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Cristal que virou noite

Rabino Sérgio Margulies

Se fôssemos um dos quinhentos mil membros da comunidade judaica alemã nos anos trinta do século 20, qual seria a nossa reação diante da ascensão do nazismo?

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Talvez fosse a mesma do pai de Miriam Shapira. Era o ano de 1935. Da varanda de seu apartamento viu pessoas marchando na rua cantando: “Quando o sangue dos judeus estiver em nossas facas, estaremos felizes”. Ainda que preocupado, ele a tranquilizou: “Este é o país de Schiller, Goethe, Mozart – nada vai acontecer conosco neste país culto”. E acrescentou: “Vamos chamar a polícia”. Acreditava que a polícia iria conter os baderneiros. Logo aprenderia que estes baderneiros representavam a nova ordem. Eles eram a polícia.

O país de Schiller e Goethe era também o país dos desesperados. Em 1928 havia 650 mil desempregados na Alemanha. Em 1929, o dobro: um milhão e trezentos mil desempregados. No ano seguinte, em 1930, mais do que o dobro: três milhões. Em 1931: 4.350.000. Em 1932: 5.100.000 desempregados. O Partido Nazista crescia em similar proporção: de 72 mil afiliados em 1927 passou a quase um milhão e meio em 1932. E em 1933, ano da última eleição livre na Alemanha, este partido chegou ao poder. Democraticamente eleito obteve 43,9% dos votos. O Chanceler escolhido: Adolf Hitler.

O pai de Miriam poderia citar alguns judeus: “Este é o país do poeta Heinrich Heine, do inventor Emil Berliner, dos cientistas Paul Ehrlich, Max Born e Albert Einstein”, e ainda poderia acrescentar: “Este é o país de judeus patriotas, na Primeira Guerra Mundial 12 mil judeus morreram lutando pelo exército alemão e 18 mil foram condecorados com a Cruz de Ferro”.

O país de Schopenhauer e Hegel elegia Hitler. O país de Heine, Berliner, Born, Ehrlich, Einstein poderia inicialmente se iludir e acreditar que Hitler se

Kristallnacht representa o renascimento da demonização do judeu que a ilusão quis acreditar estar extinta.

Nas fotografias deste artigo: a Neue Synagoge de Berlim em seu estado atual.

ria um vendaval passageiro e que prevaleceria o império da lei garantidor da igualdade civil aos cidadãos da religião israelita. No entanto, o império da lei foi substituído pela lei do império: as leis raciais de Nuremberg em setembro de 1935 retiraram dos judeus os direitos de cidadão. O inconcebível foi respaldado por mais de 400 associações antissemitas alemãs e por juristas, homens de negócios, acadêmicos e líderes religiosos. Para o mundo era uma questão interna alemã. Não iriam interferir.

Grande parcela da comunidade judaica emigrava, mas os que permaneciam julgavam ser possível sobreviver mantendo a vitalidade comunitária, mesmo que cidadãos de segunda classe, afinal – sem considerar o êxodo – eram poucos, em torno de 500 mil, nem 1% da população. Mas o país – não mais dos filósofos e músicos – fazia outra conta: eram um milhão e meio, pois contavam todos que tinham ao menos um dos quatro avós como ancestral judaico. Seja 1% ou 3% constituíam 11% dos advogados e 16% dos médicos. O que era orgulho para os judeus tornou-se alvo do ódio de tantos.

* *

O país, não mais do pensamento refinado dos filósofos como Schopenhauer e Hegel, abraçava uma fórmula simples: 1) eles eram os culpados, 2) nós precisamos eliminar os culpados. E quem eram eles? Os judeus. Nas palavras de Goebbels: “Nós queremos apontar o dedo no judeu como... o inimigo do mundo,... o parasita entre os povos,... a encarnação do mal...”. Por que os judeus? A máquina de propaganda nazista explica: “Se os judeus não existissem, inventaríamos os judeus”. Era preciso alguém para culpar. Assim, Hitler afirmou se referindo à data de

rendição da Alemanha na Primeira GuerO país de Heine, criação do novo Estado Livre da Bavaria, ra Mundial: “Nós vamos destruir os judeus. Eles não vão se livrar do que fizeram em 9 de novembro de 1918.” Na mesma Berliner, Born, Ehrlich, Einstein poderia era tanto acusado de judeu bolchevique quanto de agente da burguesia. Irrelevante para o uso manipulativo do preconceidata – vinte anos depois –, provou que inicialmente se iludir to Eisner ter sido indiferente ao judaísmo. buscaria cumprir sua promessa. O fato é que nem os judeus e nem o e acreditar que Hitler seria um vendaval * * * ódio a eles canalizado precisavam ser inventados. Este ódio já destilava por séculos nas veias da sociedade embriagada pela passageiro e que prevaleceria o império Kristallnacht representa o renascimento da demonização do judeu que a ilusão quis acreditar estar extinta. Na hostilidade que confere uma ilusória seda lei garantidor noite de 9 de novembro de 1938 foram gurança ao desprezar o outro. O historiada igualdade civil destruídas 400 sinagogas e 7.500 estabedor Raul Hilberg (1926-2007) analisa a relação entre a lei canônica da Idade Média e a lei nazista: aos cidadãos da religião israelita. lecimentos, 100 morreram e 30 mil foram enviados para campos de concentração.Não foi fato isolado a ser deplorado, pois já no dia seguinte, conforme o ra

Judeus e cristãos Judeus barrados dos bino Emil Fackenheim (1916-2003) descreve: “Um dia proibidos de compartilhar vagões de refeição (30 após aquela noite (somente fui preso um dia depois) anrefeições (ano de 306) de dezembro de 1939) dei, ingenuamente, pelo famoso Kurfürstendamm – algo

