12 minute read

Adam T. Strater

Next Article
Sandra Lilienthal

Sandra Lilienthal

A LITERATURA APOCALÍPTICA JUDAICA

A literatura apocalíptica judaica foi concebida por judeus marginalizados e oprimidos que ansiavam pela intervenção divina, e estes textos usam visões imaginativas para descrever tanto a jornada divina em direção à utopia como a própria utopia divina.

Advertisement

As imagens deste artigo são reproduções das gravuras de Gustave Doré.

Adam T. Strater

A“Apocalíptica” é uma intimidante seção da literatura Bíblica, contudo os esclarecimentos obtidos pela pesquisa destes textos misteriosos nos ajudam a entender a realidade experimentada pelos judeus que viveram sob jugo estrangeiro durante a Antiguidade. Estes textos mostram a criatividade dos escritores judeus no período final do Segundo Templo, como eles imaginaram um futuro utópico no qual os judeus seriam vingados e restaurariam a glória que eles viveram antes que a Babilônia destruísse o reino de Judá e o seu templo em 586/587 a.e.c. (antes da era comum).

A literatura apocalíptica judaica foi concebida por judeus marginalizados e oprimidos que ansiavam pela intervenção divina, e estes textos usam visões imaginativas para descrever tanto a jornada divina em direção à utopia como a própria utopia divina. Estes textos criativos proveram conforto à comunidade piedosa durante dois dos mais desafiadores e violentos períodos da história judaica; a perseguição sistemática aos judeus sob Antíoco IV Epifânio que começou em 176 a.e.c. e a revolta judaica de 66 a 74 e.c. (era comum), que resultou na destruição de Jerusalém e do Segundo Templo em 70 e.c. Os textos gozaram de uma popularidade relativa durante estes dois períodos, porém a apocalíptica rapidamente desvaneceu do discurso judaico com o surgimento do judaísmo rabínico, sendo adotada mais tarde pelo cristianismo, no segundo século da era comum.

A literatura apocalíptica surge consistentemente na tradição judaica quando das situações de stress. A primeira onda de textos apocalípticos aparece no

período depois que os babilônicos destruíram Jerusalém em 586 ou 587 a.e.c. e levaram muitos habitantes de Judá ao exílio na Babilônia. Foi então que, pela primeira vez na história, os habitantes de Judá viveram sob dominação estrangeira. Para muitos a destruição da cidade significou que as profecias de Jeremias estavam corretas: “Fui Eu quem fiz a terra, e os homens e os animais que estão na terra, através do Meu grande poder e por Meu braço estendido; e Eu a dou a quem Eu julgo apropriado. Portanto, Eu entrego estas terras ao Meu servo, o Rei Nabucodonosor da Babilônia.” (Jeremias 27:5-6).

Inicialmente os judeus se submeteram aos novos governantes buscando viver pacificamente, atemorizados pelas mortes e destruição que testemunharam nas mãos dos babilônicos. Esta foi uma estratégia que se provou funcionar na maior parte do tempo, pois os judeus tipicamente prosperaram sob os impérios estrangeiros que controlaram Judá. Mas quando o Império Babilônico foi sucedido pelo Império Persa em 539 a.e.c. e depois pelo Império Grego em 333 a.e.c., alguns judeus começaram a especular sobre o retorno de um Estado autônomo que eles tiveram antes do exílio babilônico, e muitos ficaram preocupados com a quantidade de influência cultural das potências estrangeiras sobre a comunidade judaica.

A cultura grega, conhecida como Helenismo, foi particularmente insinuante e causou uma divisão na comunidade judaica, entre o tradicional, judeu piedoso que queria manter seus costumes e a população helenizada, que incluía a aristocracia judaica, que apoiava o regime grego ocupante. A situação se agravou durante o reino do rei grego do Império Selêucida, Antíoco IV Epifânio, quando, como a aprovação dos judeus helenizados, o rei tornou ilegais rituais e costumes judaicos, tais como a circuncisão, e dessacralizou o Templo dedicando-o a Zeus em 167 a.e.c. Judeus piedosos perceberam nisto um perigo existencial ao judaísmo, o que motivou a alguns escribas comporem textos que descreviam um futuro no qual a intervenção divina iria liberar os judeus do jugo estrangeiro, de sua perseguição e influência. Esta alternativa confortou os judeus piedosos e destituídos visto que lhes assegurava um futuro renovado e autônomo, muito parecido ao que os habitantes de Judá experimentaram antes dos babilônicos, além de vingança pelas atrocidades sofridas sob Antíoco IV. Contudo, estes textos eram diferentes de toda a li-

