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Marcus M. Gilban

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Vittorio Corinaldi

Vittorio Corinaldi

A RABINA DE RA’ANANA, A CIDADE MAIS BRASILEIRA DE ISRAEL

Marcus M. Gilban

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Devarim é a primeira publicação latino-americana a conversar com Chen Ben-Or Tsfoni, única rabina da única sinagoga reformista de um total de cem em Ra’anana, a cidade com a maior concentração de brasileiros em Israel – já são 220 famílias – e que segue como destino mais desejado dos cerca de 900 olim que devem deixar o nosso país em 2017, de acordo com a Agência Judaica.

Aos 53 anos, a israelense é conhecida por ser uma mulher de fibra e de muitos sorrisos. Mãe de três filhos, de 23, 21 e 16 anos, Chen aceitou em janeiro o desafio da sua vida: o púlpito da congregação Beit Samueli, que em muito se assemelha à ARI como principal referência de judaísmo igualitário e inclusivo em sua cidade. Sempre usando seu talit, ela conduz as rezas e também atua como chazanit de voz suave. Parece tirar de letra aqueles que ainda torcem o nariz para uma “rabá”, palavra nova no idioma, já que “rabanit” ou “rebetzin” são os termos em hebraico e em ídiche para referir-se à esposa do rabino.

Assim como a própria cidade de Ra’anana, a Beit Samueli foi fundada por imigrantes norte-americanos. Hoje reúne cerca de 400 famílias afiliadas formal ou informalmente, em grande parte compostas por imigrantes “anglo”, como se identificam por aqui aqueles provenientes

de países de língua inglesa. A inauguração “Hoje nós somos 107 da sinagoga em 2002 veio coroar 16 anos de serviços realizados em residências, espaços cedidos ou alugados. Com um inrabinos reformistas em Israel, sendo 50 vestimento inicial de 1 milhão de dólares mulheres. Em novembro, por parte da família Samueli, da Califór- o HUC comemora a nia, o sonho se concretizou num dos pré- ordenação do centésimo dios mais imponentes e suntuosos da cidade, construído inteiramente com a trarabino reformista dicional pedra branca de Jerusalém. israelense. Dos

Filha de iraquianos que fizeram aliá 4 graduandos, 2 são logo após a fundação do Estado de Is- mulheres e 2, homens. rael em 1948, a rabina conta da sua co- É uma grande mudança.”nexão com a América Latina. Cresceu em meio aos argentinos fundadores do kibutz Bahan e teve como um dos seus mentores o icônico rabino americano Marshall Meyer, incansável ativista de direitos humanos que lutou contra a ditadura na Argentina, onde fundou o Seminário Rabínico Latino-Americano. Pouco a pouco, Chen vem conhecendo as famílias brasileiras em Ra’anana, que buscam a Beit Samueli apesar da pequena sinagoga brasileira ortodoxa inaugurada em janeiro, que conta até com um rabino paulista que faz prédicas em português. Na cerimônia de boas-vindas à rabina, um brasileiro foi convidado a discursar em nome de todos os olim chadashim da Beit Samueli.

Ordenada aos 46 anos pelo Hebrew Union College, principal seminário rabínico do judaísmo reformista mundial, Chen possui graduações em Serviço Social pela Universidade de Haifa e em Educação Judaica pelo HUC. Trabalhou por 20 anos no projeto HaMidrashá, um centro de renovação da vida judaica cujo objetivo é auxiliar judeus israelenses não ortodoxos a refletir sobre questões de identidade judaica pessoal e comunitária e fomentar uma atmosfera espiritual e cultural pluralista em Israel. Viveu em Nova York por três anos e, de volta para casa, assumiu com afinco um projeto de levar conteúdo religioso às escolas tradicionalmente seculares do país. O que significa ser a única rabina na única sinagoga reformista entre quase 100 sinagogas de uma cidade de apenas 80 mil habitantes como Ra’anana?

