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João K. Miragaya

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Resenhas de Livros

Resenhas de Livros

POR TRÁS DA DECLARAÇÃO BALFOUR

Há 100 anos, era publicado o primeiro documento de apoio de uma grande potência ao movimento sionista e sua luta para construir um Estado judeu na Palestina. A Declaração Balfour, divulgada em 1917, deu outro patamar ao Sionismo, dando-lhe legitimidade política. Um grande esforço político resultou na publicação do apoio britânico às aspirações sionistas, favorecido por um contexto de guerra e também pelo esforço de campo realizado pelos chalutzim das duas primeiras aliot. Alguns personagens, naturalmente, tiveram papel de destaque nessa luta político-social, como o químico e líder sionista Chaim Weizmann.

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A teoria mais conhecida para a aceitação dos britânicos em produzir uma declaração simpática às aspirações sionistas é a de que Weizmann teria “trocado” uma descoberta científica sua por tal declaração. A descoberta teria sido a produção da acetona por meio da fermentação bacteriana em grande escala, que poderia transformar-se em bombas que não expeliam fumaça, próprias para o uso em batalhas navais. Weizmann teria pedido para, ao invés de ser condecorado, que um favor fosse feito ao povo judeu. Tal narrativa é um dos mitos mais conhecidos do Sionismo, pois justifica a sagacidade e altruísmo de um dos seus líderes frente a um ambiente controverso, quan-

João K. Miragaya

do nenhuma nação de fato estaria disposta a comprometer-se apoiando uma corrente que não era unânime nem entre seu próprio povo.

Não há como desprezar o importante papel de Weizmann perante os britânicos, e a influência de sua reputação política. No entanto, a publicação da Declaração Balfour é um acontecimento bastante significativo para que o associemos somente a uma causa. Há outros diversos fatores que culminaram na publicação deste importante apoio formal, alguns dos quais relativamente esquecidos ou ignorados pelo público, e é deles que trataremos neste artigo.

O contexto

No primeiro dia após iniciar-se, a Primeira Guerra Mundial já tinha um derrotado: o Império Turco-Otomano. Unificado desde os últimos dias da Idade Média, o extenso e subdesenvolvido império era uma aberração no contexto do imperialismo contemporâneo. A administração dos territórios obedecia a uma lógica pré-capitalista, os mecanismos de controle não eram eficientes, a corrupção endêmica e o interesse europeu nos seus protetorados era questão de tempo, sobretudo por conta de suas reservas de petróleo. Controlando boa parte do mundo árabe, os tur-

Chaim Weizmann, à esquerda, e Arthur James Balfour, à direita.

cos buscaram aliar-se rapidamente a um dos lados na guerra com o objetivo de sofrer menos danos após o fim do confronto.

A relação do movimento sionista com o Império Turco-Otomano, até o início da guerra, era razoável. A imigração era limitada e os judeus eram cidadãos de segunda classe, mas não havia uma perseguição institucional. Era permitida aos judeus a compra de terras em determinadas circunstâncias, e o desenvolvimento do Ishuv (vida judaica na Palestina pré1948) florescia.

A Primeira Guerra Mundial alterou essa relação. Durante o confronto, o movimento sionista não cessou seu diálogo com os países que compunham a Tríplice Entente (Reino Unido, França, Rússia [até 1917] e outros), o que gerou acusações de traição por parte dos turcos. Por outro lado, o executivo sionista decidiu em 1914, em uma conferência na cidade de Copenhague, não adotar nenhum lado, mantendo igualmente sua boa relação com países que compunham a Tríplice Aliança e com a Alemanha, onde se situava a sede do movimento sionista, naquele momento. Chaim Weizmann foi A neutralidade do movimento foi o grande articulador da declaração. Não crucial para a continuidade da vida judaica no Ishuv. Quando Djemal Pashá, comandante turco na Palestina, ameaçou somente pelo capital expulsar todos os judeus de origem russimbólico desenvolvido sa do protetorado (ou seja, quase todos a partir de sua os judeus), foram os alemães que interdescoberta científica cederam por sua permanência na região. Se bem que o governo alemão não desecomo também pelo jasse comprometer-se com a causa sioambiente gerado entre nista, ele não era de forma alguma adele e as lideranças verso ao Sionismo. da Inglaterra. As grandes potências, então, brigavam ao mesmo tempo pelo apoio judaico-sionista, mas sem a intenção de comprometer-se por receio à reação árabe. Até 1917, parte das motivações políticas de Alemanha e Reino Unido por conquistar o apoio sionista se dava em relação à entrada dos EUA na guerra: o ascendente poder político-econômico da comunidade judaica norte-americana poderia decidir para que lado iria o país, potência mundial emergente. A guerra, que havia pego o movimento sionista de surpresa, terminou por ter consequências políticas positivas ao Sionismo.