teratura judaica anterior, porque em vez de usar a profecia para mediar o discurso divino, o modo tradicional para este discurso, estes escribas escreveram usando um novo gênero de literatura de revelação, o “apocalipse”.

A palavra grega apokalypsis significa “revelação” (é composta por apo-“retirando” e kalumna-“véu”), uma palavra relativamente nova no que diz respeito ao seu significado, visto que o termo não foi usado neste contexto até 90 e.c. aproximadamente com a autoria do livro de Apocalipse (Apokolypsis) de João, também conhecido como o Livro da Revelação. Apesar do fato que emergiram apocalipses em hebraico duzentos anos antes da palavra grega ser usada desta forma, é este o termo que passou a ser usado tanto no discurso erudito como no popular. Houve muita discussão erudita sobre a literatura apocalíptica, sobre o que é precisamente entendido por “apocalipse”.

A conclusão simples é que uma apocalipse é uma história que relata um humano recebendo uma revelação divina que ele não consegue entender, de forma que ele necessita de um intérprete angelical que lhe revela sobre uma futura salvação cósmica. Apocalipses são, então, semelhantes a profecias no que diz respeito a que há um humano recebendo uma mensagem divina, mas com a importante diferença de que no apocalipse a mensagem deve ser interpretada por mensageiro divino para o humano entendê-la. Uma afluente classe de escribas promoveu as profecias escritas sobre as orais e combinou a elas elementos emprestados da tradição profética israelita, usando linguagem retirada à literatura sapiencial hebraica. Isto deve ter tido sucesso no período do Segundo Templo, porque parece que havia uma generalizada falta de confiança na instituição profética após a destruição de 586/7.

De fato, foi sugerido que a profecia tradicional foi tão desprezada depois do exílio babilônico que ser profeta poderia representar perigo de vida. Conforme esta teoria, os autores fizeram as suas mensagens divinas incoerentes aos humanos usando imagens fantasiosas e frequentemente assustadoras para se protegerem do perigo. Os autores, para

Apocalipses e a se protegeram ainda mais, conferiram auliteratura apocalíptica surgiram e serviram toridade aos seus textos, pelo uso de pseudônimos de famosos personagens bíblicos e colocando a sua nova história denpara confortar tro da narrativa bíblica. Por exemplo, em comunidades sob Genesis 5:22-24 se lê que a personagem violenta perseguição, Enoch “caminhou com Deus por trezencontudo seu legado tos anos… Enoch caminhou com Deus; e depois ele não existiu mais, porque Deus sobrevive na teologia o tomou”. de alguns dos regimes Este texto misterioso glorificava Enomais violentos da ch e inspirou um segmento inteiro de liatualidade e, ao invés teratura apocalíptica atribuída a Enoch, de serem literatura para mas escrita por alguém que preencheu a história com o que aconteceu exatamenconfortar os oprimidos, te quando ele andou com Deus, o que ino apocalipse se clui jornadas através de diversas regiões da tornou na literatura terra, dos céus e do mundo abaixo. Apodo opressor. calipses foram um método de os judeus comentarem sobre a sua situação política contemporânea, da mesma forma como a profecia, mas sem expô-los a represálias políticas, e com os autores se resguardando de críticas internas ao usar nomes de figuras centrais judaicas. Durante a primeira onda de literatura apocalíptica judaica, produzida no tempo da perseguição de Antíoco IV, apareceram outros textos que não se enquadravam na definição estrita, acima mencionada, de apocalipse mas que continham a aura de um apocalipse. Estes textos são considerados “apocalípticos” e são o que as pessoas pensam normalmente quando ouvem palavras como “apocalíptico”, “apocalipse” e “escaton”. Eles descrevem algo ou tudo do que se segue: a desesperada expectativa das promessas divinas, futura catástrofe cósmica, anjos e demônios, salvação divina além da catástrofe, e/ou a figura de um Messias salvador. Por exemplo, o Livro dos Jubileus, que é aproximadamente contemporâneo a Enoch 1, reconta as histórias bíblicas do Gênesis e Êxodos de uma forma apocalíptica, referindo constantemente ao “escaton” (o fim dos dias). O Livro dos Jubileus não é canônico, não contém uma mensagem divina que requer tradução angelical, portanto não é uma apocalipse, apesar do fato de ser apocalíptico. O mesmo é verdadeiro para gêneros de literatura desenvolvidos posteriormente, Oráculos e Testamentos, que

