9 minute read

Resenhas Livros

Next Article
Em Poucas Palavras

Em Poucas Palavras

A Bandeira Nazista na ONU

Resenha do livro My Country – A Syrian Memoir, de Kassem Eid, publicado em 2018 por Bloombsbury Publishing.

Advertisement

Kassem Eid nasceu na Síria em 1986, numa família de palestinos que foram forçados a deixar sua propriedade rural ao norte de Israel em 1948. Kassem não indica quem os forçou a se mudar: se foram expulsos pelos israelenses; se estavam temerosos por sua sorte num Estado judaico; se foram influenciados por propaganda alarmista. Ou, talvez, pela soma de alguns destes, e outros, motivos. De todas as formas, Kassem se define como um Palestino-Sírio. E o “Meu País” (My Country) sobre o qual ele escreve é a Síria. O que ele testemunhou e vivenciou foi compartilhado por inúmeros outros sírios de identidade não hifenizada.

Os pais de Kassem trabalham muito, a mãe em casa e o pai longas horas fora dela, principalmente como jornalista. Com isto conseguem criar com dignidade uma grande família de oito crianças, das quais Kassem é o mais jovem. Ele é muito interessado em leitura e, incentivado pelos pais, aprende a ler e escrever antes da idade escolar. O pai tem uma grande coleção de “Seleções do Readers Digest”, e, com ela, Kassem passa a dominar também o inglês e a ter uma visão sobre a vida nos Estados Unidos.

A entrada na escola provoca um choque em Kassem. Ele entra diretamente na segunda série, pois já está alfabetizado, e pela primeira vez tem contato com o mundo fora do ambiente familiar. Na sala de aula se depara com uma foto grande do governante Sírio Hafez Al-Assad, sorrindo de uma forma que o incomoda. Fita longamente o retrato e é imediatamente interpelado por um menino mais velho, alawita (a seita islâmica de Al-Assad), que inicia uma briga com ele. Ao chegar em casa procura o pai e pergunta porque aquilo aconteceu. O pai lhe diz: “Filho, antes de tudo você vai me prometer que nunca mencionará nada do que me falou e nada do que eu vou te falar para ninguém. Nem para o seu professor, nem para os seus vizinhos, nem para os seus irmãos. Você pode me prometer isto?” 1 Kassem assente e o pai lhe explica a situação política da Síria e como funciona a ditadura de Hafez Al-Assad, que privilegia os

alawitas e, dentre os demais, apenas os que lhe juram lealdade incondicional. Tudo muito distante do mundo que o menino lia no Readers Digest.

Muito jovem ele já sente o peso da discriminação. Tem ótimo desempenho, mas nunca é reconhecido entre os melhores alunos, distinção reservada apenas aos filhos dos aliados do governante. Oportunidades que seriam dele são oferecidas a crianças com menor mérito. Num certo momento, Kassem passa a se desinteressar pelos estudos e passa a ter todo o tipo de problemas com as autoridades do sistema de educação. Torna-se um jovem adulto e trabalha em variadas ocupações, sempre com destaque. Mas nunca é promovido para além de um nível médio. A Síria é um fardo pesado para carregar, mas ele ama o país e ama as pessoas. Ele e seus amigos sonham em silêncio com o dia em que chegarão a liberdade e a igualdade.

E de repente o que era um sonho impossível parece estar ao alcance! Na esteira da “Primavera Árabe”, iniciada na Tunísia em 17 de dezembro de 2010, a Síria começa a se manifestar pelo fim da ditadura de Bashar Al-Assad (o filho de Hafez que assumiu o feudo do pai após sua morte em julho de 2000).