Os personagens

A publicação da Declaração Balfour, como qualquer fato histórico, foi resultado de uma série de fatores inseridos em um contexto que possibilitou seu acontecimento. A disputa política que culminou na grande guerra gerou o contexto no qual alguns personagens puderam exercer papel de destaque. Alguns desses nomes são conhecidos pelo público, outros, nem tanto.

Chaim Weizmann, sem sombra de dúvidas, foi o grande articulador da declaração. Não somente pelo capital simbólico desenvolvido a partir de sua descoberta científica como também pelo ambiente gerado entre ele e as lideranças do país. Weizmann sentia-se em casa no Reino Unido, e considerava o país amigo dos judeus. E compreendia o espectro político muito bem, outro capital simbólico importante. Weizmann, por exemplo, tinha conhecimento da simpatia de determinadas doutrinas cristãs protestantes ao Sionismo, e como estas doutrinas exerciam influência na liderança britânica. Tal doutrina tinha adeptos anteriores até mesmo a Theodor Herzl, como William Hechler e o suíço Henry Dunant, fundador da Cruz Vermelha, e um dos 10 participantes não judeus no Primeiro Congresso Sionista na Basileia, em 1897.

Essa visão de redenção bíblica através da realização nacional judaica impulsionou Weizmann a, já em 1915, iniciar seu lobby com partidários dessa concepção religiosa. C. P. Scott, editor do Manchester Guardian, foi um deles, tal qual o importante ministro da Guerra, Lloyd George (Laqueur: 1988, 150), que transformar-se-ia em primeiro-ministro em 1916. Evidentemente, Weizmann (com a ajuda de Herbert Samuel, Secretário de Estado para Assuntos Internos do Império) não dialogava somente em termos religiosos com os líderes britânicos: a George, o Sionismo foi apresentado como geograficamente estratégico ao império britânico frente ao novo mundo pós-guerra (Laqueur: 1988, 151).

Se bem que o apelo religioso funcionasse com homens como o general Jan Smuts, com Lloyd George e com Arthur James Balfour, não tinha o mesmo efeito com outros importantes nomes do executivo britânico, como o Ministro das Armas Edwin Samuel Montagu. Montagu, um judeu, se opunha ao Sionismo por crer que o nacionalismo judaico reforçava o mito antissemita do judeu apátrida, e contradizia sua identificação com o nacionalismo britânico. O ministro foi o maior opositor ao Sionismo no governo britânico durante a Primeira Guerra Mundial. Outro entrave importante para a Declaração Balfour foi protagonizado pelo alto comissionado britânico no Egito, sir McMahon, que tinha outros planos para o Oriente Médio: o representante britânico havia trocado correspondências entre 1915 e 1916 com o Husayn Ibn Ali, xarife (título de nobreza, supostamente de um descendente de Maomé) de Meca. Nestas cartas, McMahon demonstrava apoio à criação de um grande Estado árabe nas regiões pertencentes ao Império Turco-Otomano. Como consequência desse acordo, eclodiu a Grande Revolta Árabe em 1916 contra o domínio turco-otomano, comandada justamente por Husayn Ibn Ali. A revolta durou até 1918, facilitando a conquista da região por britânicos e franceses e desmembrando o Império Turco-Otomano. McMahon não se opôs ao Sionismo como Montagu, e inclusive admitia ver certa compatibilidade entre suas promessas aos árabes e a Declaração Balfour. Enquanto no Reino Unido o trabalho rendia frutos, o movimento sionista fazia seu lobby em países como Alemanha e EUA a fim de fortalecer a pressão e fortalecer sua proposta política. A entrada dos EUA na guerra dependia do apoio popular, e a comunidade judaica norte-americana tornava-se cada vez mais significativa. Inicialmente não tão afiliada às ideias sionistas, parte importante da comunidade judaica norte-americana passou a apoiar as aspirações sionistas, sobretudo após um brilhante trabalho político executado pelo advogado Louis Brandeis. Com a entrada dos EUA na guerra,