Uau! Nunca parei para pensar, a pergunta assim é assustadora. Hoje nós somos 107 rabinos reformistas em Israel, sendo 50 mulheres. Em novembro, o HUC comemora a ordenação do centésimo rabino reformista israelense. Dos 4 graduandos, 2 são mulheres e, 2 homens. Em 2016, foram 3 mulheres e apenas 1 homem. Em 2015, 4 mulheres. É uma grande mudança. Hoje, são ambas mulheres a reitora, Naamah Kelman, e a chefe do programa de estudos rabínicos, Talia Avnon-Benveniste. Antes de Rosh Hashaná, a prefeitura organizou um evento com 200 representantes de sinagogas da cidade. Uma das nossas fundadoras recebeu o convite, decidiu ir e perguntou se eu gostaria de acompanhá-la. Apesar de não ter sido convidada – nem eu, nem o rabino Dani –, eu disse: por que não? Ao chegarmos, havia só homens. Lá no fundo, vimos uma mesa com quatro mulheres ortodoxas. Nós nos juntamos

a elas. É um grande desafio, você tem sempre que se esforçar para ser vista e reconhecida. É uma situação bastante peculiar, você não pode apenas ser. É um duplo desafio: ser reformista num ambiente tradicionalista e ser rabina. Ra’anana é um ambiente bastante tradicional. Algumas famílias seculares que vêm até nós para o Bar ou Bat Mitzvá de seus filhos insistem que querem um rabino para realizar a cerimônia. O rabino Dani realiza cerca de 50 casamentos por ano, eu, apenas 5. Para algumas pessoas, não é normal ser rabina. Eu suponho que, para ser parte do todo, eu precisaria fazer algo bastante agressivo. Mas eu prefiro apenas sorrir bastante e assim chegar às pessoas. Rabi Akiva começou a estudar aos 40 anos. Ele não reconhecia uma letra sequer. Ele percebeu que uma pedra havia sido moldada pela água que caía nela, e refletiu: “Se a pedra, que é dura, foi moldada pela água, eu também posso aprender”. É um grande desafio, uma jornada a percorrer.

Os olim são mais abertos a aceitar uma congregação reformista e igualitária do que os sabras? Você acredita que uma sinagoga com maioria de sabras a acolheria da mesma forma?

Os olim que vêm de um ambiente onde há várias opções são, sim, mais abertos. Na maioria dos casos, nós podemos contar com olim da Europa e das Américas. Mas a maioria dos franceses, que vem de um background ortodoxo, jamais pisaria aqui. Olim dos Estados Unidos sentemse em casa quando podem falar a sua língua. Há algumas sinagogas conservadoras e reformistas onde só se fala inglês e, por isso, alguns sabras não se encaixam. Israelenses são mais conservadores. Na época da fundação do Estado, os religiosos fizeram exigências e pediram poder a Ben-Gurion, que concordou com todas. Parte da tragédia que vivemos hoje provém dessa atitude política. Quando os pioneiros concluíram o seu objetivo de estabelecer um Estado secular e este caminhava com as suas próprias pernas, esse buraco espiritual se abriu. O “melting pot” não funcionava mais. “Nós queremos a nossa identidade de volta”, dissemos. “Nós estávamos tomando conta dela para vocês”, alegavam. Eu fui criada num kibutz e eu posso afirmar que os israelenses estão mais acostumados à linguagem reformista – apesar de não ao Movimento Reformista. Todos os chaguim são comemorados lindamente, as celebrações são comunitárias, as crianças compõem músicas nas escolas. Mas ainda existe um medo toda vez que há que realizar cerimônias. Há um sentimento de kmo she tzarich (“como deve ser”). O judaísmo se reinventa há milhares de anos, ou ele teria morrido. Teve que sobreviver às diferentes épocas. Hoje, vivemos em Israel uma das épocas mais paralisadas porque não há pessoas corajosas o suficiente para dizer “vamos mudar”. O judaísmo evoluiu em meio aos outros povos. Era preciso ao mesmo tempo se desenvolver por dentro e reagir ao que o cercava, o que terminava por torná-lo mais integral. A necessidade de reação fez o diálogo mais rico. Você tem que se esforçar, você tem que escolher ser judeu. Escolher onde morar, em que escola matricular os seus filhos, comprar a sua comida. Assim, você

