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Resenhas de Livros
RESENHAS LIVROS
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Livro de Sergio Alberto Feldman
Oleitor de Devarim que se interessou pelo texto Adversus Iudaeos, de Saul Kirschbaum, a respeito de Isidoro de Sevilha (publicado em Devarim em abril de 2013) ganhou uma nova chance de ampliar sua visão sobre este tema com o lançamento, pela Editora Prismas, de um livro sobre o mesmo personagem, escrito por Sergio Alberto Feldman, professor no Departamento de História da Ufes de Vitória.
As Obras de Isidoro de Sevilha e a Questão Judaica está escrito num estilo leve e agradável, sem, contudo, deixar de abrigar o rigor acadêmico, contando com copiosas notas. Santo Isidoro (canonizado em 1598), Bispo de Sevilha, foi um dedicado educador, autor profícuo e teólogo católico. Ele é frequentemente indicado como o “patrono da internet”, por ter reunido em sua obra nada menos que 154 diferentes fontes do passado clássico e dos primórdios do cristianismo. Numa época pré-Google isto é uma enormidade!
O livro se divide em quatro partes. A primeira descreve a produção histórica a respeito do tema. Já na segunda, Feldman situa com precisão o momento político vivido por Isidoro, que é o da consolidação do domínio Visigodo na Península Ibérica, iniciado no século sexto, na onda da derrocada do Império Romano. A conquista visigoda criou duas categorias principais de população cristã: de um lado os romanos e de outro, a nova nobreza visigoda conquistadora. Estes dois segmentos se dividiam tanto pelos códigos legais aplicados a eles como pela adesão a duas variantes de cristianismo. Além destas tensões ainda havia a questão da transformação dos visigodos de tribos nômades para ocupantes sedentários e a construção de uma realeza hereditária.
Os visigodos praticavam a variante cristã denominada “ariana”, enquanto que os romanos eram católicos. Gradativamente os reis visigodos tentam consolidar seu domínio, uniformizando o povo. E é para responder a este desejo real de impor a uniformidade que entra em cena Isidoro, pacificando as seitas cristãs e unindo todos os cristãos sob o catolicismo. Uma vez os cristãos unificados, salta ao primeiro plano a diferença judaica.
A nobreza e o clero tentam eliminar essa diferença, convertendo os judeus, assediando-os com métodos cada vez menos sutis, dentre os quais o completo afastamento dos cristãos e o empobrecimento da minoria judaica. Conforme se lê na página 105: “A quantidade de cânones e leis reais relacionados com os judeus, editadas entre 589 e 711, é muitas
vezes superior àquelas direcionadas para coibir as heresias e o paganismo. Isso comprova a importância conferida aos judeus desde então”.
O papel de Isidoro nesse processo é o de prover um arcabouço teológico que justifique a opressão. Não é descabido considerar que ele é o principal expoente na fundamentação do antissemitismo religioso, que impregnou a Igreja Católica até o Concílio Vaticano II.
Parte dos judeus emigra, parte sucumbe e se converte e parte resiste: empobrece, se isola, mas se mantém judia. Os judeus jamais desaparecem, o que faz Isidoro publicar mais e mais acusações contra a prática, as crenças e a reputação dos judeus, numa espiral que só termina junto com sua vida.
O terceiro capítulo é dedicado à análise de cada um dos livros da extensa obra de Isidoro, com um foco especial no Fide Catholica ex veteri et novo testamento contra iudaeus, onde o judaísmo é analisado e demonizado. Contudo, Isidoro não entendia hebraico e não conhecia o Talmud. Então a sua análise é cheia de suposições muito duvidosas, como a que encontramos na página 225: “Utiliza-se de um trecho da lei que fala de dois tipos de chuva – uma antecipada e outra posterior, comparando-as à doutrina dos dois testamentos”. Ou seja, uma referência agrária relevante aos hebreus do tempo bíblico é distorcida para justificar a substituição dos judeus pelos cristãos como “povo eleito”. E assim, o shabat, a kasherut, a circuncisão e tantos outros fundamentos judaicos são desvalorizados. Não faltando nessa lista as pesadas alegações da culpa judaica pela morte de Jesus. O último capítulo do livro analisa a visão isidoriana da história e do papel do monarca cristão e de sua missão.
A relevância do estudo da obra de Isidoro de Sevilha para os nossos dias é o processo inerente às ditaduras de construção de um inimigo externo para fortalecer a coesão interna do grupo. Para impor uma dinastia hereditária absolutista foi necessário criar um inimigo demoníaco e ameaçador, sendo os judeus escolhidos para esse papel. Enquanto o Império Romano cultivava o multiculturalismo, o judaísmo não era contestado, mesmo tendo os judeus se revoltado com uso de violência por duas vezes. Contudo, no momento em que a entidade política tenta se impor de forma absolutista aparece a necessidade de construir pela força uma uniformização do pensamento.
A busca da igualdade, o objetivo da vida de Isidoro, parece ser um objetivo nobre. Mas é preciso qualificar qual igualdade é efetivamente nobre: a de direitos e deveres, tal qual as democracias modernas ou a do achatamento forçado de todos os indivíduos num único molde formatado conforme os interesses dos poderosos de turno. O livro de Sérgio Feldman, com sua precisa e muito agradável leitura sobre a Espanha Visigoda, mostra a inevitável opressão gerada pela tentativa de eliminação das diferenças individuais.
Meshugá
Livro de Jacques Fux
Em Contra o Fanatismo, Amos Oz escreve: “Acho que inventei o remédio para o fanatismo. Senso de humor é uma grande cura. Nunca vi na minha vida um fanático com senso de humor, nem vi uma pessoa com senso de humor tornar-se fanática”. O senso de humor, efetivamente, inclui a capacidade de não se tomar completamente a sério, de colocar uma pitada de dúvida em tudo o que você acredita firmemente.
A loucura compartilha com o senso de humor esta mesma capacidade de repudiar o fanatismo. Ao não aceitar experimentar o mundo da mesma forma como os demais parecem estar experimentando, ao se perceber irremediavelmente atraído por algo que mais ninguém percebe, as certezas desaparecem.
Jacques Fux, judeu, mineiro, doutor e pós-doutor em Literatura Comparada (e também colaborador de Devarim em abril de 2011, com um texto a respeito das referências judaicas no filme Bastardos Inglórios), escreveu Meshugá, um romance sobre a loucura. O livro está magistralmente estruturado a partir das biografias de oito personagens judeus, entremeadas por curtos ensaios sobre mitos atribuídos a judeus e, finalmente, por um narrador que intervém no começo e no final do livro comentando a reação do escritor à medida que avança em sua obra.
Começa o narrador: “Ele imaginava que escrever este livro seria divertido. Pensava que todos os mitos, as crenças e as falácias atribuídos ao louco judeu – meshugá – poderiam ser discutidos ludicamente. Vislumbrava demolir estes absurdos argumentos,
credos e teses através da ironia. Esperava que toda a questão da loucura fosse uma mera brincadeira, mas se enganou redondamente”.
Efetivamente, o quadro que o narrador pinta do escritor ao final do livro é perturbador: “Ao vasculhar a alma e a mente destes atormentados personagens, se confronta com a própria vida e com a loucura”. e “Nessa viagem ao inferno ele não consegue encontrar o personagem divertido e irônico que fez de si”. Escrever sobre a loucura não foi uma tarefa divertida, muito ao contrário.
O caminho entre a divertida expectativa inicial e a angústia ao final da obra é pavimentado pela descrição da loucura de oito personagens, alguns muito conhecidos, alguns com ocupações completamente divergentes do main stream judaico, mas todos fascinantes.
Fux começa com Sarah Kofman (1934-1994), uma aclamada filósofa francesa, com mais de 20 livros publicados, onde analisa Freud, Nietzsche, o papel das mulheres e outros temas. Sarah se suicida aos 60 anos, após escrever um livro sobre a sua atormentada vida de sobrevivente da Shoá. Em seguida vem Woody Allen e seu assombroso caso de amor pedófilo com a enteada adolescente, filha adotiva de sua esposa Mia Farrow. O livro prossegue com Ron Jeremy, um improvável amante das artes, que se tornou o principal ator da indústria pornográfica dos Estados Unidos. O quarto da lista é Otto Weininger (1880-1903) filósofo austríaco e homossexual que se suicida aos 23 anos de idade, por ser incapaz de achar um lugar para si no mundo.
Grisha (Grigori) Perelman, matemático russo contemporâneo que conseguiu resolver a conjectura da geometrização e Thurston (o maior desafio da matemática moderna), o que lhe granjeia a medalha Fileds (o maior prêmio da matemática), mas que se sente incapaz de enfrentar a fama, recusa a medalha e se retira do mundo indo viver com a mãe. Em seguida, Fux nos apresenta o personagem mais inesperado da série – Daniel Burros – um judeu norte-americano que se tornou, nada mais nada menos, do que um dos maiores ideólogos da Ku Klux Klan, grupo racista e virulentamente antissemita.
O sétimo da lista é o genial enxadrista Bobby Fischer, ganhador do campeonato mundial de xadrez de 1972, colocando a bandeira dos EUA no meio de uma impressionante série de 26 vitórias russas, que seriam consecutivas, não fosse por Fischer. Contudo, seu triunfo vira sua perdição e acaba a vida vituperando contra os EUA e contra os judeus. O último meshugá é o mais remoto no tempo da lista. Trata-se de Sabbatai Zevi (1626-1676), o tristemente famoso falso Messias que arrebatou as esperanças judias de redenção para destroçá-las num único dia ao ser confrontado pelo grão-vizir Turco.
Oito personagens impressionantes, que não compartilham, de forma alguma, da mesma visão ou compreensão sobre os judeus e o judaísmo, mas que pintam um quadro fundamentalmente judaico. Pois o judaísmo é a cultura da dúvida, da instabilidade e da percepção das próprias fraquezas. A Torá é única também por não esconder as falhas das figuras que reverencia. Com isto ela coloca o judaísmo em total contraste com o culto a heróis sem mácula e aos personagens fundadores das diversas culturas que são, via de regra, tidos como isentos de qualquer tipo de falha e centralizadores de todas as virtudes.
Jacques Fux, este imensamente talentoso escritor judeu e brasileiro, nos coloca frente a frente com as diversas variantes da doença que acomete a quem não consegue conviver com as próprias fraquezas. A leitura de Meshugá é perturbadora, mas necessária.