Vinte anos após o Brandeis conseguiu unir setores da co-

Primeiro Congresso munidade judaica envolvidos na luta pe-

Sionista, o Sionismo los direitos civis dos judeus europeus, isolando-os dos grupos não sionistas Bund político, inventado e American Jewish Commitee. Brandeis por Theodor Herzl, inseriu na pauta a luta pelos direitos cichegava ao seu maior vis não só dos judeus da Europa Orienêxito: conseguia o tal, mas também dos que viviam na Pareconhecimento da lestina. Eleito presidente do Comitê Executivo Provisional para Assuntos Sionismaior potência europeia tas Gerais, Brandeis teve duas audiências às suas aspirações. públicas com Arthur Balfour, que, com a

troca de governo britânico, havia assumido o posto de secretário do Foreign Office. Na primeira, em abril de 1917, fez saber a posição da comunidade judaica norte-americana em relação ao Sionismo. Na segunda, garantiu que conseguiria o apoio do presidente norte-americano Woodrow Wilson ao que seria a Declaração Balfour. O advogado também trabalhou em conjunto com segmentos cristãos norte-americanos favoráveis ao Sionismo, sendo o principal deles o reverendo William Blackstone.

Nachum Sokolow (secretário-geral da Organização Sionista Mundial) foi encarregado de conseguir apoio de políticos influentes na França e na Itália. Na Alemanha, o trabalho político era constante, dificultado, porém, pela barreira imposta pelos alemães em negociar qualquer acordo antes do fim da guerra.

A Declaração

Em 1917, o lobby político sionista parecia caminhar no Reino Unido, e a declaração parecia ser questão de tempo. A divulgação do Tratado de Sykes-Picot, no entanto, quase pôs tudo a perder. Percebendo a iminente ruína do Império Turco-Otomano, britânicos, franceses, italianos e russos reuniram-se para dividir os territórios conquistados em colônias, protetorados e áreas de influência. Estes acordos secretos batiam de frente tanto com a Declaração Balfour quanto com as Cartas McMahon-Husayn, pois, ao mesmo tempo em que prometiam e demonstravam aprovação a projetos de emancipação nacional, planejavam manter colônias e protetorados nessas mesmas regiões.

Com o advento da Revolução Russa, Vladimir I. Lenin divulgou os termos do tratado, deixando britânicos e

O documento, fruto de franceses em situação embaraçosa. Por esuma intensa atividade política, jamais teria sas adversidades, os líderes das potências europeias chegaram a acordos com oligarquias árabes, garantindo a independência sido publicado sem de determinadas regiões (como o Iraque), que duas ondas de nas quais reinariam monarquias simpátiimigração judaica cas às demandas desses países. Outras repovoassem a Palestina giões passariam a ser protetorados e colônias britânicas e francesas. As monarquias otomana entre 1881 árabes criadas pelo desmembramento do e 1917, as duas Império Otomano resistiram até a Guerra primeiras aliot. Fria, mas não puderam conter o avanço do movimento nacionalista árabe. O coronel Mark Sykes, um dos idealizadores do acordo, passou a apoiar o Sionismo posteriormente, instruindo a liderança sionista a negociar com o alto executivo britânico. Incluiu-se a família Rothschild, de importantes banqueiros judeus nas negociações, e de fato foi ao Barão Lionel Walter Rothschild que a declaração foi endereçada. Reunião após reunião, de uma simples declaração de apoio o documento ganhava ares de declaração formal de simpatia britânica às aspirações do povo judeu em implementar um lar nacional judaico na Palestina. Até que no dia dois de novembro de 1917, nasceu o primeiro reconhecimento internacional ao Sionismo. “Caro Lord Rothschild, “Tenho o grande prazer de endereçar a V. Sa., em nome do governo de Sua Majestade, a seguinte declaração de simpatia quanto às aspirações sionistas, declaração submetida ao gabinete e por ele aprovada: “O governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento, na Palestina, de um Lar Nacional para o Povo Judeu, e empregará todos os seus esforços no sentido de facilitar a realização desse objetivo, entendendo-se claramente que nada será feito que possa atentar contra os direitos civis e re-

