
12 minute read
Ricardo Luiz Sichel
RESISTIR AO TOTALITARISMO?
O QUE SE PODE ESPERAR
Advertisement
Ricardo Luiz Sichel
Resistir é indagar qual o verdadeiro limite que se pode exigir de um ser humano. Até que ponto é crível supor que alguém vá colocar seus interesses pessoais em risco, em nome de valores tais como dignidade humana, liberdade de expressão e religião, de opção sexual ou de atuar politicamente. O ato de resistir pode ser isolado ou coletivo. Um movimento cívico organizado, a desobediência civil, evidencia o desconforto de todo um segmento da sociedade com o estado de coisas. Não se trata de perpetrar atos violentos, mas sim de demonstrar disposição a se opor a uma ação tida como injusta. Em janeiro de 1923, a França e a Bélgica ocuparam o vale do Ruhr, para garantir o pagamento de reparações de guerra. O governo alemão conclamou pela resistência passiva, o que gerou uma série de greves gerais, causando transtorno aos ocupantes que resultou na desocupação.
Com o término da Segunda Guerra Mundial, a humanidade não pôde mais ignorar o somatório de fatores macabros que permitiram a uma máquina assassina aniquilar 6 milhões de judeus, de 2 a 3 milhões de prisioneiros soviéticos (em um total de cerca de 20 milhões de mortos da URSS), 1,8 milhão a 2 milhões de poloneses, 220 mil a 1,5 milhão de ciganos, 220 a 250 mil deficientes físicos, 80 a 200 mil maçons, 2 a 5 mil Testemunhas de Jeová, 5 a 15 mil homossexuais, além de mais de 100.000 prisioneiros políticos, denominados de grupo com comportamento antissocial.
Apesar da proximidade dos fatos e da gravidade do ocorrido cabe ainda indagar o que esperar daqueles que não foram atingidos pela barbárie. Testemunhamos atos de destemor, quase suicidas, para salvar a vida alheia. Não se trata de salvar um grupo maior por interesses financeiros, como a ação organizada por Oscar Schindler, mas agir individualmente. Ao tentar salvar uma pessoa, haviam riscos a serem suportados; colocava-se em risco a vida, a família… será que colocar-se em risco para ajudar um semelhante é um comportamento esperado? Será que cada um de nós agiria desta maneira? Colocaríamos em risco nossa segurança na defesa de um perseguido? Devemos fazer um exame de nossas atitudes, quanto indivíduos, como também quanto comunidade.
Muitos agiram de forma silente, buscando permitir a um outro uma chance de vida. Nesse sentido, agiu a austríaca Grete Denner. Ela era muito amiga da judia Edith Hahn, também austríaca. Grete Denner foi à polícia e declarou ter perdido toda a sua documentação em um passeio de barco. Conseguiu um jogo novo de documentos e os entregou para Edith Hahn. Desta forma, Edith Hahn se transformou numa segunda Grete Denner. Como as duas não poderiam morar na mesma cidade, a segunda se muda para Munique, onde sobrevive à Guerra, casada com o oficial nazista Werner Vetter, para quem confessa ser judia. Este não a denuncia, muito ao contrário, a protege durante o período do conflito.
Outro exemplo é Dietrich Bohnhöffer, que estava nos Estados Unidos da América e retorna para a Alemanha, sendo preso em 1943 e fuzilado em abril de 1945, em Flossenburg. Bohnhöffer não suportou a segurança do exílio e preferiu lutar observando, antes de sair dos EUA1:
Cometi o erro de ter vindo para a América. Tenho que viver este período difícil da nossa história nacional juntamente com os cristãos da Alemanha. Não terei o direito de participar da reconstrução da vida cristã da Alemanha após a Guerra se não participar dos desafios juntamente com meu povo… Cristãos na Alemanha terão a terrível alternativa de ou desejar a derrota de sua nação para que os valores cristãos sobrevivam ou desejar a vitória de sua nação com a consequente destruição da civilização. Eu sei qual alternativa tenho que escolher, mas não posso fazer esta escolha em segurança [nos EUA].
Outros agem de forma mais discreta, usam o nome como meio de ajudar a terceiros. Nesse caso temos Albert
Göhring, irmão do ministro Hermann Göhring, que não se filia ao partido nazista e usava o sobrenome para conseguir vistos que libertassem pessoas.
Contudo, a maioria preferiu olhar para o outro lado, permanecer silenciosa e ignorar a sorte dos perseguidos. Isso sem falar daqueles que ajudaram ao sistema, alguns movidos por fanatismo ideológico, outros movidos pela vontade de obter vantagens e outros ainda por considerarem arriscado não compactuar com o sistema.
Evidentemente, o ato de resistir à injustiça não se limitou a esse período. A América Latina teve sua história marcada por períodos de exceção, nos quais os direitos humanos não foram respeitados. Será que resistir ao arbítrio e à violação de direitos humanos, se colocando em risco, é uma ação esperada?
