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Cócegas no Raciocínio

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Resenhas Livros

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SSIBOLET!

Paulo Geiger

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No livro bíblico dos Juízes conta-se a história de duas tribos, a de Guil’ad e a de Efraim, que estavam em confronto. Os guiladitas, controlando a travessia do rio Jordão, pediam a quem quisesse atravessar que pronunciasse a palavra shibolet. O som do ‘sh’ não existia na fonética efraimita, e o pobre efraimita que, tentando cruzar o Jordão, pronunciava ssibolet, era morto na hora.

Li também em algum lugar da internet que numa luta no sul do Brasil no fim do século 19, os uruguaios (inimigos) eram identificados quando se lhes pedia que pronunciassem a letra ‘j’ (jóta) ou ‘pauzinhos’. O que saía era ‘rrôta’ ou ‘paucinhos’. Morte certa.

Vivemos tempos semelhantes. Sem ser peixe, morre-se pela boca. Se não se morre, quase... Basta dizer algo que não é o que o interlocutor espera, ou quer, ou no que acredita, e o que se segue é desprezo, ou xingamento, ou agressão, e falta pouco para a morte, em alguns casos já não faltou nada...

No Brasil e no mundo. Morre-se por dizer ssibolet, ou paucinhos, numa sinagoga em Pittsburgh, num acampamento juvenil na Noruega, num consulado em Istambul, numa aldeia indígena, num carro num subúrbio carioca.

Em Israel, hoje em dia, quem não aprova o que o governo faz é traidor, mosser, ‘smolani’ (esquerdoide na versão atual de nossas redes sociais ou grupos de whatsapp aqui no Brasil). ‘Esquerda’, para alguns, passou a ser pejorativo, assim

como, para certas esquerdas, sionismo é pejorativo. Nervos à flor da pele, somos todos o contrário, ou só diferentes, do que alguém é, e com isso, seu inimigo. Somos rotulados, tachados, xingados, odiados, agredidos, pelo crime de não concordar, ou pelo crime de usar metáforas e ironias, ou pelo crime de não perceber quão criminosos somos.

Não sei que perigo real corriam os pais do garoto na peça de Brecht Terror e miséria no Terceiro Reich, mas basta o medo dos pais de serem denunciados pelo filho para configurar o terror e a miséria do título. Exageros à parte – e num texto solto como este o exagero é permitido – estaremos a caminho disso no Brasil, e no mundo?

Vivemos aqui e agora um pós-momento, que pode se reverter num novo momento, de situações semelhantes. Acabamos, nós, judeus, dentro de nossa comunidade, de passar por isso. Eu mesmo cheguei ao ponto de apagar automaticamente tudo que entrava em alguns grupos do whatsapp. Não era discussão de ideias, tentativas de achar algum denominador comum mesmo dentro das diferenças de opinião e atitude. Era shibolet contra ssibolet.

Desisti de argumentar que extremismos, de esquerda ou de direita, levam ao mesmo lugar, que a história sabe bem qual é. Desisti de tentar lembrar que os judeus, que com todos os motivos e razões apontam para a experiência histórica

para alertar e advertir contra os perigos das extremas, têm de advertir a si mesmos também. Lembrar que o ideal do equilíbrio social e ecológico, do convívio das diferenças, da justiça, das mitsvot proativas que realizam tudo isso, é parte não de uma facção do judaísmo, mas do judaísmo mesmo. Mas pelo jeito, na verdade, não desisti, já que estou escrevendo sobre isso.

Vivemos uma emergência, sim, mas há no judaísmo um fundamento profundo, estrutural e não circunstancial, que é o ponto cardeal orientador do nosso povo há mais de 3.000 anos, e que está a nosso dispor, pois é parte de nosso DNA.

Permito-me reproduzir o que escrevi sobre este aspecto para um pronunciamento pré-eleitoral que não chegou a ser feito, depois de expurgados os trechos relativos especificamente ao momento brasileiro:

A busca de convicções em meio a tantas incertezas tem a ver mais diretamente com o judaísmo. Já não estou falando de emergências políticas no Brasil, e no mundo, hoje. Ou seja, não estou falando agora de emergências circunstanciais, mas de ameaças estruturais muito mais amplas e profundas, mais profundas até do que as ameaças e tendências representadas por líderes no mundo atual, sejam da direita ou da esquerda, como Trump, Putin, Le Pen, Erdogan, Kim Jong Il, Maduro, Ortega, Duterte, ..... Estou buscando no que temos de comum, o judaísmo, uma visão proativa diante das tendências atuais, no mundo todo. Estou pensando não no que quero evitar, mas no que quero que aconteça, algo mais sólido e duradouro do que os ventos mutantes da política como hoje praticada.

E o judaísmo pode ser um boa fonte de inspiração. O judaísmo não se limita a uma crença no divino no sentido de emular o comportamento divino na atuação dos judeus na Terra. O comportamento judaico é terreno, codificado em mandamentos claros, e a grande maioria tem a ver com a relação entre os homens e entre os homens e a natureza. Portanto, comportamento social e ecológico. Segundo os profetas, o verdadeiro culto a Deus está na atenção aos carentes, oprimidos, perseguidos. A palavra que designa ‘caridade’ no judaísmo é tsedaká, cuja raiz é tsedek, justiça. Caridade não é benemerência, é justiça. Justiça social. Em toda a sua história, o povo judeu, as comunidades judaicas, cultivaram como valor e obrigação o princípio da equidade social, como justiça e não caridade. As comunidades judaicas têm ao longo da história, em geral, evitado se identificar com ideias e programas que se apoiam numa divisão, numa lacuna cada vez maior entre cama

PeterHermesFurian/istockphoto.com das de elite e de carentes ou despossuídos. A rejeição judaica a extremas-direitas e esquerdas passa também por aí. E as regras judaicas de proteção da terra, fonte perecível de nossa sobrevivência física, dão a dimensão, quinze séculos atrás, da preocupação do judaísmo com a ecologia e a preservação.

E mais um aspecto: quem já visitou o Museu das Diásporas em Israel viu, logo na entrada, uma painel de rostos representativos do povo judeu ao longo do tempo e do espaço: múltiplas etnias, múltiplas cores, múltiplas feições, múltiplas origens e culturas. O povo judeu é formado por minorias, no caso, separadas pela geografia e pela história, e se constrói, se reconstrói, reunindo todas as minorias, preservando suas diferenças mas somando-as num povo só. O povo judeu foi buscar suas comunidades, abraçou-as, resgatou-as, respeitou-as. Como poderia um judeu apoiar qualquer programa em que minorias são descartáveis, empecilhos, candidatas à repressão e à humilhação. Como poderíamos nós, judeus, minoria em todos os países do mundo, menos em Israel, que sofreu tanto por ser minoria, que tem na carne a marca da intolerância, não sermos solidários com toda minoria ameaçada?

Como judeus brasileiros, como judeus no mundo atual, nossa história e nossa geografia, nossa experiência e nossa realidade se cruzam e nos alertam, a ameaça já é suficiente. Não podemos fingir que não vemos. A solidariedade que devemos, como judeus, a todas as minorias, ricocheteiam numa solidariedade conosco mesmos, como diz a ética grega.

Um abraço afetuoso de um guiladista a todos os efraimitas. Ssibolet!

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