apresenta um modelo que transcende aquele que vive naquele círculo.

1 A ultraortodoxia chegou a Israel nos anos 1930, quando o rabino bielorrusso Avraham Karelitz (conhecido como “Chazon Ish”, que é o título de seu mais influente livro) se instalou na cidade de Bnei Brak, atraindo muitos haredim para o mesmo local. Ainda hoje os haredim vivem confinados em cidades ou bairros de população uniformemente haredi.

Um midrash do segundo século da Gerson Cohen fala pa Oriental e eram a roupa corrente num era comum, formulado por Bar Kapara, diz: Por conta de quatro fatores o Povo de Israel foi libertado da terra do Egito: sobre a benção da assimilação na vida passado bem recente, de não mais do que 250 anos (um período curto no confronto com os 3.000 anos de judaísmo). eles não alteraram seus nomes [mantiveram judaica. Para ele, a Também a questão dos nomes não é seus nomes hebraicos]; eles não mudaram o assimilação na dose muito simples, se bem que menos evidenseu idioma; não se envolveram em maledicerta é positiva. Há que te. Quantos Moisés vocês acreditam que cências e se mantiveram afastados da licenciosidade sexual. (Vaikrá Rabá 32 / Shir Hashirim Rabá 104) haver uma certa dose de inoculação seletiva. há em Mea Shearim, Geula ou Bnei Brak? Muitos, não é mesmo? Mas acontece que os nomes Moisés, Aaron ou Pinchas eram

Uma versão posterior deste midrash já os nomes mais chiques da aristocracia do reduz os fatores a apenas três: que mantiveram seus nomes; antigo império egípcio; a filha do Faraó nomeou o granque continuaram falando o mesmo idioma; e que mantide líder do nosso povo conforme a cultura na qual ele foi veram a sua forma singular de vestir. criado. Ao focar na preservação dos hábitos e costumes,

Tanto a primeira como a segunda versões caminham os haredim demonstram a sua legítima preocupação com por uma linha ideológica recorrente para explicar como a continuidade do judaísmo. Mas seguramente a preservao judaísmo consegue se perpetuar de geração em geração, ção não é o único caminho para a continuidade. muitas vezes em contextos bem adversos (como o do peVamos pensar apenas no idioma. Quando, fugindo do ríodo da escravidão no Egito). Esta linha associa a continazismo, o judeu chega na América e forma suas novas nuidade judaica com tradição, com repetição, com consersociedades, a grande maioria dos judeus queria ardentevação dos costumes e preservação dos hábitos. mente integrar-se à nova nação e não criar barreiras entre

Não é por acaso que a segunda formulação reforma o eles e os demais. Os filhos dos imigrantes continuaram a midrash, abandonando os aspectos espirituais da primeira falar ídiche, já que esta era a linguagem de seus pais. Já os redação (maledicência e licenciosidade) e mantendo o dos netos não tinham mais serventia para o idioma e o ídiche costumes (nomes e idioma) e ainda reforçando este conperdeu sua razão de ser, apesar de sua beleza e da paixão ceito com mais um item (roupas). de seus professores.

Se vamos levar a mensagem do midrash ao pé da letra, Onde o ídiche ainda está vivo? Ora, entre os grupos Shtisel, que representa tão bem o modelo de manter tudo que preservam um esquema social semelhante ao que tiigual para garantir a continuidade, tem muitos problemas! nham em seu lugar de origem. Os judeus que ainda que

Pois a verdade é que nem o idioma, nem as roupas rem viver atrás das paredes continuarão a utilizá-lo. Para nem os nomes foram mantidos ao longo da história jueles, o ídiche não será um hobby, mas oxigênio e cotidiadaica. E mesmo assim nos consideramos todos, indepennidade. E também um símbolo de resistência a um mundentemente da linha religiosa ou cultural, herdeiros das do que eles consideram ameaçador. tribos libertadas do Egito. Alguns anos atrás um colega meu passeava com sua fa

Os haredim falam entre si o ídiche, idioma que não mília pelas ruas de Jerusalém. Era uma tarde de verão, inveio do Sinai e sim da Europa da Idade Média. O Talmud suportavelmente quente, estavam esperando abrir o sinal foi escrito em aramaico, idioma semítico próximo ao hepara continuar seu passeio quando o pequeno filho do braico, mas de forma nenhuma idêntico a ele. Até o formeu amigo, vendo um homem ultraortodoxo todo agasamato das letras foi modificado. A escrita do hebraico hoje lhado perto deles, pergunta: utiliza letras muito diferentes das letras hebraicas antigas. − Papai, aquele homem não sente calor?

Evidentemente as roupas também mudaram e muito. − Não sei, por que não vai e pergunta para ele? Moisés não subiu ao Monte Sinai com um capote preEntão a criança de seis anos vai, puxa o paletó do hoto e um solene shtreimel (chapéu de pele), conforme se mem e lhe pergunta: vestem os haredim retratados em Shtisel. As atuais rou− O senhor não está com calor? pas dos haredim têm origem no clima gelado da Euro− Calor? Eu? Não! Eu estou ótimo, estou ótimo!

