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Paulo Geiger

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Seção Livros

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OS ERROS DOS OUTROS

Paulo Geiger

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Traduzi recentemente um livro, a ser publicado em breve (quando for, direi qual é), que trata da questão do reconhecimento do erro como alavanca fundamental para sua correção, e com isso para o aprimoramento, a melhora de tudo que se tem como fator determinante do progresso, da segurança, do bem-estar do homem. Contudo, analisa o autor, na maior parte de setores vitais não só para o indivíduo, como para toda sociedade, e, por extensão, a própria humanidade, a relutância em reconhecer o erro para poder corrigi-lo e começar o processo que leva a esse progresso e bem-estar, e a essa segurança, leva na verdade a uma de denegação do erro, em processos aos quais a ‘psicopatologia’ do erro dá os nomes de ‘dissonância cognitiva’, ‘falácia narrativa’ e ‘imputação/atribuição do erro a terceiros’.

A cócega no raciocínio deste quadrimestre está no exercício de aplicar esses conceitos à maneira com que se está conduzindo o já centenário conflito entre os judeus – como povo e nação –, e os árabes da antiga Palestina – como um dos grupos do povo árabe que assumiu identidade nacional –, em relação ao direito, e ao fato político acarretado por esse direito, de se estabelecerem como estados-nações em territórios ainda não delimitados oficialmente nos respectivos discursos. [Os palestinos, ao se recusarem a reconhecer, mesmo num acordo de paz, o já estabelecido Israel como estado-nação do povo judeu, estão implicitamente não reconhecendo as fronteiras desse possível acordo – e a existência mesma de um estado-nação do povo judeu – como definitivas, os israelenses, ao se considerarem no direito de estabelecer colônias além das linhas de 4 de junho de 1967, não reconhecendo que essas terras estão dentro das futuras fronteiras de um estado palestino.]

O objetivo aqui não é, mais uma vez, entrar na discussão desses direitos, de seus fundamentos históricos, geográficos, sociais e políticos, mas de compreender como erros são denegados e não reconhecidos, redundando em dissonância cognitiva, falácia narrativa e imputação do erro somente aos outros, o que impede uma solução que devolva paz e segurança a todos, na região e fora dela.

Dissonância cognitiva é o processo em que o fato do erro cometido, ou de uma realidade tal como é, são percebidos distorcidamente (às vezes até mesmo de boa-fé, num processo de autodefesa automático), em benefício subconsciente da segurança, da autoestima, do interesse imediato de quem o comete. ‘Honestamente’ o agente da situação não consegue perceber essa distorção, sua cognição dissonante da realidade é a única realidade que conhece e considera. Cometer erro e insistir no erro com a sincera consciência de que está certo, enxergar uma situação da maneira que o favorece e o salva de responsabilidades, são os ingredientes da dissonância cognitiva. Como a de quem, em Israel ou fora dele, só consegue enxergar direitos nacionais históricos de lado ‘de cá’ da fronteira, que não percebe que o desenvolvimento histórico recente fez criar, se bem que antes realmente não houvesse, um ‘povo palestino’ a partir dos árabes que viviam na Palestina durante séculos, sem serem um povo. Como a dos palestinos e de grande parte do povo árabe e dos muçulmanos não árabes que não enxergam o direito histórico do povo judeu à única terra que é sua raiz territorial nacional, da qual nunca abdicaram mesmo em dois mil anos de exílio, e cujo direito a ela foi homologado no século 19 pelo reconhecimento dos direitos de todos os povos à autodeterminação, que não percebe que sionismo é a ação efetiva resultante desse reconhecimento e não uma política colonialista, imperialista e chauvinista.

Dessa dissonância cognitiva advém uma falácia narrativa, uma distorção da ordem causa-efeito, uma interpretação equivocada (sincera ou proposital), que promove a rejeição de Israel, o movimento BDS, as falas de Caetano Veloso, as condenações hipócritas e unilaterais a Israel, as atitudes baseadas em duplos critérios, a demonização, a ameaça existencial (do Irã, do Hizbolá, do Hamas, para só citar os mais notórios); mas, também, em parte da sociedade israelense e de seu governo, e parte do povo judeu, uma narrativa que minimiza os direitos dos palestinos e não discrimina entre os que só buscam uma solução nacional para sua existência e os que só a consideram uma fase no processo de eliminar o estado judeu. A falácia narrativa domina a mídia internacional, governos, é brandida como argumento pelos antissemitas, as pseudoesquerdas, islamistas radicais (e nem tão radicais), e boa parte das lideranças palestinas. E é absorvida pelos incautos, desavisados e mal-informados.

A imputação de erros aos outros, ou a circunstâncias, é a ‘pacificação’ interna de uma situação gerada por erros de parte a parte. Ela restringe, ao impedir o reconhecimento das falhas que geraram o problema, a possibilidade de uma reconciliação com a verdade que leve a uma solução real. O livro mencionado aponta dois exemplos extremos de como se tratam os erros cometidos: o da indústria do transporte aéreo, que a cada acidente vai sempre buscar nas caixas-pretas as verdadeiras causas, sejam humanas ou técnicas, para dar-lhes a solução apropriada e com isso aumentar a segurança de voo a partir da falha; e o da política e dos políticos, que em nome de seu próprio prestígio e continuidade preferem denegar o erro (dissonância cognitiva, falácia narrativa, imputação de erros aos outros) e continuar nele do que reconstruir um caminho a partir de reconhecê-lo.

Quando um governo de Israel e as lideranças palestinas, árabes e islâmicas estiveram dispostas a, em primeiro lugar, sinceramente uma solução de coexistência em paz e segurança, e para isso abrirem suas caixas-pretas para detetar e corrigir os erros que cometeram em relação a esse objetivo, teremos, sim, uma esperança de paz verdadeira e definitiva.

É claro que nessa análise não cabem as intenções e premeditações. Se alguém derrubar um avião, pouco lhe importa a caixa-preta e as lições que ela pode dar. Como não importa estar ou não errados – ao visarem à destruição de Isael – aos islamistas radicais e aos chauvinistas palestinos ou árabes em geral; e também aos judeus radicais que só veem solução numa grande Israel sem palestinos. E aos antissemitas, e aos anti-Israel de esquerda que perderam suas outras causas. Mas aos desavisados, aos influenciáveis pelas falácias narrativas, aos Caetanos Velosos da vida, montar uma caixa-preta interna seria um bom começo para um mundo melhor para todos.

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