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Teologia ateia? Entrevista com Arthur Green
TEOLOGIA ATEIA?
Entrevista de Arthur Green a Ruben Sternschein
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O Rabino Dr. Ruben Sternschein entrevista publicamente a um de seus mestres atuais, o Rabino Professor Dr. Arthur Green.
Na América Latina, costumamos associar Abraham Joshua Heschel ao carismático e incansável lutador pelos direitos humanos, Rabino Marshall Meyer, e também a sua caminhada junto com Martin Luther King. Porém, acima de tudo, na maioria de seus dias, meses e anos, Heschel foi um acadêmico, que pesquisou, escreveu e ensinou rabinos. Um de seus discípulos mais famosos neste aspecto de sua trajetória é Arthur Green.
Fundador do Hebrew College, no qual serve como Reitor e professor de Filosofia e Religião judaicas, o Rabino Dr. Arthur Green é uma das mais destacadas figuras atuais da Teologia judaica, com profundo impacto na formação de muitos dos mais influentes rabinos dos nossos tempos. É professor emérito da Universidade Brandeis, onde ocupou a prestigiosa cadeira Philip Lown de Pensamento Judaico, foi presidente e decano do Seminário Rabínico Reconstrucionista, lecionou na Universidade de Pennsylvania e publicou mais de uma dúzia de livros. Discípulo dos Professores Alexander Altmann e Nahum Glazer, além de discípulo do Rabino Professor e filósofo A. J. Heschel, Art Green prestigiou o público na CIP com uma aula/bate-papo no começo do curso de Pensamento judaico de 2018.
Deus não é uma entidade separada do mundo ou da humanidade. É o ser em si, que é dentro de tudo. As rezas não são ouvidas por Deus, elas mesmas o revelam, são o sagrado, são Deus. As narrativas bíblicas não são história. “Segundo o mestre chassídico Pinchas de Koritz, ‘o mundo pensa que reza frente a Deus ou para Deus, mas não é assim. A reza em si é Deus’.”
São desafios paradigmáticos para nossas vidas. O mal não existe fora da intenção das pessoas de fazer mal. O resto é natureza indiferente, sem intenções. E o amor divino é nossa forma de sentir e expressar a gratidão pela existência – são algumas das afirmações conclusivas dessa conversa.
Transcrevemos abaixo um resumo adaptado.
Rabino Green, conte-nos um pouco de sua trajetória biográfica. Como se combinaram de forma tão única a excelência acadêmica e o comprometimento religioso pessoal, o professor universitário e o formador de rabinos?
A família de meu pai era ateia e comunista. A de minha mãe bastante tradicionalista, se bem que não ortodoxa. Assim, cresci como judeu ateu até os 11 anos, quando comecei a frequentar a escola de bar-mitzva segundo a vontade de minha mãe e seus pais. Gostava bastante dos estudos e da proximidade com meus avós maternos, quando, infelizmente, veio a falecer minha mãe. Fiquei mais próximo ainda e aos poucos me tornei um judeu bem observante. Aos 15 anos já vivia como ortodoxo na maioria dos sentidos, mas quando entrei no college aos 18, descobri que não acreditava em nada do que fazia e abandonei tudo. Todavia, descobri, perto dos 20 anos, que minha busca por perguntas existenciais era uma busca religiosa e fiquei atraído pela introdução à cabala do professor Alexander Altman e especialmente por um folheto com uns artigos de Hillel Zeitlin, em quem achei minha linguagem religiosa e meu foco de ação e realização para o resto da vida. Fui a Israel para estudar na Universidade Hebraica com Gershom Scholem, o grande pesquisador que revolucionou o estudo da cabala no século 20, voltei aos EUA para estudar o rabinato e completar o doutorado. A minha dedicação a estes estudos foi sempre uma combinação de buscas pessoais e de trabalho acadêmico. Por três vezes abandonei cátedras universitárias prestigiosas para mergulhar na formação de rabino. A escolha por um estudo mais íntimo em instituições pequenas, que me permitia formar e aprender ao mesmo tempo, se tornou um hábito.
Existe alguma identificação específica com alguma das linhas conhecidas do judaísmo?
Eu me defino nos últimos tempos como neochassídico. Isto é, eu estudo os ensinamentos dos mestres chassídicos clássicos, do século 18, e me identifico com seu pen
samento e modo de ler o judaísmo. Contudo, não levo a vida estrita de qualquer ortodoxia, nem da dos clássicos nem da dos ortodoxos ou qualquer um dos grupos chassídicos que existem hoje. Eu abraço o mundo moderno e contemporâneo e nele procuro integrar a sabedoria chassídica e cabalista.
O que é Deus?
Eu sou um crente e um não crente ao mesmo tempo. Eu acredito, mas não no Deus e no modo de crença convencional do Ocidente. Para mim, Deus não é uma entidade separada e, sim, é o ser indefinível e inapreensível que habita tudo e une tudo. O tetragrama bíblico é uma forma impossível criada na base do verbo ser e estar, que diz ser ao mesmo tempo presente, passado e futuro. Assim o tetragrama talvez deveria ser traduzido como O SER, e nunca como uma entidade denominada Deus ou Senhor.