dá um sabor diferente à vida. Aqui em Israel as coisas são fato consumado, você não tem que se esforçar para guardar o Shabat porque há menos transporte, as lojas fecham, você pode sentir o Shabat no ar. Por outro lado, há uma anomalia na questão da identidade. Fala-se hebraico, serve-se o Exército, mas quais são os seus valores? No que você acredita? Em alguns movimentos juvenis, são comuns atividades em torno do tema ser israelense versus ser judeu. Na parashá Lech Lechá, Deus diz a Avraham: “Vá embora da tua terra, da tua pátria e da casa do teu pai”. Yitzchak já recebeu a missão pronta. E Yaacov veio depois. Estamos na geração de Yaacov.

Quando você decidiu ser rabina? Qual foi a reação da sua família?

Meus pais eram judeus tradicionais. Eu nasci em Petach Tikva e cresci em Tel Aviv e depois no kibutz Bahan. Sou a mais velha de três irmãs. Quando criança, nosso senso de família era muito intenso. Meu pai tinha cinco irmãos e todos moravam na nossa rua. A casa dos meus avós estava sempre cheia. Já adulta, eu vivia duas vidas paralelas: uma como educadora judaica, outra realizando trabalhos sociais. Quando eu passei um tempo como membro de uma delegação na congregação B’nai Jeshurun, em Nova York, eu vi que era possível combinar a minha paixão e amor pela tradição judaica e pelas pessoas. Eu costumo dizer que foi algo iluminado! Num certo dia, eu simplesmente soube. Eu ingressei no seminário rabínico aos 40 anos. Minha mãe já tinha falecido. Meu pai tinha muita curiosidade e era muito liberal nas suas atitudes. Meu marido era o mais animado, ele adora um desafio. Eu dizia para ele: “não fique tão animado, nossa vida vai mudar”. A maneira que ele reagiu me deu força. Nós já tínhamos nossos três filhos, que ficaram muito orgulhosos. Eles me convidavam para falar na escola deles. Como eu disse, foi tudo iluminado.

O que significa para você realizar casamentos, divórcios e conversões – os dois últimos são os únicos ritos judaicos onde um rabino é obrigatório – sabendo que nenhum

“O único caminho deles é reconhecido pelo Rabinato de Isé o diálogo. Isso vale para a nossa rael, ortodoxo, que monopoliza a questão religiosa no país? Por um lado, eu me sinto irritada e vida como um todo. chateada, principalmente pelo fato de saConversar, aprender ber que, pelo menos por agora, nada vai junto, conhecer-se mudar. É muito poder envolvido. Por ouolho no olho. Quando tro, esta semana eu vou realizar um casamento para o qual os noivos me escolhevocê conhece alguém ram porque eu sou uma rabina reformisde verdade, você não ta e eles simplesmente não compactuam consegue odiá-lo. com a ortodoxia, é quase que uma forma Você pode discordar, de protesto. Nesses momentos, nós vemos mas não odiar.” que não estamos sozinhos. O rabinato é algo que vem se tornando mais relevante para algumas pessoas seculares. E eles não aceitam que alguém que eles não apreciam venha a realizar o seu casamento. Nós oferecemos casamentos judaicos com significado e com tudo o que é necessário sob a chupá. Mas, ao mesmo tempo, não fazemos parte do modelo ortodoxo antigo e opressivo em Israel. Nós não realizamos casamentos inter-religiosos, mas damos todo o nosso apoio a estes casais de outras maneiras. O rabino Dani é quem coordena os processos de conversão, mas eles são raros. Sobre patrilinearidade: para os filhos de famílias onde apenas o pai é judeu, e que tenham sido criados dentro de um ambiente judaico pleno, consideramos o curso preparatório para Bar e Bat Mitzvá como um processo de conversão antes da sua primeira leitura da Torá. Como você avalia as pixações e as mensagens antissemitas à Beit Samueli, que foram publicamente assumidas por judeus ultraortodoxos? Neste último, no ano passado, eu ainda não havia iniciado o meu trabalho aqui. É assustador. Há muita raiva envolvida e uma abordagem muito chauvinista. “Uma única verdade” e ela é “minha”, pensam. Eu acho que, de alguma forma, o governo indiretamente apoia esta abordagem por meio de orçamento público para essas pessoas, por exemplo. Uma vez que os valores judaicos começaram a se difundir e o Movimento Reformista a crescer, ele não podia mais ser ignorado. Judeus liberais não pediram permissão, apenas fizeram, foi quando o outro lado se tornou mais agressivo. Volta e meia, há casos de ultraortodoxos que esfaqueiam, até mataram uma parti-

