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Perspectivas da fronteira
Vittorio Corinaldi
Quando, em princípios de 1956, cheguei a Bror Chail, não só o kibutz era um primitivo acampamento de barracos erguidos sobre um solo poeirento que a chuva transformava em frustrante lamaçal, como toda a região do Neguev Setentrional era um vasto território semiárido, sobre o qual começavam a nascer as primeiras lavouras, que introduziam manchas de colorido na desolada uniformidade cinza-amarelada do panorama.
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Hoje, campos cultivados e pomares cobrem integralmente a superfície, e o olhar percorre uma fértil e generosa natureza, transformada pelo persistente esforço do homem.
Autores dessa transformação são os kibutzim que surgiram nesses anos ao longo da fronteira de Gaza. Todos são fruto do estabelecimento voluntário de jovens dos movimentos juvenis sionistas-socialistas – em grande parte da América Latina, e dentre eles do Brasil.
Eles se colocaram como um marco objetivo de definição territorial frente a uma das mais estranhas manifestações geopolíticas de nosso tempo, herdada do tratado de armistício da Guerra de Independência de 1948 como um enclave mantido em sua retirada pelo derrotado exército egípcio. É uma estreita faixa comprimida entre o Mediterrâneo e Israel, onde se concentram em condições extremamente difíceis 2 milhões de pessoas, mantidas por interesse político em deplorável estado de sub-habitação, nutrição, sanidade e assistência médica, com infraestruturas deficientes e desemprego, numa posição de eternos refugiados, vivendo em constante provisoriedade e penúria. Israel ocupou a Faixa de Gaza e os anos subsequentes foram de relativa calma. Criou-se um contato com a população civil e milhares de cidadãos árabes atravessavam diariamente a fronteira para vir trabalhar em Israel. Foi um período positivo para ambos os lados.
Esta situação sempre foi propícia para A tendência otimista ção e mesmo amizade com vizinhos de a proliferação de grupos extremistas e iniciativas terroristas contra Israel – que, à curta distância, observada através da cerca foi sufocada pelos radicalismos das duas além-cerca. A tendência otimista foi sufocada pelos radicalismos das duas partes, e a proque hoje delimita todo o território, é vispartes, e a promissora missora aproximação que deu origem aos ta com olhar rancoroso como um paraíaproximação que deu acordos de Oslo foi brutalmente cortada so de desigual riqueza e bem-estar. Desorigem aos acordos de pela ação do fanático religioso judeu Igal de sempre a Faixa de Gaza (que hoje é dominada pelo grupo extremista muçulmano Hamas, e no passado foi administraOslo foi brutalmente cortada pela ação do Amir, que levou a cabo o até então inconcebível ato do assassinato do primeiro-ministro Rabin, sob incitação “mesda pelo Egito, que a ocupou militarmente fanático religioso judeu siânica” de falsos rabinos do setor dos asaté a Guerra dos Seis Dias de 1967, quanIgal Amir, sob incitação sentamentos. O que veio substituir o sodo Israel o rechaçou) foi base de lançamento de toda sorte de atos hostis contra os adjacentes kibutzim e a cidade de Sderot: atos hostis que paradoxalmente incre“messiânica” de falsos rabinos do setor dos assentamentos. pro de esperança que então havia começado foi a política nacionalista dos governos de direita, assentados sobre o extorsivo apoio dos grupos religiosos ortomentaram depois que Israel, no mandato doxos dos vários matizes. do primeiro-ministro Ariel Sharon, se retirou e desmanteÉ preciso compreender que essa política e o impasse lou os insustentáveis assentamentos que lá tinham surgique se criou na tentativa de negociar – mesmo sem ter do durante os anos de sua administração. uma ativa correspondente disposição do lado palestino –
O leitor pouco familiarizado com as peculiaridades do leva o público palestino, e em especial os jovens, mais e conflito deve saber que a citada excentricidade geopolítimais a um desespero pela falta de perspectiva para o fuca fazia de Gaza um distrito da Autoridade Palestina toturo. Este sentimento é particularmente agudo na Faixa talmente separado geograficamente do principal núcleo da de Gaza e é cinicamente usado pelo Hamas e demais gruCisjordânia, onde a supremacia é do Fatah (o herdeiro popos extremistas atuantes à sua sombra, para encorajar atos lítico da OLP de Arafat, mais inclinado a alguma sorte de de “patriótica” insurreição. entendimento com Israel). Com a retirada, o radical HaForam eles, de início, o constante bombardeio dos mas assumiu o poder, estabelecendo um regime autônoishuvim judeus com mísseis de primitiva fabricação camo dissidente da liderança da OLP, e concentrou todos os seira ou munição de proveniência iraniana. Quando Isesforços na promoção de hostilidades contra Israel, às cusrael encontrou a resposta tecnológica para neutralizar estas da segurança e bem-estar de sua população. ses mísseis, passou-se à construção de túneis que pudes
Nos anos 50, a atividade terrorista era constituída de sem levar os guerrilheiros árabes até o interior dos kibutinfiltrações armadas dos chamados “Fedayiun”, que visazim driblando a vigilância israelense. Também este expevam sabotagem e assassínio. Ela foi debelada na Guerra diente não teve sucesso, e o passo seguinte foi incitar as do Sinai (Operação Suez) de 1956. Ao término desta, foi massas da população a manifestações de protesto ao loncriada uma força da ONU de policiamento da fronteira, go da fronteira, com tentativas violentas de invasão, lanque funcionou com reduzida eficiência até 1967, quando çamento de pedras e queima de pneus. Todos estes foram – às vésperas da Guerra dos Seis Dias – o presidente egíprechaçados pelo exército, numa reação certamente legíticio Nasser ordenou sua retirada. ma, mas talvez desproporcional à natureza rudimentar do
Israel ocupou então a Faixa de Gaza, e os anos subarmamento empregado: um fato que foi ruidosamente ensequentes foram de relativa calma. Criou-se um contato fatizado e exagerado pela mídia internacional. com a população civil e milhares de cidadãos árabes atraHoje, ao lado dos instrumentos enumerados, uma vessavam diariamente a fronteira para vir trabalhar em Isnova “arma” de ataque entrou em ação: pipas lançadas ao rael. Foi um período positivo para ambos os lados, e até ar, portadoras de mechas incendiárias. Este primitivo dispessoalmente posso testemunhar de relações de colaborapositivo demonstrou-se eficiente, ateando fogo a extensas
áreas de culturas prontas para a colheita ou a bosques pacientemente plantados e cultivados para mudar a realidade ecológica e ambiental: um cenário tipicamente demonstrativo de um sentimento popular que os “estrategistas” do Hamas conseguem desviar para seus objetivos políticos, servindo-se da experiência lúdica de jovens e crianças.