Então qual é o sentido da reza?
Vou começar dizendo qual não é. O que não é rezar. Rezar não é uma conversa com Deus como se Deus fosse alguém que está do outro lado de uma linha telefônica, ouvindo. Ou do outro lado do céu. Nestes casos, gosto de citar o mestre chassídico Pinchas de Koritz. Ele disse que “o mundo pensa que reza frente a Deus ou para Deus, mas não é assim. A reza em si é Deus”. Deus se encontra no próprio ato ou na própria jornada da pessoa ao buscar e expressar seus anseios, seus medos, suas esperanças, suas necessidades, seu amor e suas lágrimas. Nessa introspecção em si mora Deus. Ela em si é o sagrado. A pergunta não é se Deus ouve. Deus não se encontra além dessas palavras, pensamentos ou emoções para recebê-las. Deus se revela nelas em si. Habita elas, é elas. Para mim, a reza não é uma jornada de ascensão, mas uma viagem ao interior. Em busca da consciência do divino.
Após essa definição de Deus e da reza, qual é o significado das nossas narrativas, o que devemos fazer por exemplo com uma história como a saída do Egito e seus milagres? Nós herdamos histórias e as achamos belas. Mas isso não significa que precisemos de sua literalidade. Eu falo toda sexta-feira no kidush “e se concluiu a criação dos céus e a terra....e terminou Deus no sexto dia sua obra...”, mas eu não acredito que o mundo foi criado em seis dias. Do mesmo modo, o relato da saída do Egito para mim não é história. Eu não sei se os judeus estiveram no Egito. Mas, na minha opinião, essa não é uma pergunta religiosa. Essa é uma pergunta para historiadores ou arqueólogos. Egito é um paradigma de tudo que nos amarra e escraviza. A pergunta de Pessach é qual é o nosso Egito e como devemos sair dele. Antes de falar no Seder “escravos fomos na terra de Egito”, nós lemos na Hagadá: “Este ano somos escravos no próximo seremos livres”. Essa é a condição religiosa da narrativa e da celebração de Pessach. Como conviver ao mesmo tempo com amarras e liberdades. Na minha opinião, a libertação também é uma pergunta teológi


ca, porque, no fundo, pergunta como en“Neste ponto me apoio acima de tudo. Ou podemos escolher oucontramos o divino em liberdade. Libertar-se é, para mim, encontrar Deus. Tornar-se livre é descobrir Deus. na cabala que acredita, sim, existir o mal dentro tros valores e caminhos. Neste ponto, me apoio na cabala que acredita, sim, existir o mal dentro do dido divino e o próprio vino e o próprio divino luta dentro de si Como o senhor entende o mal? Como divino luta dentro de para vencê-lo. Neste contexto, a humaacredita que deveríamos lidar com o mal? si para vencê-lo. Neste nidade existe para cooperar com o diviO mal é algo que existe apenas dentro da esfera humana. Mal é trazer sofrimento deliberadamente a alguém ou incontexto, a humanidade existe para cooperar no nessa luta pelo aperfeiçoamento interno constante. tencionalmente não cuidar de alguém que com o divino nessa luta Acredito que ficaram claros dois desafios. padece dor. Na minha opinião a natureza pelo aperfeiçoamento O primeiro é como conviver com uma não tem mal. Um terremoto não é mal. O câncer não é mal. São simplesmente resulinterno constante”. essência divina que inclui o mal. Que tem mal. Que é também mal. O seguntados do decorrer da natureza. Sem intendo, qual é o significado do conceito do ções. A natureza é indiferente. Não tem intencionalidade. amor divino uma vez que o divino tem mal e foi definido
A pergunta teológica do mal, na minha opinião, resicomo a própria existência e natureza que é indiferente ao de na seguinte formulação: por que temos a capacidade do sofrimento. Em outras palavras: nunca diríamos que almal? Especialmente faz sentido como pergunta teológica guém indiferente a meu sofrimento pode ser reconhecido no contexto de minha ideia de que todos somos imagem como alguém que me ama. Como então o divino poderia do divino. E mais, somos tanto aspectos do divino como incluir o conceito de amor após ter sido definido como a o divino em si. Nesse sentido, o mal sim acaba sendo parexistência indiferente ao sofrimento? te do divino e a pergunta, um desafio teológico e religioso. O amor divino, na minha opinião, se concebe da se
Eu acredito na evolução. O divino, como a existênguinte forma: Nós existimos, como tudo que existe, em vircia, precederam a tudo que vemos hoje e foi evoluindo tude de um sistema que nos permite essa existência. A áraté chegar a uma célula e a milhares de células que formavore percebe a mesma luz e energia que nós. Ela a transforram plantas e animais simples até evoluírem mais e mais ma em clorofila. Para ela, a luz do sol é clorofila. Para nós é em mecanismos mais complexos cuja cúspide é o céreamor. Nossa tendência natural é sentir gratidão pela existênbro humano. Essa evolução aconteceu através de procescia, atribuí-la a nenhuma razão além do “chessed” (compaisos que incluíram violências terríveis. Nós possuímos no xão de amor), como sugere Maimônides no final de O Guia nosso DNA herdado a capacidade para essa agressão viodos Perplexos. Ao supormos que não existe razão nem neceslenta. É parte de nosso lado animal. sidade para a existência, concluímos que ela vem de um ges