A pequena cidade de Moadamya 2 , onde Kassem mora, testemunha as primeiras manifestações em março de 2011. Cerca de 300 pessoas marcham pelo centro da cidade pedindo a remoção do prefeito e a restituição de terras desapropriadas pelo governo. Em 20 minutos chega a polícia e os temidos Shabiha (milícia armada e patrocinada pelo governo) e começa a pancadaria. Leva nove horas para a cidade retomar a calma. Os habitantes, Kassem inclusive, estão em transe: “Naquela noite, pela primeira vez em muitos anos, eu e toda a minha família ousamos acreditar que a liberdade era possível na Síria – não em uma década, ou em uma geração, mas num ano, ou talvez, num mês”. 3

A partir daí o livro passa a relatar as crescentes manifestações e sua brutal (na falta de uma palavra mais contundente) repressão. Cenas inacreditáveis são relatadas no livro. Kassem, a princípio, mantém uma distância cautelosa dos manifestantes, mas acaba completamente envolvido na luta pela liberdade e pela democracia na Síria.

E o ponto culminante de seu relato, o centro do livro, o evento em torno do qual o restante do texto parece ser um mero envelope, é o dia 21 de agosto de 2013. O infame dia em que gás Sarin foi usado pelas forças de Bashar Al-Assad contra sua própria população na cidade de Moadamya. O relato é contundente e a leitores judeus traz reminiscências dos textos que lemos sobre o levante do Gueto de Varsóvia, 70 anos antes:

4:45 am – 6:30 am

Meus olhos queimam, minha cabeça lateja e minha garganta está arranhada em busca de ar. Eu estou sufocando.

Tento ao máximo inalar – uma, duas, três vezes. Tudo o que eu ouvia era o mesmo horrível som rascante vindo de minha garganta bloqueada. A dor martela minha cabeça de forma insuportável. Começo a perder o foco.

De repente minha traqueia se abre novamente. O ar rasga minha garganta e alfineta meus pulmões. Agulhas invisíveis golpeiam meus olhos. Uma dor lancinante atinge meu estômago. Eu me dobro e grito para os meus companheiros, “Acordem! É um ataque químico!” …

Corro para baixo, para a rua, me desviando de janelas destroçadas, paredes que desmoronam, pisos esburacados e pilhas de escombros. Quando chego na porta da frente e olho para a rua, paro e arregalo os olhos em horror.

Dúzias de homens, mulheres e crianças se contorcem de dor no chão. Outros gritam por ajuda, rezando e clamando por Alá nos céus, pedindo para que seus caídos voltem a respirar.

No canto da minha visão percebo um volume caído no chão. Me aproximo e vejo que é uma criança, com seu rosto voltado para o chão. Corro e viro ela para cima.

A visão de seu rosto me faz esquecer todos os horrores que vi nos últimos três anos: os corpos queimados e pútridos depois dos massacres, as mulheres e crianças estraçalhadas pelas bombas, o grito dos meus amigos feridos no combate – esqueço de tudo isto. Só consigo focar naquele rosto inocente tingido de grotescas manchas de vermelho, amarelo e azul. Seus olhos retornam um olhar vítreo. Vômito branco escorre de sua boca e um som rascante sai de sua garganta enquanto ele luta para respirar …

Ouço um rugido distante vindo de cima. Os aviões de Assad se aproximam. Levanto meu pescoço olhando para eles e esperando o barulho das bombas. Estará isto acontecendo mesmo? Olho em todas as direções, prescrutando as ruínas do meu bairro, procurando por algo, qualquer coisa, que me ajude a dar um sentido para o que estava acontecendo.

Alam Dar [um amigo] grita para chamar a minha atenção. Ouvi e olhei mas não respondi. Simplesmente não conseguia processar o que estava acontecendo. Ele me dá um tapa no rosto.

“Estão tentando invadir?”, pergunto tolamente.

“Sim!”

“De onde?”

“De todos os lugares! Precisamos de gente. Você pode lutar?”

“Sim.”

Na verdade eu nunca tinha lutado antes. 4

Isto aconteceu em 2013. O levante do Gueto de Varsóvia aconteceu 70 anos antes, em 1943. A diferença é que em 2013 existe a ONU, com seu compromisso de manter a dignidade humana em todo o planeta independentemente da truculência dos governos.

O presidente Obama dos EUA havia traçado uma “intransponível” linha vermelha: se Assad ousasse usar armas químicas, os EUA interviriam na guerra civil da Síria, afirmou ele do alto de seu Prêmio Nobel da Paz, ganho logo após sua primeira eleição.