Uma faca endereçada a Anat Hoffman (líder do movimento das Mulheres do Muro), ao rabino Gilad Kariv (presidente do movimento Reformista de Israel) e ao rabino Rick Jacobs (presidente do movimento Reformista da América do Norte) foi deixada na entrada da sinagoga de Ra’anana por vândalos que a picharam.

cipante de parada gay, e a polícia parece ignorar ou alega não encontrar os culpados. É gente louca, mas mesmo gente louca tem a nos ensinar: devemos ser mais tolerantes e aceitar todas as cores.

Como acabar com a intolerância dos ultraortodoxos contra as correntes liberais?

O único caminho é o diálogo. Isso vale para a nossa vida como um todo. Conversar, aprender junto, conhecer-se olho no olho. Quando você conhece alguém de verdade, você não consegue odiá-lo. Você pode discordar, mas não odiar. Nós somos humanos, nós estamos vivos e todos estamos comprometidos com a continuidade judaica. A pichação foi feita por gente que não se importa com a continuidade judaica e acha que nós também não nos importamos. Não precisamos ir aos extremos, podemos encontrar um caminho no meio. Não é fácil. Escutar as dores um do outro é o único caminho. Aliás, é o meu caminho. Há outros, como pela esfera política, mas este não é um dom meu. Por que muitos israelenses enxergam o judaísmo com tanta indiferença?

Muita gente acredita que a religião vai tirar algo delas. Afinal, trata-se de algo muito distante da vida delas hoje. “Por que eu devo me casar com esta pessoa que veste preto e um dia pode querer se divorciar e me trazer sérios problemas?” Há uma percepção similar a um pós-traumático. Nós temos a obrigação de fazer uma transição para a vida moderna. Em paralelo, não podemos fugir da nossa identidade, ela é a resposta de tudo, ela faz parte de nós, é a nossa raiz. Devemos lutar para torná-la nossa. É um privilégio.

O que você conhece sobre o Judaísmo Reformista no Brasil e na América Latina?

O kibutz onde eu cresci foi fundado por imigrantes argentinos, nós éramos a única família não argentina, eu até aprendi algumas palavras em espanhol. A minha única janela para a América Latina foram os meus dois mentores no seminário rabínico. Ambos eram argentinos. Além disso, eu tinha grande admiração pelo rabino Marshall Meyer, americano que foi para a Argentina e estabeleceu lá o Seminário Rabínico Latino-Americano. Ele foi um grande ativista dos direitos humanos e tinha personalidade muito forte. Nos Estados Unidos, ele atuava na congregação onde eu fiz o meu estágio. Eu aprendi muito com eles. Infelizmente não conheço o Brasil ainda.

Que mensagem você deixaria aos judeus reformistas brasileiros, incluindo aqueles que pensam em fazer aliá um dia?

A imigração de judeus reformistas é uma das coisas mais difíceis que há. Eu vivi três anos nos Estados Unidos e sei bem. Israel é um país muito caloroso, nós cuidamos do nosso país. Apesar de toda a situação problemática, há muito que se fazer aqui e nós queremos que vocês venham para cá. Nós temos muito a aprender com vocês. Viver num país diferente e esforçar-se para manter a sua identidade. Aqui a vida pode ser muito boa, nós precisamos uns dos outros, é uma perspectiva diferente de ser judeu. Nossa congregação é extremamente receptiva, nós recebemos a todos muito bem. Queremos ser a comunidade da qual todo mundo quer fazer parte.

Marcus M. Gilban é jornalista, carioca, correspondente da agência de notícias Jewish Telegraphic Agency (JTA) há 20 anos. Fez aliá em 2016 e vive com a família em Ra’anana.

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