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Amir Taheri

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e Identidade

e Identidade

A SECESSÃO CURDA E OS MISTÉRIOS DA IDENTIDADE

Publicado originalmente pelo Gatestone Institute e reproduzido sob permissão.

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Um antigo ditado árabe afirma que sempre há algo de bom no que quer que aconteça. O referendo de secessão realizado na Região Autônoma Curda do Iraque não é exceção. Ele aumentou a tensão na região, despertou muitos demônios antigos e desviou a atenção de problemas mais urgentes. Ao mesmo tempo, também proporcionou uma oportunidade para examinar e debater algumas questões importantes de forma fria e clínica em vez do atual estilo inflamado do nosso canto do mundo.

Uma dessas questões diz respeito à relação entre etnia e nacionalidade.

Ela é importante porque o Oriente Médio, que é e sempre foi um mosaico de etnias, chegou ao estágio de ser composto por Estados-nações de modelo europeu através de um atalho histórico que ignorou o enigma étnico. Na Europa, local de nascimento do Estado-nação moderno, o conceito de cidadania proporcionou uma síntese entre etnicidade e nacionalidade. Todos os estados europeus são entidades multiétnicas; e, no entanto, poucos deles experimentam tensão étnica da mesma forma como a que afeta os Estados-nação emergentes da nossa região.

A suposição por parte dos secessionistas curdos iraquianos é que o Estado deve coincidir com a etnia. No entanto, se fosse esse o caso, quase todos os Estados do Oriente Médio teriam de ser divididos e subdivididos, para, segundo uma contagem, criar pelo menos 18 Estados a mais.

Os secessionistas curdos descartam essa contagem com o argumento de que a maioria dos grupos étnicos na região são muito pequenos para merecer o status de Estado.

Em outras palavras, o tamanho tornou-se uma justificativa para a secessão.

Eles também afirmam que os curdos representam o maior grupo étnico sem o seu próprio Estado. Isso, é claro, não é verdade. No subcontinente indiano, os dravidianos, com mais de 300 milhões de pessoas, não têm um Estado próprio. O mesmo é verdade para os punjabis, cerca de 100 milhões deles, que estão divididos entre a Índia e o Paquistão com referência a diferenças religiosas em subgrupos muçulmanos, hindus e sikhs.

Na África, os hausa e os ibo, que são 40 e 35 milhões, respectivamente, não têm Estados próprios. Na China, os uigures (22 milhões) e os manchus (12 milhões), para não mencionar os tibetanos, com 4 milhões, tiveram seus Estados aniquilados pela maioria han. Há mais pathans no Paquistão do que no Afeganistão, mais irlandeses no Reino Unido do que na República da Irlanda e mais húngaros fora da Hungria do que dentro dela.

O segundo argumento é que, uma vez que o Iraque é um “país artificial”, criado pelo tratado Sykes-Picot, não há razão para que não se saia dele. Para começar, apesar do discurso elegante ouvido em todas as partes, o chamado

Amir Taheri

Soldados curdos em Arbil, no Kurdistão, Iraque, em 2008.

“plano” de Sykes-Picot não tem nada que ver com a forma atual do Oriente Médio.

Sykes-Picot foi um tratado preliminar entre Grã-Bretanha, França, Rússia e Itália para formatar as possessões do Oriente Médio do Império Otomano após a Primeira Guerra Mundial. Contudo, o projeto nunca recebeu a ratificação final pelos quatro países envolvidos.

Antes do fim da guerra, o Império Tzarista entrou em colapso e o novo regime bolchevique publicou o texto do rascunho como parte da propaganda contra os “poderes imperialistas”.

O rascunho previa a cessão de grandes partes da Anatólia à Rússia, uma aliada da Grã-Bretanha, da França e da Itália. Mas quando os bolcheviques tomaram o poder, a Rússia tornou-se um inimigo; não havia mais motivo para dar nada a ela.

Quanto à Itália, ela atuou tão miseravelmente mal na guerra que a Grã-Bretanha e a França decidiram que ela não merecia nada além de algumas migalhas do bolo, sob a forma de uma presença na Cirenica e na Tripolitania. Com Sykes-Picot tornado inoperante, a Grã-Bretanha e a França fizeram novos acordos mais tarde refletidos em vários tratados, principalmente os de Lausanne e Montreux.

