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Rabino Sérgio R. Margulies
O MITO E O RITO
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Rabino Sérgio R. Margulies
“O mito é um nada que é tudo.” (fernando pessoa, 1888-1935)
“Se me for demonstrado que um rito da Igreja é apenas a transformação de um rito pagão anterior [...] representará para mim um acréscimo à cerimônia que procuram diminuir.” (joaquim nabuco, 1849-1910)
Mito é uma criação simbólica com o intuito de resolver os conflitos. O mito representa a solução dos problemas ao ser designado como elemento capaz de anular as causas dos conflitos que geram indesejáveis situações de desordem. Embora fruto da produção humana, ao mito é atribuída uma natureza que transcende o ser humano, podendo, assim, ter assegurada sua função de resolver os conflitos que o ser humano criou. O mito adquire, deste modo, força própria e torna-se inquestionável. Se fosse passível de questionamento, se enfraqueceria e teria a sua apregoada capacidade de resolução diminuída.
O rito religioso dramatiza tanto uma narrativa histórica (real ou imaginária) quanto um modelo de vida (como uma história a ser lapidada) idealizado. Assim, a experiência ritualística nos vincula a um passado que provê um sentido de pertinência e nos imbui por um senso de propósito no porvir do amanhã.
A princípio, o mito e o rito são harmônicos, um espelhando e reforçando o outro. A narrativa que sustenta o mito encontra respaldo na vivência roteirizada do rito. No entanto, este mecanismo de retroalimentação revela-se disfuncional se for incapaz de lidar com situações não previstas. Neste caso, a religiosidade como expressão genuína dos anseios espirituais ficaria à mercê da ordem estabelecida pelo mito/rito e perderia sua relevância.
A fim de manter-se constantemente relevante, demonstrando o equívoco da afirmação do historiador Arnold Toynbee (1889-1975) de que o judaísmo é fossilizado, a vitalidade judaica tem como uma de suas forças pulsantes a capacidade de confrontar seus mitos e ritos. Uma das maneiras propostas deste ímpeto transformador é descrita no Talmud: “vá e veja o que o povo está fazendo”. Esta convocação talmúdica alerta para que não haja dissonância entre a religiosidade e a religião, entre o rito religioso sustentado no mito e o próprio rito da vida.
As lentes judaicas
Uma proposta: vamos olhar o judaísmo pelas suas próprias lentes religiosas e não através das lentes que distorcem a mensagem religiosa enxergando alguns mitos e seus ritos correspondentes.
Mito da imutabilidade: afiança que o estabelecido pela religião é imutável. A tradição deve ser respeitada, em consequência os conceitos e hábitos estabelecidos urgem serem preservados em sua forma e conteúdo, sem alteração. Qualquer modificação corresponderia, portanto, a uma transgressão. Os princípios religiosos são inquestionáveis e uma vez que são originários da palavra divina – que se supõe ser perfeita – ninguém tem o direito de propor mudanças.
Através das próprias lentes do judaísmo percebemos que a crença na imutabilidade religiosa destoa do ritual judaico. Desde seus primórdios, a prática judaica tem favorecido as mudanças que se fazem necessárias para manter a mensagem espiritual relevante, valorizando o questionamento como método de transformação, conforme ensina o rabino Albo, do século 15: “Moshe [Moisés] recebeu oralmente certos princípios somente brevemente aludidos na Torá, através dos quais os sábios podem elaborar particularidades emergentes em cada geração.” A concepção judaica entende que a dinâmica da sociedade humana em constante mudança inviabiliza a prévia determinação de todas as particularidades e lança o desafio de, inspirados pelas referências éticas e pelos renovadores aprendizados, fazer face às questões que aparecem. Assim, o rabino Seymour Siegel (1927-1988) su-
A lente judaica não gere: “Nós temos a responsabilidade de é bifocal, isto é, não se vale de graus revisar a lei [religiosa] ao invés de permitir que caia em desuso.” Mito da uniformidade: acredita que distintos para o o judaísmo é singular, o ensinamento reperto – o cotidiano da ligioso tem um só padrão e que a voz inrua – e o longe – o vocadora da autoridade legítima é única. eventual no templo. Isto assegura a uniformidade judaica e a unidade do povo. Assim, a opinião dissonante é herética e deve ser descartada. Para que isto aconteça um sistema de controle tem que ser exercido. As lentes que o judaísmo fornece nos fazem perceber que esta concepção de engessamento à pluralidade difere da prática do rito judaico. O judaísmo convida a diversidade e se abre para a multiplicidade de opiniões, numa efetiva troca de ideias em que a divergência não anula o aprendizado mútuo. Por exemplo, diante da diferença entre os posicionamentos dos sábios do século 1, Hillel e Shamai, o Talmud afirma: “Quem quiser conduzir-se de acordo com a Casa de Shamai, que assim faça, e quem de acordo com a Casa de Hillel, que assim faça”. O convívio plural é o foco das lentes religiosas que ampliam o olhar para que não prevaleça a estreiteza que invalida a visão distinta. Esta característica levou o Talmud a registrar as mais variadas opiniões sobre os assuntos em discussão e tem acompanhado os intérpretes do texto bíblico por séculos a fio, como demonstram os comentários dos sábios da Idade Média Maimônides, Nachmânides, Ibn Ezra, entre outros. No exame oftalmológico, diante da aferição do grau ocular, ao sermos indagados pelo examinador qual lente nos permite enxergar melhor, respondemos uma opção. No exame da visão espiritual também podemos ter uma opção. Tal como a lente ocular que não optamos será adequada para alguém outro, a visão espiritual que não escolhemos poderá ser adotada por alguém outro. De alguém outro que está ao nosso lado, na mesma comunidade, até na mesma congregação. É a enriquecedora abrangência do convívio. Mito da exclusividade: crê ser vedada à mulher a participação na vida religiosa da sinagoga, descarta o não judeu (mesmo que de família judaica) do ambiente congregacional e desconsidera o filho/a de um pai judeu, mas não de mãe judia como potencial membro da comunida-
de, mesmo que imbuído da identidade judaica por meio de um processo de educação.