Aqui, faz-se necessário um comentário objetivo desta situação de confronto, que vem durando já há longos anos.
Israel respondeu às provocações do Hamas, e à sua insistente recusa de reconhecer o Estado judeu e seu direito à existência, com um embargo total, que abrange as fronteiras terrestre, marítima e aérea; com um controle muito severo de materiais e mercadorias introduzidos via Israel; e com um fornecimento reduzido de água e energia elétrica. Todos estes só podem agravar a já desastrosa situação da população.
A reação israelense à prolongada realidade de violência tem sido quase só tecnológica e militar. Enquanto redijo este texto, paira um perigo de que se passe a uma vasta operação militar da envergadura das anteriores de anos recentes, que pode resultar numa reocupação do território e em sofrimentos humanos para os dois adversários.
Vítima deste critério preponderantemente tático e de curto alcance têm sido os habitantes de Sderot e dos kibutzim: sua resiliência tem sido admirável e digna de respeito; sua confiança na segurança oferecida por Tzahal (Exército de defesa) é completa, e não se abalou em todos os anos de duração das desgastantes provocações. Mas há um limite, por mais que os atrativos físicos da região e a ligação de longos anos com o lugar possam exercer uma influência positiva neste espírito de resistência. E advertências neste sentido começam a se ouvir a partir dos kibutzim endereçadas ao governo. Este não demonstra especial disposição de chegar a soluções políticas mais efetivas do que os passos de retalhamento punitivo ad-hoc ou os engenhos tecnológicos sofisticados. Pois tais soluções políticas implicam numa negociação com o Hamas que só poderia começar com alguma concessão, como o levantamento do embargo e a implementação mais generalizada de medidas humanitárias, que Israel, como o lado mais forte, poderia se permitir com boa dose de confiança.
Também, o governo de direita de Netaniahu não se apressa em dar expressão muito clara de solidariedade com os “esquerdistas” kibutzim, representantes mui
to mais autênticos do setor rural e da colonização obreira (“Hitiashvut Ovedet”) do que os assentamentos das milícias religiosas da direita na Cisjordânia, seus custosos e exigentes protegidos.
Que futuro espera finalizar uma vez por todas o longo caminho de sacrifícios? Que perspectivas se apresentam para uma juventude educada no ódio e na ignorância, incitada por um Islã fanático na ilusão de uma destruição de Israel e de uma impossível volta aos tempos da hegemonia árabe em toda a Palestina?
O silencioso heroísmo dos kibutzim e dos centros rurais e urbanos da fronteira pode indicar um caminho. Mas para isto é preciso que a maioria do público israelense modifique pelo voto o endereço de nacionalismo retórico e vingativo, de impulso místico-messiânico que inspira os militantes dos assentamentos e seus representantes parlamentares. Esta é uma perspectiva que hoje parece por demais longínqua, e não é de esperar que Netaniahu (ou

quem pouco provavelmente o venha a substituir se a isto for obrigado pelos processos jurídicos em que está envolvido) se lance a uma auspiciosa abertura e quebra de impasse no diálogo com os palestinos: o eleitorado israelense está submerso numa corrente de indiferença temperada por uma ilusória prosperidade econômica, e voltada para lamentáveis aspectos de racismo, intolerância e discriminação. E então seguramente assistiremos a um continuar dos ataques aos kibutzim, senão a piores desenvolvimentos da situação, que os ventos que sopram da América de Trump e de uma Europa inclinada para um ressuscitar das direitas podem facilmente incentivar.
Onde estarão perspectivas mais otimistas? Só uma recusa de aceitar a realidade como imutável e uma ação política e educativa persistente o dirão.
Vittorio Corinaldi, Tel Aviv, junho de 2018.