Judeus impedidos de andar Judeus impedidos de estar como a Quinta Avenida de Berlim – e um espetáculo: honas ruas durante a semana da Páscoa (ano de 538) nas ruas certos dias (3 de dezembro de 1938) mens respeitáveis e bem vestidos pisavam sobre os vidros quebrados das vidraças das lojas dos judeus e pegavam sa

Queima de livros judaicos (ano de 681) Queima de livros “não alemães” (10 de maio de 1933) patos e vestidos...” Dois dias após, em 12 de novembro, o governo nazis

Roupas dos judeus Roupas dos judeus marcadas ta multava os judeus em um bilhão de marcos a título de marcadas (ano de 1215) (1º de setembro de 1941) compensação pelos prejuízos, como se eles, vítimas, fos

Proibida a construção de Destruição de sinagogas sem culpados. A legitimação da destruição prossegue: no sinagogas (ano de 1222) (9 de novembro de 1938) dia 28 de novembro de 1938 Hitler recebeu um telegrama: “Três novas igrejas foram construídas. Elas levam seu

A relação entre a legislação da Idade Média e as leis de nome, ‘mein Führer’, em gratidão a Deus pela milagrosa Nuremberg – somadas à mensagem de Martin Luther que redenção da nossa nação através de suas mãos.” no ano de 1543 aconselhou aos governantes incendiar as casas de culto judaico, a destruir as residências e expropriar * * * * propriedade dos judeus – demonstra que o ódio incubaO rabino Abraham Heschel (1907-1972) alerta: “Aldo estava pronto para renascer. E pouco importava se era a guns são culpados, mas todos são responsáveis”. Podemos terra de Schiller, Goethe, Schopenhauer e Hegel, porque, dar nome aos culpados: Adolf Hitler, Josef Goebels, Reifrequentemente, quando a razão se volta contra os interesnhard Heydrich, Heinrich Himmler, Herman Goering, ses, perdemos o interesse em manter a razão. O interesse dá Rudolf Hess. Já os responsáveis não têm nome. É a massa contornos de legitimidade à destruição e ao genocídio. O amorfa que autoriza a conivência. Que silencia por cumódio estava pronto para renascer e pouco importava se na plicidade. A massa não tem fronteira. “E o mundo silenterra de Heine, Born, Einstein, Ehrlich, porque o antisseciou”, escreveu o sobrevivente da Shoá Ben Abraham. A mitismo autoriza projetar no judeu – como uma mancha quebra dos vitrais fez barulho. Este barulho, em complade Rorschach – o que a percepção moldada pelo preconcência, não foi escutado. Como não foram escutados os ceito quer enxergar. Assim, Kurt Eisner, que ao fim da Priapelos de bombardear as linhas de trem que levavam jumeira Guerra Mundial proclamou o fim da monarquia e a deus para os campos de extermínio.

As vítimas também não têm nome. A quebra dos vitrais fez a escuridão – nacht – em novo kristall – Somente registro. Não eram consideradas humanas para terem nome. Os perpetradores aniquilavam apaziguados: mabarulho. Este barulho, em complacência, não em nova luz. Erguem novas sinagogas. Resgatam o brilho do judaísmo para que resplandetavam os que, em sua concepção, sequer foi escutado. Como não ça entre nós e ilumine a todos. A todos existiam. E se existiam, era anomalia a ser foram escutados os porque se enganam os que pensam que o extirpada. Assim, os algozes e seus cúmapelos de bombardear antissemitismo vilipendia somente ao juplices se vangloriavam de praticar o bem. O ódio e a indiferença de tantos não pode ocultar atos justos, como do camas linhas de trem que levavam judeus para os deu. O próprio mundo se quebrou com as vidraças estilhaçadas. peão mundial de boxe peso pesado entre campos de extermínio. * * * * * * 1930-32, Max Schmeling, que na Noite No porão de um prédio na cidade de dos Cristais escondeu em sua suíte do hotel de Berlim dois Colônia, onde judeus se esconderam, foi encontrada uma filhos de um amigo judeu, dono de uma loja de roupa. O inscrição: boxeador fingiu estar doente por quatro dias para não sair do hotel até que fosse minimamente seguro. Os dois meEu acredito no sol mesmo quando não está brilhando ninos, Henri e Werner Lewin, sobreviveram à guerra. Eu acredito no amor mesmo quando não estou sentindo * * * * * Eu acredito em Deus mesmo quando Ele está silencioso.

Pelo cristal entrava luz. A noite apagou.

Pelo cristal entrava o convite. Venha à minha loja.

A noite apagou.

Pelo cristal mostrava-se o santuário religioso.

Veja, esta é a casa religiosa do meu povo, tal como também verei a sua.

Na escuridão da noite não há nada mais para ver.

Pelo cristal pode-se dar um oi, mandar um beijo, fazer um aceno. Dar boas-vindas, dar tchau. A noite apaga a luz do aceno.

Pelo cristal vê-se o rosto do outro.

A noite apaga o rosto que se esconde no medo.

Kristall tornou-se nacht.

Os sobreviventes – e seus descendentes – transformam

Oitenta anos depois, ainda que sem a mesma ingenuidade do pai de Miriam Shapira, continuamos a acreditar. Acreditamos cientes da crueldade que pode jorrar de uma terra patologicamente dilacerada. Acreditamos porque, conforme as palavras do rabino Fackenheim: “A incerteza do que acontecerá não pode abalar a certeza do que devemos fazer.”

Este artigo amplia a prédica proferida por ocasião da recordação da Noite dos Cristais realizada na Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro, em 9 de novembro de 2018.

O Rabino Sérgio R. Margulies serve na ARI-Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro.

CONSULTE-NOS: (21) 2257-2556 ou fc@fcrj.org.br

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