Estes são alguns mitos que intencionam prover um ambiente comunitário exclusivo. No entanto, as lentes judaicas focam na inclusão. De acordo com o código de leis da Mishná (século 2), à mulher é permitido, sem ser obrigada, cumprir com os mandamentos positivos dependentes do tempo, e, segundo o código das leis do Shulchan Aruch (século 15), pode participar da leitura e da recitação das bênçãos da Torá.
Ainda assim, estas restrições carregam a justificativa de que a mulher tem outros papéis na vida judaica. Neste âmbito, é utilizada a determinação da condição judaica em função do ventre materno. Porém, nem sempre foi este o critério de atribuição do status judaico. No período bíblico, por exemplo, a descendência judaica era fixada pela linhagem paterna.
Seja como for, o perigo é considerarmos a identidade judaica consequência de algum aspecto genético, pois essencial na determinação da identidade judaica (mesmo que precise ser oficializada) é a orientação familiar dentro de um marco comunitário. Disto decorre o reconhecimento do empenho do pai/mãe não judeu/ia, que, com seu cônjuge judeu/ia, opta em educar seu filho/a como judeu/ia.
Na lente da história judaica lembramos que muitos não hebreus estavam com o Povo de Israel na saída da escravidão do Egito Antigo e os acompanharam na jornada que culminou com o recebimento da Torá e a entrada na Terra Prometida. Em nossa lente contemporânea enxergamos os que nos acompanham se inserindo na comunidade no intuito de prover orientação aos seus filhos/as que constituem parte da nova geração comunitária.
Mito do sagrado: entende que os aspectos da religião são considerados sagrados. A palavra sagrado em hebraico, kedushá, significa ‘estar à parte’. Neste sentido, a vida religiosa trafega numa avenida distinta daquela que lida com os assuntos que pertencem ao mundano cotidiano. Assim, o templo religioso é envolto de uma redoma que o isola da conturbada sociedade. É lá que o tempo pode ser vivenciado de modo transcendente em oposição ao desenfreado tempo do cotidiano.
Buscar no templo religioso um abrigo para a reflexão, para a apuração dos anseios espirituais e morais, para reconectar-se com elos rompidos, para curar as feridas da alma e resgatar a esperança é um movimento de aproximação entre o mundano e o sagrado, entre o cotidiano e o ocasional, entre o ideal e o real. Esta aproximação evita a existência de um hiato entre o professado no templo e o vivenciado fora dele. Evita, sobretudo, que o rito
Kalinda7/istockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 13
do templo seja desvinculado da conduta fora dele. A lente judaica não é bifocal, isto é, não se vale de graus distintos para o perto – o cotidiano da rua – e o longe – o eventual no templo. Os profetas bíblicos já alertam para esta questão: “Não mais posso tolerar vossas convocações [...] pois vindes envolvidos em iniquidade”. (Ieshaiahu/Isaías).
Nosso rito religioso não é uma blindagem para o dia a dia e tampouco tem como objetivo tornar opaco o que deve ser transparente. Do templo enxergamos a realidade de modo mais translúcido. Esta é sua sacralidade.
A criatura mítica
O folclore judaico criou uma figura mítica denominada Golem. Feito de lama e barro, adquiria contornos humanos a fim de defender os judeus de seus inimigos. A transformação em humano se dava através da colocação da palavra hebraica emet (verdade) em sua testa.
O Golem voltava à sua condição inicial de lama e barro quando seu criador retirava a letra alef da palavra emet,

O rito judaico é, de formando uma nova palavra: met (morum lado, duplicador dos mitos e, de outro to). Segundo alguns relatos, o Golem ganhou vida própria tornando-se uma fonte de ameaça ao que inicialmente se prolado, contestador punha defender. Esta passagem do foldestes mitos. clore lembra que os mitos são construídos para que conflitos sejam resolvidos e nos adverte para o perigo do descaso que permite o mito ganhar supremacia. Quando isto acontece, o efeito de sua atuação será contrário ao intencionado. O rito judaico é, de um lado, duplicador dos mitos e, de outro lado, contestador destes mitos. A força duplicadora corresponde à criação dos mitos com o intuito de direcionar a resolução dos problemas. O impulso contestador evita nos tornarmos reféns destes mitos e impede uma visão distorcida dos propósitos religiosos.
Bibliografia
Zemer, Moshe. Evolving Halakhah: A Progressive Approach to Traditional Jewish Law, Jewish Lights Publishing, EUA, 1999. Sérgio Roberto Margulies é rabino e serve na ARI – Rio de Janeiro.