ligiosos das coletividades não judaicas existentes na Palestina, nem contra os direitos e o estatuto político de que gozam os judeus em qualquer outro país.

“Desde já, declaro-me extremamente grato a V. Sa. pela gentileza de encaminhar esta declaração ao conhecimento da Federação Sionista.

“Arthur James Balfour.”

A Declaração Balfour tornou-se pública na imprensa no dia 18 de novembro, competindo com notícias sobre a Revolução Bolchevique. Os meses que se seguiram foram de intenso trabalho do movimento sionista a fim de convencer outras nações a apoiar o documento britânico. Tímidas declarações de apoio italiano e francês vieram dois meses mais tarde. Somente dez meses depois, os EUA declararam um débil apoio ao Sionismo, por meio do parlamentar democrata e rabino reformista Stephen Wise. O novo governo soviético associou a Declaração Balfour a uma intriga imperialista antissoviética, portanto, sem apoiá-la. A Alemanha não se manifestou.

Trinta e cinco anos após a Primeira Aliá (primeira onda de imigração judaico-sionista à Terra de Israel), o Sionismo surtia efeito na prática. Vinte anos após o Primeiro Congresso Sionista, o Sionismo político, inventado por Theodor Herzl, chegava ao seu maior êxito: conseguia o reconhecimento da maior potência europeia às suas aspirações. Ao mesmo tempo, a Declaração Balfour esbarrava no crescente nacionalismo árabe e no imperialismo mundial, ambos com planos conflitantes aos do Sionismo.

A Declaração Balfour deu ao movimento sionista as garantias políticas exigidas; por outro lado, marcou a mudança de uma era na região. O documento, fruto de uma intensa atividade política, jamais teria sido publicado sem que duas ondas de imigração judaica povoassem a Palestina otomana entre 1881 e 1917, as duas primeiras aliot. O esforço dos chalutzim (pioneiros) ao deixarem suas casas em direção à Eretz Israel, desértica e pantanosa, abandonada e subdesenvolvida, a fim de estabelecerem as bases para o surgimento do Estado judeu, não é de forma alguma menos significativo que toda a atividade de barganha política que culminou no reconhecimento de parte dos países europeus ao direito dos judeus de estabelecer um lar nacional na Palestina.

A legitimidade do Sionismo não é apenas fruto de acordos com grandes potências, ou de uma sensibilização mundial perante o ocorrido após a barbárie produzida pelos nazistas. Ela é, igualmente, oriunda de um trabalho árduo e intenso, levado a cabo por gerações de idealistas, dispostos a construir e serem construídos pela ideia sionista.

Bibliografia

Jonathan Schneer, The Balfour Declaration: the origins of the Arab-Israeli conflict. Random House, 2010. Walter Laqueur. Historia del Sionismo. La Semana Publicaciones Ltda, 1988, Jerusalén. http://www.morasha.com.br/historia-de-israel/declaracao-balfour-ocentenario-de-um-marco.html https://es.wikipedia.org/wiki/Declaraci%C3%B3n_Balfourhttp://philosemitism.blogspot.com.ar/2010/11/henry-dunant-first-christianzionist.html https://www.fozmuseum.com/exhibits/dreamers/dunant/http://www. jpost.com/Features/In-Thespotlight/The-many-faces-of-Christian-

Zionism

João Koatz Miragaya é historiador e sheliach para a Argentina da tnuat noar Hechalutz Lamerchav.

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