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Nada Mais Samêach

Rabino Sérgio Margulies

Os eventos que descrevem a narrativa de Pessach começam com a anulação da história, conforme as palavras da Torá: “E um novo rei – que não conhecera Iossef [José] – se levantou sobre o Egito”. Iossef, que foi o segundo homem mais poderoso do Egito antigo e administrou os anos de fartura e de penúria, tornou-se desconhecido. Foi esquecido como se nunca tivesse existido. Este novo rei – um Faraó que de modo similar a tantos outros faraós – considerava-se divindade. Antes de deus 1 nada poderia existir, senão somente deus (ou deuses). O Faraó, assim, anula a história prévia: o anterior a ele era desconhecido, como se inexistente ou irrelevante.

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A anulação da história é acompanhada do aniquilamento da memória. Isto destitui o senso de humanidade, pois tal como um indivíduo desprovido de sua memória perde a identidade e a capacidade de constituir vínculos, um povo sem memória fica desumanizado. Assim, a escravidão – na perversa ótica do Faraó – é coerente ao tratar desumanamente com os humanos desumanizados.

O Faraó como divindade coloca-se além da condição humana. Neste processo a relação transcorre entre o escravocrata desumanizado e o escravizado desumanizado. Então surge Moshé [Moisés]. Ele é o ser humano que tenta resgatar o sentido de humanidade do povo escravizado. Surge como líder através da convocação divina. Deus que o convoca não tem face visível sendo assim o único verdadeiro não humano. É o Deus que, conforme relato da Torá,

1 Em minúsculo para caracterizar o elemento idolátrico. A abertura do mar simboliza o rompimento da bolsa d’água no nascimento. Nasce um povo livre. A liberdade é repleta de incógnita. Diante das incertezas, este povo precisa constituir suas referências.

se apresenta como o Deus dos patriarcas Avraham [Abrahão], Itschak [Isaac] e Iaakov [Jacob] valorizando as conexões que constituem parte essencial da memória. O diálogo entre Moshé e o Faraó fracassa. Não há como ser bem sucedido o apelo de liberdade de um ser humano dirigido a quem se considerava entidade superior à dimensão humana, não há como criar um canal de comunicação entre aquele que tem o respaldo da memória e quem a anula, não há elo de compreensão entre o ser humano que tem nome – Moshé – e aquele que por se crer entidade divina somente tem título – Faraó.

* * *

A pressuposta divindade do Faraó é testada no embate com Deus – verdadeiro e único – através das pragas. Algumas pragas afetam as fontes de sustento: água, rebanhos e plantações, além da praga da escuridão que cessa a luz solar essencial para o florescimento das sementes na terra. Estas pragas comprometem justamente o que Iossef havia zelado: o abastecimento. Assim, as pragas fazem ressurgir a relevância daquele que foi esquecido. A memória é restituída para que a história renasça.

O Faraó, que antes fez desaparecer o passado, vê o futuro evaporar com a morte de seu primogênito. Por sua vez o povo judeu enxerga o nascimento. A abertura do mar simboliza o rompimento da bolsa d’água no nascimento. Nasce um povo livre. A liberdade é repleta de incógnita. Diante das incertezas, este povo precisa constituir suas referências. Faz isto por meio da antítese. As pirâmides – que apontam para o céu e acumulam riqueza fixa não utilizada – são substituídas pelo Monte Sinai em cujo topo a Torá é recebida para direcionar-se a terra, onde os seres humanos vivem. A riqueza da Torá é o ensinamento disseminado a todos, em qualquer lugar.

* * * E começamos a celebração do Seder. Recitamos a Hagadá. A palavra Seder significa ordem. A ordem é necessária para que em nosso turbilhão diário não sejamos escravos presos aos grilhões da imposição barbárica. Seder é ordem para que sejamos capazes de fazer face aos desvarios de nossa sociedade e para que não sintamos a aridez como se no deserto da vida nos encontrássemos. Seder é ordem para que nem tudo seja possível. Quando tudo é possível somos reféns do caos. Seder é ordem para que nos livremos do medo que o caos gera. Seder é ordem para reforçar os