De qualquer forma, dizer que o Iraque é “artificial” não tem sentido algum porque todos os Estados são artificiais; nenhum deles caiu formatado dos céus. Levou aos Estados Unidos quase 200 anos para assumir sua forma atual, ao admitir o Havaí, anexado em 1898, como seu 50º Estado em 1959.

Há um século, haviam 32 Estados-nação no mundo; hoje existem 198, a maioria dos quais são mais novos e mais “artificiais” do que o Iraque.

Em alguns casos, as identidades étnicas são fabricadas ou exageradas em busca do poder político. Por exemplo, os castelhanos e os catalães compartilham a mesma fé cristã, falam variações da mesma língua latina e são dificilmente distinguidos uns dos outros pelos estrangeiros. No entanto, temos um movimento secessionista catalão na Espanha. A razão é que a Catalunha sempre foi uma base de apoio para os movimentos de esquerda na Península Ibérica, enquanto o resto da Espanha, especialmente a Castela e a Galícia, tem sido conservadora.

Ironicamente, quanto mais multiétnico é um Estado, mais bem-sucedido ele se provou. O Estado sumério era “puro” em termos étnicos, mas desapareceu sem deixar vestígios. O Império Romano, aberto a todas as etnias (um não romano podia, inclusive, chegar à posição de Imperador) durou mais de mil anos e pereceu quando tentou impor uniformidade através da sua nova religião oficial: o cristianismo.

Países onde a cidadania não se baseia em etnia ou religião oferecem liberdades indisponíveis em outros lugares. Numa pequena rua em Paris, a Rue des Petites Ecurries, lojas e cafés pertencentes a todos os tipos de seitas islâmicas, judeus e cristãos coexistem lado a lado sem que ninguém corte a garganta de ninguém (pelo menos ainda não); algo impensável em lugares “puros”, como o ISIS ou o “emirado” do Talibã.

Não há nada mais fácil de inventar do que “tradições” sobre as quais as identidades étnicas são construídas. Para fabricar uma nova identidade, Ataturk adotou o alfabeto latino e purgou a língua turca do vocabulário árabe e persa, usando ao invés palavras em francês.

Agora, no entanto, vemos o velho fantasma otomano voltando para se reafirmar.

Alguns curdos, tentaram um esquema semelhante ao incluir as vogais (Irab em árabe) no alfabeto árabe e, imitando Ataturk, purgando muitas palavras árabes e persas. O resultado é que sua nova fala parece mais curda, mas é difícil de entender especialmente quando se trata dos textos clássicos de sua literatura.

Há muita conversa sobre identidade nos dias de hoje. Mas a identidade humana é sujeita a voltas tangenciais e às reviravoltas da vida individual e coletiva.

Por exemplo, a identidade do presidente da Região

Todos os Estados Iraquiana do Curdistão, Masoud Barzaeuropeus são entidades multiétnicas; e, no ni (também conhecido como “Kak Masoud” – “Irmão Masoud” em curdo) não é exatamente a mesma que a identidade entanto, poucos deles do Peshmerga que dirige seu Mercedes experimentam tensão blindado. Kak Masoud nasceu em Mahaétnica da mesma bad, Irã, como cidadão iraniano, mas pasforma como a que sou os primeiros 12 anos de sua vida na União Soviética. Ele passou uma década afeta os Estados- no Iraque antes de ser forçado a sair pela -nação emergentes máquina terrorista baathista, encontranda nossa região. do refúgio primeiro no Irã e depois nos Estados Unidos. Isso não o torna menos iraquiano ou menos curdo, mesmo que os dois não sejam incompatíveis, mas complementares em seu caso. É fácil definir e reconhecer um cidadão iraquiano porque a cidadania é um status político-judicial que pode ser testado e verificado. No que diz respeito às identidades étnicas e/ou religiosas, no entanto, estamos frequentemente em terreno desconhecido. Duas coisas são certas a respeito de qualquer um de nós: nossa humanidade e nossa cidadania. Todo o resto está sujeito a especulações dispersas e complexas definições. Amir Taheri é ex-editor do principal jornal iraniano anterior à revolução de 1979, Kayhan, e um proeminente autor baseado na Europa. É chairman do Gatestone Europe. Traduzido do inglês por Raul Cesar Gottlieb.

Celebração curda de Newroz, em Istambul, Turquia.

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