Na minha opinião a pergunta do mal se contextualiza to desinteressado de amor e sentimos gratidão por isso. Preassim: por que temos essa capacidade, mesmo sendo divicisamos de linguagem para expressá-la e de um interlocunos? Por que temos evoluído por esse caminho de morte? tor. E assim nasce a religiosidade. A luz é a mesma. A oriNão sei a resposta. gem a mesma. O funcionamento o mesmo. Para a árvore é
Todavia, acredito que na retrospectiva surge uma quesclorofila. Para nós é amor. Em uns casos é maior em outros, tão operacional: quais são nossas alternativas? Podemos é menor. Um presente de um ano, de um dia ou de cem. sustentar a dinâmica da luta da sobrevivência do mais forte ou trocá-la por outros valores. Afinal, nós somos tamEntão o amor divino é uma interpretação, uma recepção, bém como formigas e como abelhas. Precisamos de coouma atitude? É o modo como o humano recebe, interpreperação. É através dela que conseguimos governar esse plata e reage à vida ao vê-la como presente? neta. Aprendemos a respeitar e a ajudar. Podemos então Sim, mas isto não é pouco. Daí cria-se um relacionatrilhar a vida com a ideia de que, já que sobrevive o mais mento real, uma vida real, um modo real de ser, de conforte, sejamos o mais forte. América acima de tudo. Brasil ceber e de viver.

Minha esposa, que você conheceu e “A contribuição da Como considera o suicídio? viu numa cadeira de rodas, viveu antes uma longa vida e nos últimos anos teve muitas complicações que sofremos juntos. Eu poderia dizer que Deus foi cruel, religiosidade para a ciência está na capacidade de se Entendo que o suicídio é um ato de desespero. Eu vejo o desespero como algo triste e complicado. Não posso julgar. Não posso entrar na dor de quem expeterrível e insensível ou posso agradecer maravilhar, de sentir rimenta esse desespero que o leva ao suipelos anos presenteados. Ser religioso assombro e gratidão, cídio. Eu acredito que estamos aqui para é sentir e expressar gratidão pelo que se tem. É tudo que temos. É esse sentimento de gratidão que abre os corações. O salmo admiração e sacralidade diante do mistério”. valorizar a vida, agradecer por ela e multiplicar o amor que ela representa. Por isso vejo o suicídio com muita tristeza, entenque diz mizmor letodá (cântico de gratido que se trata da rejeição do presente e dão) deveria ser traduzido como cântico à gratidão. Exsinto dor diante dele. Sem julgamentos. Aqui eu me idenpressamos gratidão pelo presente de podermos sentir gratifico como Rebbe de Breslav, devemos trabalhar muito e tidão. Sentir gratidão é um presente e faz toda a diferença. sempre para não desesperar jamais.
Perguntas do público
Nas suas palavras percebe-se ao mesmo tempo evolução e destino de algum modo...
Eu acredito na evolução, como disse acima. Por outro lado, como religioso acredito em Deus e como místico acredito que tudo é um. Tudo é uma unidade chamada Deus ou Ser. O Ser é quem evoluiu do um nos vários, do simples no complexo. Está tudo contido nessa unidade. Eu não acredito num Deus que diz “agora vou criar nessa cena tal pessoa para que viva de tal modo e faça tal ação”. Não. Tudo é um, tudo é num ser. Ao mesmo tempo. A representação do tetragrama mostra que os três tempos se mesclam. Passado, presente e futuro são um ao mesmo tempo na unidade. A contribuição da religiosidade para a ciência está na capacidade de se maravilhar, de sentir assombro e gratidão, admiração e sacralidade diante do mistério. Deus é a natureza, mais do que ela ou diferenciado dela?
Eu sou pananteista, não panteísta. Para mim, a natureza, como tudo, é parte de Deus, mas Deus é mais de um modo misterioso. Um infinito mistério maior.
Como considera a Cabala Luriana?
Como uma ótima linguagem metafórica. Profunda, mas metafórica. Eu não levo suas imagens literalmente. O tsitsum, a contração como movimento vinculado à criação, me parece acertado, pois mostra que existe uma concentração de energia em qualquer ato criativo. A questão da ausência e presença divina prefiro tratá-la conforme fez Nachman de Breslav sobre Luria: a ausência divina é uma presença mais profunda e complexa que precisamos revelar.
O Rabino Dr. Ruben Sternschein serve à CIP-Congregação Israelita Paulista, de São Paulo.