A resposta daquele homem não é uma anedota engraçada e sim uma declaração de princípios de alguém que rejeita o mundo que o cerca. Em sua mente e espírito ele não está no verão de Jerusalém do século 21, mas no frio da Bielorussia do século 18.

O historiador israelense Moshe Samet (1934-) argumenta que a modernidade trouxe consigo duas poderosas bandeiras: o universalismo e o secularismo. Esse processo acabou penetrando nas bases da sociedade judaica tradicional gerando duas grandes tendências: a primeira se apegou à antiga civilização rabínica, enquanto a segunda se apegou à modernidade, adaptando-se a ela em seu estilo de vida e em muitos casos mudando-o por causa dela.

Sobre esse tema dissertou Gerson Cohen (1924 - 1991), historiador e professor na universidade de Columbia, diretor do Jewish Theological Seminary e uma das mentes mais brilhantes que o judaísmo norte-americano produziu no século passado, numas aulas proferidas no Hebrew Teachers College em Massachusetts no ano 1966, e quase sem querer isso se tornou o seu escrito mais celebre: “A benção da assimilação na história judaica”. Ele diz que, historicamente, há dois modelos possíveis para pensar a vida judaica. Um modelo é o isolamento. Viver fechado, para dentro, olhar apenas para o meu umbigo, minha família, meu clã, meu grupo. Na história judaica este

é o modelo da guetoização. Encastelar-se nos costumes do passado como garantia para a continuidade.

Mas há, afirma Cohen, um outro modelo muito presente na história das comunidades judaicas e que ele afirma ser mais sustentável, que é o que ele chama o modelo da assimilação; uma estratégia da abertura com manutenção de identidade.

Penso eu que isto faz sentido, pois, apesar de podermos controlar (ao menos parcialmente) o nosso entorno, seguramente não conseguimos controlar o entorno onde não vivemos. Então mais cedo ou mais tarde vamos ter que nos adaptar a um outro ambiente exterior e, então, é melhor estarmos abertos do que fechados. Nossa festa de Purim não nos mostra exatamente isto? Caso Mordechai não estivesse integrado no palácio do rei, Ester não seria a rainha, os judeus não saberiam da trama de Haman e o desastre seria inevitável.

Gerson Cohen fala sobre a benção da assimilação na vida judaica. A benção, não a maldição. Para ele, a assimilação na dose certa é positiva. Há que haver uma certa dose de inoculação seletiva, afirma ele.

A escolha da palavra “inoculação” é emblemática. Esta palavra tem um contexto na medicina, onde indica o que se coloca na vacina para gerar anticorpos no seu organismo. Ou seja, é uma parte do mundo exterior que trazemos

para dentro do nosso corpo com o objetiO judaísmo deve ser 200 anos atrás numa cidade da Europa vo de fortalecer nossas defesas contra uma invasão destrutiva. Vejam que não se pode entender o jurelevante aqui e agora para nós. Se for apenas Central na Jerusalém judaica e independente dos nossos tempos, não garante a continuidade e, ao contrário, gera muitas daísmo rabínico, do qual o Talmud é o uma homenagem para vezes, conforme mostra Shtisel, mais anprincipal emblema, sem a cultura greco- os nossos pais e uma gústia do que felicidade. -romana. herança para os nossos É importante notar também que o A cultura grega permeia todo o Talmud. Nos nomes, nas palavras, nos perfilhos, vamos fracassar. gueto foi, na maioria dos casos, uma imposição aos judeus do passado. Eles não sonagens e também em algumas instituiescolheram aquele modelo de sociedade, ções, tais como o sanhedrin, o conselho de sábios com poapesar de terem conseguido não apenas sobreviver, mas deres legislativos e judiciários, que é um conceito grego, também florescer sob a opressão. Desenvolveram algumas definido por uma palavra grega. Ou o prozbul, regra para coisas muito bonitas, sendo, talvez, a principal delas uma facilitar os empréstimos pessoais, instituído no período fisociedade solidária e também uma halachá que exercia um nal do Segundo Templo, que traz para o judaísmo não apepapel importante para a coesão social. Mas é fato que no nas um rótulo grego, mas também uma visão societária dimomento em que as portas foram abertas a maioria optou ferente da estabelecida pelo Tanach. Até mesmo as regras por deixar aquele modelo. Ou seja, o isolamento não gada mais querida tradição rabínica – a hermenêutica, as 13 rantiu a continuidade. formas de interpretação que ensina Rabi Ishmael, derivam A estratégia da “inoculação seletiva” nada tem de orida cultura grega. É tão forte a influência do grego no peginal! A guetoização voluntária retratada na série Shtisel ríodo talmúdico que temos um dicionário inteiro de tertem mais originalidade, é mais revolucionária do que a mos e conceitos gregos incorporados à lei judaica. 2 integração defendida por Gerson Cohen e praticada pela