laços de convívio. Por isto, seguimos com Então surge Moshé complementar através de outras pessoas. ordem a leitura da Hagadá. Hagadá significa narrativa. Da palavra Hagadá, através das letras hebraicas, for[Moisés]. Ele é o ser humano que tenta Abrir-se para o outro exige – similar à travessia pelo mar que se abriu – coragem. Abrir-se genuinamente para o outro é um ma-se o termo negued que significa neresgatar o sentido de ato de amor. Quem quer ser amo, não gação/oposição. Liberdade é poder conhumanidade do povo ama. O Faraó – amo impositivo – não tradizer e abraçar outra ideia sem que a escravizado. Surge ama. Quem genuinamente ama não busordem – essencial para a preservação dos vínculos de convívio – sucumba. A narrativa aberta às conversas convida o quescomo líder através da convocação divina. ca amo. Busca parceiro. Seder é uma vivência de parceria com amigos, família e comunidade. Com eles tionamento, daí o canto do manishtaná. compartilhamos tanto as histórias antigas Um canto que refuta o sistema faraônico fechado ao diáque pertencem a todos, quanto as novas que elaboramos. A logo questionador. Quem questiona são as crianças. Enhistória não contada deixa de existir. Não contar a história quanto as crianças livres cantam, as crianças da crueldade é reproduzir o Faraó. Contamos as histórias e assim, como vítimas do Faraó foram tragicamente mortas pela praga. ensina o escritor Isaac Bashevis Singer (1904-1991), não * * * lam o Faraó, sejam os bestializados resignados à condição Moshé, protagonista da narrativa contada, não tem seu de escravos. A fim de evitar a repetição dos erros cometinome mencionado na Hagadá para que ninguém receie dos por aqueles que combatemos e no intuito de não inem ser ofuscado. O importante são os ensinamentos que corporar a atitude daqueles contra os quais lutamos, cana liderança de Moshé transmite para que cada um exerça tamos avadim hainu – fomos escravos. seu potencial. A liberdade convoca para nos aperfeiçoarnos tornamos bestas. Sejam as bestas despóticas que emumos abraçando um propósito. A liberdade vem acompa* * * nhada da responsabilidade, sem delegar a alguém o que Tal como o povo hebreu ao longo de sua jornada pelo denos cabe. Tarefa difícil e, por isso, requer apoio. Este apoio serto reclamava, nós também frequentemente reclamaé representado pela quebra da matsá. Um pedaço é esmos. Ora reclamamos de modo justificado, ora simplescondido. Procuramos este pedaço tal como buscamos nos mente por ingratidão. E reclamamos tão mais intensamente

com aqueles que nos dão liberdade – nosA ordem do Seder não se mescla com o futuro projetado entresos parceiros de vida – e menos, por óbvio temor, com os que exercem seus papéis de modo similar a um Faraó. Para que o ané linear, o passado lembrado se mescla laçando as histórias das gerações. Nestas histórias, além de narradores, nos tornamos os personagens. As comidas típicas seio de liberdade flua com o senso de gracom o futuro projetado como matsá, marror e charosset representidão, cantamos daienu – isto nos basta. entrelaçando as tam situações vivenciadas pelos escravos à

Recitamos Eliahu hanavi [o profeta histórias das gerações. busca da liberdade. Incorporamos – liteElias] cuja mensagem, conforme sugere nossa tradição 2 , aproximará as gerações fortalecendo os vínculos. Vínculos são Nestas histórias, além de narradores, ralmente colocamos no corpo – a história que, deste modo, não é somente a descrição do que aconteceu, e sim nossa próreforçados através das histórias compartinos tornamos os pria narrativa. lhadas: de um lado, as antigas que criam personagens. uma memória que nenhum Faraó conse* * * gue eliminar, e, de outro lado, as novas que vão sendo criaO Seder pode se tornar longo, por isso as crianças são condas. Se do Faraó embalsamado na pirâmide há somente vidadas a procurar o pedaço de matsá escondido – afikohistórias antigas, já inspirados por Moshé, sepultado em man – a fim de se manterem despertas. Uma vez que o Selugar desconhecido, criamos novas histórias. Novas históder descreve nossa própria narrativa vale refletir por que rias que as novas gerações livremente contam para as antitantos carecem da determinação de construir sua histógas gerações em sincronia com as histórias que as antigas ria sob os pilares de referências sólidas e cedem à tentação gerações contam para as novas gerações. Quem sabe Eliahu das soluções fáceis. Estas soluções fáceis são seduções que hanavi, sentado invisivelmente na cadeira a ele destinada escravizam a mente. Com a consciência despertada pelo na mesa do Seder, se regozija em ver novas Hagadot 3 senalarme da história lembramos, contamos e criamos. Nada do elaboradas através do elo entre as gerações realizando mais samêach – feliz – do que a liberdade de lembrar e conassim o trabalho que seria anunciado por ele. tar, de sonhar e criar.

A ordem do Seder não é linear, o passado lembrado O Rabino Sérgio R. Margulies serve na ARI-Associação Religiosa

2 3 Tanach, Malachi [Malaquias] 3:24. Plural de Hagadá. Israelita do Rio de Janeiro e leciona no IIFRR-Instituto Ibero-Ameri cano de Formação Rabínica Reformista.

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