Será que o silêncio é uma conduta inesperada, ou, ao contrário, a mais esperada? Um líder religioso pode, através de sua postura, transformar-se em um exemplo. O Rabino Henry Sobel, por exemplo, se recusou, em 1975, a enterrar o jornalista Vladimir Herzog como suicida. Depois se comprovou que ele havia sido assassinado nos porões da ditatura. Como noticiou a revista Veja2:
Em 31 de outubro de 1975, o arcebispo emérito de São Paulo, cardeal dom Paulo Evaristo Arns realizou um culto ecumênico em memória do jornalista Vladimir Herzog, na Praça da Sé, região central de São Paulo. O culto, que reuniu 8.000 pessoas, se transformou na maior manifestação pública de repúdio à ditadura militar, desde 1964. Ao lado do arcebispo estavam o rabino Henry Sobel e o reverendo evangélico Jayme Wright.
Herzog foi preso pelos militares no dia 25 de outubro daquele ano, nas instalações do DOI-Codi (órgão repressor criado durante a ditadura militar), onde foi torturado e morto. A versão contada pelos agentes, contudo, era de que ele tinha se suicidado, por enforcamento.

A disposição destes líderes religiosos evidenciou a tenacidade da sociedade civil e seu ato foi um marco divisor na luta pela democracia. Mas, mesmo assim, cabe indagar, podemos ser responsabilizados por nossa omissão? A resposta não me parece fácil, entretanto omissão não se contrapõe à luta suicida; ninguém espera que coloquemos a nossa vida em risco, buscando de forma irresponsável a defesa de um ideal, transformando-nos em novos Dom
Quixote, porém desta vez lutando contra inimigos reais e não imaginários. Inimigos com capacidade para nos destruir, sem que a nossa existência tenha feito a menor diferença.
Porém, não devemos ser indiferentes, dentro de nosso microuniverso, à injustiça, à luta do refugiado quando este busca um lugar para fugir da morte certa, a nos mostrar indignados quando se generaliza a responsabilidade de um grupo étnico, racial ou qualquer outro. A nossa indiferença ou mesmo tolerância a qualquer um destes comportamentos nos torna perigosamente omissos. Abrir espaços democráticos para quem manifestamente age contra a liberdade e a dignidade humana é permitir que o arbítrio se torne justificável. Não é concebível haver espaços democráticos para quem discrimina, seja por racismo, por homofobia, por sexismo, por totalitarismo (e, infelizmente, a ONU não é um exemplo para a humanidade). A democracia precisa ter suas defesas contra esta forma de ataques.
Em recente artigo, o presidente da Confederação de Judeus da Alemanha, Josef Schuster, se posicionou no sentido de que a liberdade de expressão deve ter salvaguardas em relação àqueles que claramente a menosprezam3 . A igualdade, segundo Simone Veil, se constitui no “reconhecimento público, efetivamente expresso em instituições e maneiras, do princípio de que um grau de atenção igual é devido às necessidades de todos os seres humanos”. Observa-se a atenção para o ser humano como um todo, pois, como ela mesmo acrescenta, a paciência atenta é uma forma de humildade.
O ponto central pode aparentar ser em como organizar a resistência. Trata-se de um falso, ou melhor, inadequado questionamento. O início deveria ser como evitar que surja uma situação que leve a resistência a se tornar necessária. Não existem fórmulas mágicas, mas certos pressupostos que não podem ou não deveriam ser abdicados, quais sejam: defesa da dignidade e dos direitos humanos, manutenção do Estado Democrático de Direito (onde ele já existe), Estado de bem-estar social, luta para a erradicação da miséria independentemente da questão da igualdade de resultados; como base para a sustentação de uma sociedade livre e digna. A América Latina teve Konrad Adenauer esclarece que o essua história marcada por períodos de tado de bem-estar social, baseado na liberdade de mercado (Sozial Marktwirtschaft), busca propiciar dignidade aos meexceção, nos quais os nos favorecidos e fomenta o seu acesdireitos humanos não so aos benefícios da economia de mercaforam respeitados. do4. Segundo Churchill, a democracia é Será que resistir ao uma má forma de governo, porém constitui a melhor existente. Rui Barbosa obarbítrio e à violação de serva que a luta pelos direitos do homem direitos humanos, se deve ser uma constante. Igualmente, mecolocando em risco, é rece destaque o pensamento de Hannah uma ação esperada? Arendt, para quem a essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos. Complementando, Nelson Mandela observava que negar direitos humanos às pessoas é questionar a própria humanidade delas. Os sistemas arbitrários não surgem como obra do acaso. Nos países democráticos, eles emergem de crises, da incapacidade da solução de conflitos através dos meios institucionais, onde “salvadores da pátria” iludem o eleitorado com soluções mágicas, quase sempre elegendo um grupo como o responsável pela mazela, prometendo o paraíso, quando, na verdade, conduz para a escuridão. Promete-se a todos os serviços, não se fala nos custos, mas faz-se crer que a falta de serviços adequados decorre de um “culpado” e não da ineficiência ou corrupção. Trata-se de uma visão contemplada pelo Judaísmo. Citando Samson Raphael Hirsch, a Revolução Francesa trouxe uma esperança: Como uma luz para o mundo, que anteriormente jamais havia sido vista e com um espírito de vitória único, o espírito humano encontra-se influenciado pelo senso de justiça. Na visão dele, o século XIX proporcionou a necessária liberdade para o desenvolvimento do Judaísmo. Mais recentemente, o Rabino Jonathan Sacks, observou5: Isto significa que liberdade pessoal e econômica não estão sujeitas a negociação política. São inalienáveis, direitos outorgados por Deus. Tem-se esta referência em John F. Kennedy, quando em seu discurso de posse, referindo-se às crenças revolucionárias pelas quais os fundadores da América lutaram, especialmente quando mencionaram que os direitos do homem não derivam da generosidade do Estado, mas sim da mão de Deus.