Mesmo sem entender porque é aceitável massacrar o povo com explosivos, mas não com armas químicas, os amigos de Kassem ganham uma nova esperança: agora o mundo vai intervir! Assad será deposto e julgado por seus crimes e a Síria entrará numa nova era de liberdade, igualdade e paz.

Os observadores da ONU visitam Moadamya. Recolhem amostras do solo e dos estilhaços das bombas, visitam os hospitais, falam com as pessoas. E chegam a uma conclusão: gás Sarin foi usado no ataque. Mas a esperança de Kassem e seus amigos de que o mundo, finalmente, intervirá não se realiza. Duas semanas depois do ataque, Obama anuncia que vai pedir autorização do Congresso dos EUA para intervir na Síria. E Kassem relata:

Esperamos pelo veredito do mundo sobre a relevância do nosso sofrimento e do valor de nossas vidas. Obama consultou o Congresso, o parlamento Britânico debateu o assunto, os franceses tergiversaram. Eu tentei me manter otimista, mas internamente já sabia a verdade. Em 14 de setembro, Obama firmou um acordo com a Rússia, que permitia a Assad escapar da punição por seus crimes, desde que destruísse seu estoque de armas químicas. Assad tinha acabado de sufocar com gás centenas de mulheres e crianças, e ele continuaria a poder nos bombardear e a nos matar de fome, sem punição. 5

O livro continua a relatar as atribulações de Kassem até o dia em que ele consegue, com muitos remorsos e a alma despedaçada por estar abandonando a luta armada, escapar da Síria. Sua missão passa a ser mostrar para o mundo o que está se passando.

Vai para os Estados Unidos, aparece na ONU, vai para a Europa. Fala, mostra, argumenta. Mas suas palavras não fazem efeito nenhum. Desesperado, tenta voltar para a Síria, mas não consegue e, finalmente, se rende e pede asilo à Alemanha, onde mora até hoje. O título do último capítulo do livro resume seu sentimento: “Hope Estinguished” – “O Fim da Esperança”.

Ao leitor judeu que se emocionou com os ecos do Gueto de Varsóvia no relato sobre o horror e a bravura por ocasião do ataque químico em Moadamya, fica um pensamento perturbador:

A bandeira nazista poderia, no dia de hoje, estar tremulando no prédio da ONU!

A desgraça de Hitler não foi seu falso viés nacionalista e/ou socialista. O que causou a derrocada do nazismo foi seu sonho imperialista. Talvez, se tivesse, tal qual o clã Assad, limitado suas ambições a ser o ditador da Alemanha, sem invadir os vizinhos, teria exterminado cruelmente todos os judeus, homossexuais, portadores de deficiência e opositores políticos de seu país.

Enquanto isso, o mundo derramaria as suas costumeiras lágrimas de crocodilo e mandaria “comissões de verificação”, que fariam extensos e indignados relatórios, que seriam usados em emocionantes discursos cheios de indignação vazia. Ah, sim, também se estabeleceriam solenes e intransponíveis ultimatos não cumpridos.

Mas, apesar de tudo isto, tal qual acontece com a Síria de hoje, a Alemanha nazista faria parte da família das nações, sem maiores restrições. Quem sabe teríamos um figurão das SS, de uniforme preto e caveira na lapela, sentado na presidência da comissão de Direitos Humanos?

A lição que Hitler ensinou aos ditadores, incluíndo os da Síria é: não tentem sair de dentro de seus países. Enquanto massacrarem “apenas” sua população ninguém vai se incomodar muito.

O livro de Kassem Eid é pequeno e de leitura fácil. Em um ou dois dias se dá conta dele. Mas a mensagem que dele se extrai é muito perturbadora e precisa nos acompanhar para sempre. Não se esqueçam nem de Moadamya 2013 ao lembrar de Varsóvia 1943.

Notas

1 2

3 4 5 Página 14. Na zona rural da capital Damasco, da qual dista menos de 20 km. O Google Maps a chama de Al Moadamyeh. Páginas 61-62. Páginas 93-97. Páginas 108-109.

Raul Cesar Gottlieb

This article is from: