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Em Poucas Palavras

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Paulo Geiger

Paulo Geiger

120 ANOS DO BUND

Os anos terminados por 7 abrigam os aniversários redondos de uma série de eventos transformadores do mundo judaico.

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• 120 anos do Primeiro Congresso Sionista (29 a 32 de agosto de 1897) • 100 anos da Declaração Balfour (2 de novembro de 2017) • 70 anos da votação de partilha da

Palestina pela ONU (29 de novembro de 1947) • 50 anos da Guerra dos Seis Dias (5 a 10 de junho de 1967)

O fator de união entre estes eventos é o Sionismo moderno e sua concretização no Estado de Israel. Contudo, há uma outra data de importância seminal para o povo judeu que aconteceu em ano terminado por 7 que é, injustificadamente, muitas vezes colocada em segundo plano pelos historiadores: a fundação em 7 de outubro de 1897, em Vilnius, Lituânia, da gloriosa União Geral dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia, ou mais simplesmente “Bund” (União em ídiche). O primeiro, e até agora único, partido político organizado por judeus e para judeus na Diáspora.

Sua fundação ocorre no mesmo ano do primeiro Congresso Sionista e isto não é nenhuma coincidência. Por décadas Bundistas e Sionistas disputaram as almas e as mentes da rua judaica. Ambos empenhados em responder ao mesmo desafio, mas sob

Outra convergência entre o Bund e o Sionismo é o socialismo. No primeiro, o socialismo foi pedra fundamental. O Bund era um partido de esquerda, sem a menor ambiguidade a esse respeito. Já o Sionismo não se definia como socialista, mas foi liderado por suas facções de esquerda por 80 anos redondos – desde 1897 até 1977. Definitivamente, o caminho da reconquista da dignidade judaica transitou pela esquerda.

O Bund obteve vitórias espetaculares em sua caminhada. Injetou maciças dosas de orgulho por sua riquíssima cultura aos judeus. Conseguiu mitigar séculos de opressão e granjeou respeito aos judeus. Foi traço de união entre comunidades e criou sólidos laços de solidariedade. Contudo, se aceitarmos a controversa assertiva de que o nazismo foi o resultado inevitável do antissemitismo europeu, a visão Sionista se provou superior. Pois foi o nazismo que derrotou o Bund e é por conta do nazismo que neste 2017 se fala muito mais das quatro datas redondas do Sionismo do que dos 120 anos do Bund. O nazismo acelerou a conquista do Sionismo ao mesmo tempo em que destruiu fisicamente toda a liderança do Bundismo europeu (que sobreviveu na América, se bem que hoje com muito pouca força).

Mas não podemos permitir que a vitória do Sionismo apague das páginas judaicas a heroica e gloriosa caminhada do Bund. Principalmente quando se comemora os 120 anos de sua fundação. ü

Daseugen/istockphoto.com

premissas e caminhos divergentes. O desafio de trazer o povo judeu para a normalidade junto com as demais nações e povos do mundo, depois de mais de 18 séculos de vil, criminosa, e muitas vezes violenta, marginalização.

Os Sionistas sustentavam que seria impossível obter esta normalização sem o concurso de um Estado Judaico soberano. Já os Bundistas afirmavam que a normalização seria fruto da igualdade, sem assimilação, entre os cidadãos em seus respectivos países e, portanto, se empenharam em fazer os judeus participar plenamente da vida cultural e política de seus países (nada mais natural neste contexto do que fundar um partido político). Duas visões divergentes para o mesmo desafio, mas ao mesmo tempo convergentes em sua oposição a uma terceira resposta ao desafio da normalização que pregava a dissolução do judaísmo, ou seja, a assimilação dos judeus dentro das culturas que os rodeavam.

SOB A PROTEÇÃO DA ONU

Em 10 de agosto a blogueira iraniana Neda Amin chegou ao aeroporto Ben Gurion em Tel Aviv onde foi recebida pelo editor-chefe do The Times of Israel, David Horowitz. As fotos do aperto de mãos entre os dois não tem nada demais. Em primeiro plano se vê um sorrindo para o outro e ao fundo a habitual cena de familiares e amigos que se encontram, como em todos os aeroportos do mundo.

Contudo, a chegada de Neda não era algo corriqueiro. O que aquela fotografia mostra é o ponto final de uma jornada que, se não fosse por Horowitz e pelo Estado de Israel, teria terminado numa prisão em Teerã e, muito provavelmente, na execução da jornalista.

Ela mantinha um blog em Teerã e era crítica do governo. Participou das manifestações contra o regime em 2009 e foi espancada pelas forças de segurança (melhor dizendo, da opressão). Depois protestou pelo assassinato em massa dos cães da cidade e ficou presa alguns dias por isso. Mas o pior problema foram seus livros. Dois foram banidos por “iludir a opinião pública” e ela foi obrigada a reescrever um outro, onde relatava a opressão das mulheres por seus pais, irmãos e maridos. A censura a obrigou a retirar todas as críticas, transformando cinicamente a obra numa história de amor e harmonia. Mas, como nas ditaduras a única liberdade de expressão que existe é a de elogiar a liderança, mesmo cedendo à algumas das pressões para moderar suas críticas rael, que ela não conhecia, mas cujo jornal tinha aceito um post dela há alguns anos. E o editor sentiu que deveria fazer alguma coisa. Afinal de contas, os problemas de Neda na Turquia tinham começado com o post que ela enviou para o seu jornal. David Horowitz contatou todos os conhecidos que poderiam ser de alguma ajuda e ficou surpreso. Ninguém se negou a ajudar. E, assim, ele, que é um grande crítico do governo Netanyahu, conseguiu que este mesmo governo concedesse permissão de moradia para Neda Amin em tempo recorde.

“Israel foi criado para servir de refúgio para os perseguidos”, disse Natan Sharanski, o presidente da Agência Judaica, no momento em que Neda começou a frequentar aulas de hebraico num ulpan em Jerusalém, algumas semanas após sua chegada.

“Como um jornalista que é frequentemente crítico do que é feito aqui, que se preocupa sobre o caminho que estamos trilhando, eu me sinto muito orgulhoso do que o Estado de Israel fez hoje” declarou David Horowitz depois de receber Neda no aeroporto.

“Ganhei uma segunda chance na vida. Vivi sem liberdade e igualdade por 32 anos e agora estou descobrindo seu verdadeiro significado e valor. É muito excitante!”, disse Neda, acrescentando “estou convencida de que os israelenses amam os iranianos e os iranianos amam os israelenses”. E para os mulás no Irã ela deu o recado: “continuarei a escrever sobre seus crimes até que o regime caia e eu possa voltar livre ao Irã”.

Para encerrar, consideremos o eloquente silêncio e omissão da ONU sobre o episódio. Que, talvez, pode ser traduzido na seguinte (e hipotética) declaração: “Nossa missão continuará sendo de ajudar a todos os refugiados políticos que denigram o Estado de Israel. Quanto aos outros, bem, eles que se virem!” ü

ela continuou a ser vigiada e percebeu que sua integridade estava em risco. Em 2014 fugiu para a Turquia, onde pediu asilo à ONU. Recebeu o status de exilada política e sossegou. Finalmente estava livre para escrever o que bem entendesse e publicar onde quer que a aceitassem.

Ledo engano. Seus problemas apenas mudaram de endereço. Ela cometeu o “erro” de enviar uma postagem para o The Times of Israel e a partir daí foi o governo turco que passou a vigiá-la. Ela foi interrogada seis vezes, sob suspeita de trabalhar para o serviço secreto israelense (como se um bom disfarce para um agente secreto fosse o de enviar postagens para jornais israelenses). Numa das vezes ela perguntou aos interrogadores se era um crime escrever para um jornal israelense. Responderam que não era crime, mas que eles (a polícia turca) não gostavam de Israel, que eles não gostavam de judeus e que era para ela parar de escrever, pelo bem dela.

Ela achou que o status de refugiada reconhecida pela ONU garantia sua integridade. Mas estava enganada. Quando recebeu uma carta do Ministério do Interior da Turquia dando a ela 30 dias para deixar o país, recorreu à ONU e lá foi informada que eles nada poderiam fazer. Ou achava um outro lugar para morar ou seria deportada para Teerã (e, consequentemente, ser presa e torturada).

Bateu o desespero e ela começou a apelar para tudo e para todos. Inclusive para o editor do The Times of Is-

EPPUR SI MUOVE

Conta a história que em 1633, ao deixar o prédio do Tribunal da Inquisição em Roma, onde salvou a vida ao abjurar suas teorias astronômicas, Galileu Galilei teria olhado para o sol e sussurrado para si mesmo “eppur si muove” (no entanto, ele [o sol] se move).

Dentro do Tribunal Galileu assinou uma declaração aceitando a “verdade científica” da Igreja que sustentava ser a Terra o centro do universo, com os corpos celestes girando ao seu redor. “Com coração sincero e fé infinita, eu abjuro, maldigo e desminto os meus erros e heresias”, se lê em sua declaração oficial. Mas, ao sair do tribunal, não se conteve e sussurrou a célebre frase.

Claro que o movimento da Terra em torno do sol não é intuitivo. Quando se olha para o alto o que se vê é o sol se movendo. Mas isto é apenas uma impressão causada pela lentidão do movimento astronômicos e pela grande distância entre os corpos.

Da mesma forma, quando se olha desavisadamente para a ortodoxia, se tem a sensação que ela não se move. Que segue tradições milenares e imutáveis e que tudo que é hoje já foi assim no passado. Contudo, isto é um engano. Ela também se move, mas para apreciar seu movimento é preciso avaliar um período de tempo mais extenso.

Grande parte das meninas ortodoxas da atualidade celebram o Bat Mitsva. Ainda de forma diferente do que seus irmãos do sexo masculino, mas, mesmo assim, o celebram. Cinquenta anos atrás esse contexto praticamente não existia em parte alguma do mundo.

Em setembro passado a sinagoga ortodoxa de Prospect Heigths, no Brooklin, admitiu Michal Kohane como “Rosh Kehilá” (líder comunitária) para servir à comunidade ao lado do rabino sênior Ysoscher Katz. Ela será uma rabina em todos os sentidos, menos no título oficial (que ainda assim é muito dignificado). E o caso dela não é único. Mais e mais congregações ortodoxas em toda a América do Norte admitem “líderes comunitários” e “líderes espirituais” para servir aos homens e às mulheres de suas comunidades. A Yeshiva University e a Yeshivat Maharat formam anualmente dezenas de mulheres letradas em halachá e nos demais aspectos da vida judaica para atender a uma demanda crescente. O novo reitor da YU declarou em entrevista recente: “A questão das mulheres em posição de liderança é, certamente, um tema central nos dias de hoje e é algo no qual estamos muito envolvidos”.

Há dez-vinte anos, quem sonharia com uma mulher em posição de liderança nas comunidades ortodoxas? Contudo, hoje elas não apenas existem, como, em números crescentes e até movimentos mais ao centro da ortodoxia norte-americana, promovem ativamente sua formação.

Uma pessoa recém-chegada de Israel contou numa reunião comunitária: “Visitei a congregação Shirá Chadashá, uma sinagoga ortodoxa feminista em Jerusalém. Tal qual as demais sinagogas ortodoxas, há uma mechitsá (divisão) entre o setor dos homens e o das mulheres, mas a bimá oferece acesso igualitário a ambos os lados da mechitsá. Mulheres rezam na bimá, são chamadas à Torá e fazem Kidush. Eles não têm rabinos. Tudo é decidido por um ‘comitê haláchico’ composto por dois homens e duas mulheres. É emocionante ver a ortodoxia abrindo cuidadosamente suas portas à vida religiosa igualitária”. Efetivamente, a cada ano surgem mais sinagogas ortodoxas igualitárias, algo impensado há dez anos.

Em 1819, na Alemanha, Eduard Gans, Heinrich Heine, Leopold Zunz, Moses Mozer e Michael Baer fundaram a Verein für Kultur und Wissenschaft der Juden (Sociedade para a Cultura e Ciência Judaica), uma instituição dedicada ao estudo científico da cultura judaica. A Wissenschaft der Juden se tornou o ponto central ao redor do qual o Movimento Reformista se desenvolveu. Os setores mais retrógrados do mundo judaico se indignaram: “O judaísmo só pode ser estudado do ponto de vista religioso”, exclamaram, “a análise histórica e literária do Tanach e demais fontes é uma aberração herética!” Contudo hoje, quase 200 anos depois, vemos uma profusão de interessantíssimas obras de autores ortodoxos que estudam o Talmud a partir das posições políticas e das circunstâncias históricas das vidas de seus personagens. O rabino Biniamin Lau é um dos expoentes deste movimento, com livros muito populares sobre os sábios do Talmud. O que o rabino Lau e seus colegas fazem não é nada diferente do que fizeram os precursores do movimento Reformista.

Então, é inegável que também podemos dizer “eppur si muove” para a ortodoxia. O que, para os judeus reformistas, é algo que dá muito prazer. Não por que isto justifique sua forma de vivenciar o judaísmo, visto que esta não depende de terceiros, mas sim pela riqueza que o pluralismo e a diversidade emprestam à cultura. Religiões que não se transformam, que não evoluem, estão destinadas a desaparecer e ninguém quer isto para a ortodoxia judaica. ü

UMA ESTRANHA PROXIMIDADE

Poucas vezes as posições políticas das duas grandes democracias do norte da América estiveram tão afastadas uma da outra. Os governos de Donald Trump e de Justin Trudeau divergem na questão da imigração, na questão climática, no grau de intervenção estatal no fornecimento de serviços de saúde e educação e em mais tantos outros temas sensíveis.

Contudo, estes dois opostos cometeram exatamente o mesmo lapso.

Em 27 de setembro o governo canadense inaugurou o “National Holocaust Monument” (Monumento Nacional do Holocausto) na capital Ottawa. A placa comemorativa da inauguração, assinada por Justin Trudeau, exibia os seguintes dizeres:

“O National Holocaust Monument relembra os milhões de homens, mulheres e crianças assassinados durante o Holocausto e honra os sobreviventes que conseguiram chegar ao Canadá depois de um dos mais sombrios capítulos da história. Este monumento reconhece a contribuição destes sobreviventes ao Canadá e serve como um sinal de recordação para que nos mantenhamos vigilantes contra o ódio, a intolerância e a discriminação.”

Exatamente oito meses antes, no dia internacional de lembrança do Holocausto, a Casa Branca divulgou o seguinte comunicado do presidente Donald Trump:

“É com o coração pesado e a mente sombria que recordamos e honramos as vítimas, os sobreviventes, os heróis do Holocausto. É impossível apreender completamente a depravação e o horror infligidos a pessoas inocentes pelo terror nazista. No entanto, sabemos que nas horas mais sombrias da humanidade, a luz brilha com mais intensidade. No mesmo momento em que nos lembramos dos que morreram, estamos profundamente gratos aos que arriscaram suas vidas para salvar os inocentes. Em nome dos que morreram, eu prometo fazer tudo em meu poder durante toda minha Presidência, e minha vida, para garantir que as forças do mal nunca mais derrotem os poderes do bem. Juntos, faremos o amor e a tolerância prevalecerem em todo o mundo.”

Estes textos passam a impressão que a Shoá (o Holocausto) vitimou pessoas não relacionadas entre si que tiveram o azar de estar juntas no lugar errado e na hora errada. Tal qual as vítimas de um terremoto ou de um desastre de ônibus. Nenhum dos dois comunicados informa que a Shoá foi perpetrada contra os judeus pelo fato de serem judeus e por nenhum outro motivo.

Talvez esta omissão não seja fruto nem de desinformação nem de má fé. Talvez ela tenha sido motivada pela visão de que o Holocausto não é a única tragédia a ter acometido a humanidade e que a mensagem fica mais poderosa quando não particularizada.

Mas isto é um erro. É verdade que outros povos sofreram perseguição e extermínio. Ou seja, os judeus não são as únicas vítimas de atrocidades. Contudo, “desjudaizar” a Shoá, num evento ou monumento em que ela está em foco, dilui a particularidade das vítimas, oculta os motivos pelos quais ela aconteceu e, portanto, diminui a possibilidade de que a humanidade esteja alerta para evitar sua repetição.

E, mais que tudo, é perturbador verificar que dois governos afastados em tanta coisa encontrem seu ponto de interseção justamente na generalização dos crimes cometidos contra os judeus. ü

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ENTRE DOIS AMORES

Rabi Mendel Epstein tem certeza de estar agindo da melhor forma possível. E ele tem bons motivos para pensar assim. Este rabino ortodoxo de New Jersey dedica sua vida a confortar pessoas que ele não conhece e que estão vivendo um pesadelo insolúvel, não fosse pelo seu empenho.

Ele trabalha numa organização que ampara moças ortodoxas que não apenas tiveram o casamento destruído, como também não têm nenhuma chance de recompor suas vidas, pois os maridos se recusam a lhes conceder o divórcio.

A leitura estrita da halachá (lei religiosa judaica) determina que a esposa não tem papel algum no divórcio. Apenas a vontade do marido conta e se ele não quiser assinar os papéis, o casamento continua válido. Isto, evidentemente, impede a moça a ter outros relacionamentos sem incorrer em adultério, o que é claramente inaceitável para pessoas com princípios. Então o destino dela é de “ficar para titia” num ambiente social onde isto não é bem visto. A negativa do divórcio pelo marido equivale a uma condenação de eterna angústia e tristeza.

A halachá também estipula que a esposa pode recorrer a um tribunal rabínico. E muitas fazem isso. Porém, tudo o que tribunal rabínico pode fazer é decretar publicamente que o marido é uma pessoa pérfida, o que deixa sem condição de conviver dentro de sua comunidade. Mas se o marido fugir dali, não há mais nada a fazer.

Entra em jogo, então, Rabi Epstein e sua sincera compaixão. Ele poderia simplesmente dizer “isto não é meu problema”. Mas ele se incomoda com o sofrimento dos outros, mesmo quando estes outros são desconhecidos, e arregaça as mangas na tentativa de achar uma solução.

E a solução que ele dá é radical e eficaz. Primeiramente ele usa detetives para identificar o destino dos fujões. Depois ele os atrai para uma conversa com subterfúgios tais como propostas de emprego e outras ofertas. Daí, quando o marido está em sua frente, ele aciona uma turma de corpulentos ajudantes que agarram, amarram e espancam o fugitivo por horas, até que ele concorde em assinar o documento do divórcio. Ou seja, a solução dele envolve torturar fisicamente os maridos fugitivos.

E a solução funciona. O marido vilão que deixou a esposa desesperada é punido. A esposa está solteira de novo e pode retomar a vida. Ficou, aos olhos dele, tudo bem. Mas há um “pequeno” problema.

A ação de Rabi Epstein faz dele um criminoso aos olhos da legislação de qualquer país democrático. E é por isto que, depois de ter sido atraído para uma cilada, ele foi preso pelo FBI e condenado a dez anos de prisão.

Mas ele não é um criminoso comum. Seus crimes não foram cometidos para enriquecimento ou para satisfação pessoal. Seus crimes foram cometidos em nome de dois amores. O primeiro é a louvável compaixão dele para com o destino das moças abandonadas. O segundo é um amor cego e insensato pela halachá. O medo de que qualquer mudança na halachá possa fazer ruir o mundo ortodoxo no qual ele vive o faz agir de forma criminosa.

E nisto Rabi Epstein está completamente equivocado. Pois está claro que a halachá funcionava quando os judeus viviam em comunidades isoladas e a possibilidade de saída delas era mínima. Neste entorno a pressão social faz efeito e a declaração de perfídia do marido resolvia a maior parte dos casos. Mas hoje isso não é mais assim. Qualquer um pode abandonar a comunidade, basta sair andando. Isto esvazia completamente a força da pressão social e torna ineficazes as declarações do tribunal rabínico.

Conclui-se, então, que para a halachá continuar a ter validade ela precisa ser modificada. O tribunal rabínico deve ter poderes para decretar o divórcio religioso sempre que os motivos forem bem fundamentados. É necessário que os que agem por amor à halachá entendam que ela só vai continuar a ser amada se conseguir responder às circunstâncias do entorno onde vivem os judeus. ü

USE COM CUIDADO!

Frederick Birchall (1871-1955), jornalista nascido na Inglaterra, colaborou com o New York Times durante muitos anos. Em 1932 ele alçou a chefia do serviço europeu do NYT, onde ficou até 1941, tendo, desta forma coberto in loco a ascensão nazista na Alemanha.

Sua cobertura do nazismo lhe granjeou o Prêmio Pulitzer em 1934. Naquele ano, ele noticiou sobre um plebiscito vencido pelos nazistas com as seguintes palavras: “O endosso [do plebiscito] dá ao chanceler Hitler, que há quatro anos nem cidadão alemão era, poderes ditatoriais sem igual em nenhum outro país, e provavelmente sem igual na história desde os dias de Gengis Khan.”

Poucos em 1934 denunciavam o nazismo. Churchill era ridicularizado pelos ingleses e ninguém enxergava a semelhança entre Hitler e Gengis Khan, que se provou lamentavelmente acurada mais tarde.

Contudo, em 1933, este mesmo arguto jornalista descreveu para os leitores do NYT a “brincadeira juvenil” de colocar uma bandeira com uma suástica no alto de uma sinagoga e não viu mal algum na queima de livros por toda a Alemanha. Até 1936 ele continuava não percebendo “evidência de preconceito religioso político ou racial” no nazismo. E ele não foi o único a ignorar o racismo do regime nazista. Em 1933 um repórter do The Christian Science Monitor comparou os camisas marrons a “membros de algum tipo de organização estudantil” e coroou sua peça com a observação que “essas histórias angustiantes de judeus perdendo seus empregos diziam respeito a apenas uma pequena parcela dessa comunidade. O governo nazista não molesta os judeus”.

Provavelmente estes enganos são fruto da falta de habilidade dos jornalistas, pois é sempre mais fácil analisar o passado do que avaliar o presente. Contudo, às vezes existe má fé. Um artigo publicado no ano passado pela historiadora alemã Harriet Scharnberg relatou que a partir da metade dos anos 1930 a Associated Press se comprometeu com o governo nazista em só divulgar fotos favoráveis, em troca de manter aberto o seu lucrativo escritório fotográfico alemão. Harriet relata que no período nazista a AP vendia imagens alemãs nos Estados Unidos e vendia imagens dos Estados Unidos na Alemanha, permitindo que fotografias de judeus americanos e outros fossem usadas em algumas das mais vis propagandas raciais produzidas pelos nazistas. A AP foi, por exemplo, o principal fornecedor de imagens para um livro de propaganda chamado Os judeus nos EUA. As fotos da AP sobre o avanço alemão na Polônia e na Rússia não focavam no assassinato organizado de dezenas de milhares de judeus e outros pelo Einsatzgruppen. As fotos dos prisioneiros soviéticos retratavam espécimes humanos feios. E assim por diante. O artigo de Harriet é demolidor contra a reputação da AP.

O conluio entre a imprensa e os governos totalitários ainda é uma realidade. É impossível manter presença em países como Irã, Arábia Saudita ou Coréia do Norte sem se comprometer com os regimes locais. A justificativa dada pelas empresas jornalísticas é que sem estes acordos não haveria cobertura alguma de lá. Porém, em muitos casos o resultado é pior do que nenhuma cobertura, pois é algo que se parece com a cobertura, quando na realidade é desinformação, dando às pessoas a ilusão de que eles sabem o que está acontecendo em vez de dizer-lhes que estão recebendo informações que tentam enganá-los. Um bom exemplo disso vem de novo da AP: até que a trama fosse revelada em 2014, seu escritório de Pyongyang não era composto por repórteres e sim por funcionários do governo norte-coreano, pagos pela AP mas subordinados ao regime. Assim a AP vende imagens de propaganda, como aquelas adoráveis reuniões coreografadas, enquanto evitava cuidadosamente temas como fome em massa e campos de prisão.

O jornalista Matti Fridman, correspondente da AP em Jerusalém entre 2006 e 2011, relata que no conflito de 2008 o repórter palestino local em Gaza informou ao escritório em Jerusalém que combatentes do Hamas estavam vestidos de civis e eram considerados como civis na contagem do número de mortos – um detalhe crucial. Poucas horas depois, ele voltou a telefonar pedindo que esse “detalhe” fosse suprimido de sua matéria, coisa que Fridman fez pessoalmente. Alguém havia falado com ele que aquela informação colocava sua vida em risco. A partir daquele momento, relata Fridman, a cobertura da AP de Gaza se tornou uma colaboração silenciosa com o Hamas. “Passamos a negociar a verdade em troca de acesso e fornecemos uma ilusão de ‘cobertura’ que era realmente propaganda. Um tipo bem efetivo de propaganda porque era rotulada como ’jornalismo’. Se você mostra imagens reais de uma casa destruída por um ataque israelense, mas omite os soldados do Hamas lançando foguetes do quintal daquela casa, seu relatório é uma mentira”, escreve Fridman em artigo publicado neste ano.

Tudo isso – sem falar nas reportagens e análises ideologizadas feitas por jornalistas que transformam sua profissão na missão de impor sua individual visão política ao mundo – sugere que a indústria do noticiário deva ter seus produtos sujeitos ao mesmo regime que regula os cigarros e a bebida alcoólica: “Use com moderação e por sua conta e risco!” ü

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