Vejam a Espanha Islâmica onde viveram expoentes grande maioria do mundo judaico. Pois manter e copiar como Saadia Gaon – que traduziu a Torá ao árabe –, Maio judaísmo dos avós para transmitir aos filhos absolutamonides – que escreveu em árabe e combinou o pensamente não é o modelo predominante na história judaica. mento aristotélico com o judaico –, Nachmanides – que Até porque as chances de dar certo são escassas. Como debateu com os expoentes do cristianismo católico –, posso ser bem-sucedido em transmitir a tradição do pasYehuda Halevi – que nos legou a história dos Kuzari, um sado para o futuro se esqueço do presente? povo asiático que se converteu ao judaísmo pela força dos O judaísmo deve ser relevante aqui e agora para nós. argumentos e não das armas. A lista de inoculações que tiSe for apenas uma homenagem para os nossos pais e uma vemos em nossa história é gigantesca. E até mesmo em asherança para os nossos filhos, vamos fracassar. Pois heransuntos mundanos, pois ninguém acredita que no Sinai coças são um presente do passado, mas para serem transmimíamos guefilte fish ou burekas de queijo, não é mesmo? tidas adiante devem ser conquistadas. É necessário admi

Cada modelo tem seus custos e seus benefícios. O que nistrá-las e atualizá-las, a fim de evitar que percam valor (e se deve fazer é avaliar, a cada momento de nossa história, isto vale tanto para heranças materiais como espirituais). qual modelo resulta num saldo francamente positivo. AsCada exegeta, cada comentarista, cada sábio que intersim como na história de Mordechai, no período Talmúpretou a lei no seu tempo, tentou reformular um judaísdico e na Espanha Islâmica houveram momentos em que mo relevante para sua geração. Para ele. Para seu entorno. a assimilação na dose certa foi fundamental. Não estaríaPara seu tempo. Judaísmo não é um discurso para a posmos aqui sem ela. teridade. É para aqui e agora. Cada geração tem a respon

Tudo isto nos leva à constatação que continuidade não sabilidade de assumir os vazios, as ausências, as riquezas, é sinônimo de repetição. Reproduzir o estilo de vida de os valores, os desafios, tudo como se estivesse sendo descoberto agora mesmo. Isso é o que chamamos de “revela2 A dictionary of Greek and Latin legal terms in Rabbinic Literature, do Rabino Dação continuada”. Ou, conforme a expressão rabínica favoniel Sperber, editado pela Universidade Bar Ilan em 2012. rita de Gerson Cohen: “Dibra Torah behovê; dibru hacha

chmim behovê” (A Torá falou no presente; os sábios falaram no presente.)

Em Os Judeus e as Palavras Amos Oz se dirige aos “Judeus modernos, oscilando nas bordas entre a fé e a apostasia, fizeram perguntas mais sombrias: ‘identidade’ é um conceito moderno; suas crises são crises modernas. Tão logo você deixa as certezas infantis da tradição judaica, o abraço paterno e o aprisionamento da educação rabínica, a conjunção maternal de nutrição e ritual – enquanto ainda se lembra deles – você se descobre às margens solitárias da atormentada modernidade, com todas as suas simulações dinâmicas e perdas irrecuperáveis”. E agora vem o mais relevante do discurso do escritor israelense: “Uma geração portanto espremida entre a velha sinagoga e o novo mundo amplo, entre autoridade e incerteza, entre Iluminismo e Holocausto. Todas essas trajetórias interceptadas pela fé e sua rejeição. Haim Nahman Bialik foi pego nesse labirinto, como também foi Isaac Bashevis Singer e quase todo pensador e autor dessa primeira grande massa de judeus moderna” (p. 47).

Há uma tensão entre o gueto que afasta e o mundo moderno que nos absorve e dissolve a individualidade, numa massa amorfa, global e uniforme.

A esses antagonismos o judaísmo sempre soube responder com Torá e, fundamentalmente, com comentários, com palavras comprometidas com o tempo presente. Essa é a nossa responsabilidade. Construir um judaísmo relevante para o nosso tempo, nosso contexto e nossa sociedade. Que fale nossa língua, que nos identifique, nos interpele e nos comova. Que mexa conosco. Isso é um judaísmo relevante hoje. A continuidade do judaísmo só pode ser consequência disso. Nunca pré-requisito e nunca dogma.

Devemos aprender a confiar mais nas próximas gerações. Não devemos lhes dar tudo bem mastigado como quando eram recém-nascidos. Confiar nas novas gerações. Confiar no valor desse legado, e lhes permitir que interpretem e interpelem do seu jeito.

Essa é a “benção da assimilação” que Gerson Cohen citava. Essa é a vida. Essa é a arte que se transforma em obra quando nos atrevemos a desafiar o nosso pai e damos o passo imprescindível para sair do gueto.

Dario E. Bialer é rabino e serve na ARI-Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro.

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