O fundamentalismo, explica Daniel Goldman, citando o Rabino Sacks, decorre de falhas de interpretação, da forma literal como esta é feita:6
Vivenciar a tradição importa na reinterpretação dos textos canônicos.
É isso que forma fundamentalismo – um texto sem interpretação –, um ato de violência contra a tradição.
Tem-se que buscar a base para a criação de uma sociedade baseada na liberdade, continuando no pensamento do Rabino Sacks7:
Para ser livre, você tem que deixar o ódio ... Você não pode criar uma sociedade livre baseada no ódio. Ressentimento, raiva, humilhação, sensação de vitimização e injustiça, o desejo de restaurar a honra com vingança para com seus antigos perseguidores – sentimentos comunicados em nosso tempo por um fluxo interminável de vídeos de decapitações e assassinatos em massa – são condições de uma profunda falta de liberdade. O que Moisés ensinou ao seu povo era o seguinte: você deve viver com o passado, mas não no passado. Aqueles que são mantidos em cativeiro pela raiva contra seus antigos perseguidores ainda são cativos. Aqueles que deixam seus inimigos definir sua identidade, ainda não alcançaram a liberdade.
Esta busca pela liberdade, pela inexistência de mágicas na sociedade, se evidencia em Charles Chaplin, em o Grande Ditador:
Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbirão e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao mesmo. E assim, enquanto morrerem homens, a liberdade nunca perecerá.
Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos!
Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade!
Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!
Evitar, através do voto bem informado, que “salvadores da pátria” tomem o poder, que apontem para certos grupos como responsáveis pelos problemas nacionais ou globais, garantir que a diversidade é a base para a convivência humana, estes são os melhores fatores para garantir uma profícua resistência contra os abusos cometidos pelo arbítrio. Trata-se de uma conduta individual, apoiada por algumas organizações civis comprometidas com a democracia, o que inclui as religiosas, na medida em que a omissão e a desinformação hoje poderá ser a tragédia de amanhã.
Ricardo Luiz Sichel é mestre e doutor em Direito da Propriedade Intelectual na Alemanha, professor associado da Unirio e conselheiro da ARI.
Notas
1. I have made the mistake in coming to America. I must live through this difficult period of our national history with the Christian people of Germany. I will have no right to participate in the reconstruction of Christian life in Germany after the war if I do not share the trials of this time with my people…Christians in Germany will face the terrible alternative of either willing the defeat of their nation in order that Christian civilization may survive, or willing the victory of their nation and thereby destroying civilization. I know which of these alternatives I must choose, but I cannot make this choice in security. (Dietrich Bonhoeffer Works,
Volume 16: Conspiracy and Imprisonment 1940-1945) 2. (http://veja.abril.com.br/brasil/homenagem-de-dom-paulo-a-herzog-foi-o-maior-ato-contra-a-ditadura/, acesso em 03/07/2017). 3. (http://www.zentralratdjuden.de/de/article/6095.missbrauch-der-versammlungsfreiheit-vorbeugen.html), acesso em 11/08/2017. 4. (https://www.konrad-adenauer.de/stichworte/wirtschaftspolitik/soziale-marktwirtschaft), acesso em 11/08/2017. 5. This means that personal and economic liberty are not open to political negotiation. They are inalienable, God-given rights. This is what lay behind John F.
Kennedy’s reference in his 1961 Presidential Inaugural, to the “revolutionary beliefs for which our forebears fought,” namely “the belief that the rights of man come not from the generosity of the state but from the hand of God.” (http://rabbisacks.org/wp-content/uploads/2015/05/CC-5775-Behar-The-Economics-of-
Liberty-Israel.pdf) 6. Living traditions constantly reinterpret their canonical texts. That is what makes fundamentalism—text without interpretation—an act of violence against tradition (http://www.thepublicdiscourse.com/2017/04/19147/). 7. To be free, you have to let go of hate. . . . You cannot create a free society based on hate. Resentment, rage, humiliation, a sense of victimhood and injustice, the desire to restore honour by inflicting injury on your former persecutors—sentiments communicated in our time by an endless stream of videos of beheadings and mass murders—are conditions of a profound lack of freedom. What Moses taught his people was this: you must live with the past, but not in the past. Those who are held captive by anger against their former persecutors are captive still. Those who let their enemies define who they are have not yet achieved liberty (http://www. thepublicdiscourse.com/2017/04/19147/).