também contém os elementos acima listados, porém não mensagem traduzida, fazendo deles apocalípticos, mas não apocalipses.

Para complicar ainda mais as coisas, uma terceira palavra, “apocalipsismo”, é usada para denotar a ideologia social topicamente expressa nos apocalipses e na literatura apocalíptica; é a crença que o escaton está chegando. Resumindo, temos “apocalipse”, um substantivo usado para denotar um gênero literário claramente definido, “apocalíptico”, um adjetivo para textos que contém motivos escatológicos, e “apocalipsismo”, um substantivo usado para definir um conjunto de crenças que espera que o fim dos tempos vá ocorrer proximamente.

Ambos, apocalipses e literatura apocalíptica, apresentam uma realidade futura na qual os judeus triunfam sobre os seus opressores, e isto realmente aconteceu por um breve período de tempo. A seu tempo, as perseguições de Antíoco IV ocasionaram as revoltas dos Macabeus de 167 a 164 a.e.c., que começaram no mesmo momento em que muitos destes apocalipses foram escritos e resultaram na vitória judaica sobre os gregos e em autonomia sob a dinastia dos Hasmoneus, que durou cerca de cem anos.

Há evidência esporádica sobre a continuidade da produção de textos apocalípticos após a revolta e a subsequente autonomia, mas parece que este gênero tem uma propensão para a turbulência. Isto por que parece haver um significante decréscimo na popularidade do apocalipse até aproximadamente duzentos anos depois, quando o próximo perigo existencial para o judaísmo aconteceu, desta vez sob um outro império, o Romano.

A segunda onda de textos apocalípticos judaicos apareceu depois da revolta judaica de 66-74 e.c. que resultou na destruição do Segundo Templo em 70 e.c. e num surto de brutalidade contra os judeus por parte das autoridades romanas, com o objetivo de punir os judeus por sua insurreição. Os textos resultantes, Ezra 4, Baruch 2, o Apocalipse de Abraão e o Livro das Revelações são obras complexas que mostram um progresso no desenvolvimento literário dos apocalipses, mas expressam a mesma preocupação presente na primeira onda da literatura apocalíptica; o futuro do judaísmo está em perigo. Os escribas mais uma vez precisaram confortar o povo e explicar por que Deus permitiu que Jerusalém e a população judaica fossem violentamente esmagados e o Templo destruído.

Duncan1890 / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 47

De particular importância é o fato de a literatura apocalíptica judaica nos dar alguns esclarecimentos sobre o estágio fundacional do desenvolvimento do judaísmo e do cristianismo sobre o qual sabemos pouco. Este segmento de literatura joga uma lente adicional sobre o mundo imediatamente antes do crescimento maciço do cristianismo no segundo século e.c. e da edição da Mishná, o primeiro livro rabínico, em torno de 200 e.c., visto que a maior parte dos textos apocalípticos não é canônica.

O Apocalipse representa uma incrivelmente pequena percentagem do cânone judaico e cristão; apenas Daniel 7-12 conta como um apocalipse na Bíblia Hebraica, e o único apocalipse contido no Novo Testamento é o Livro da Revelação. Isto não significa, contudo, que não existem mais apocalipses judaicos, mas a grande maioria deles não entrou no cânone convencional, seja judaico seja cristão. A esmagadora maioria de apocalipses e de outros textos apocalípticos, incluíndo Oráculos e Testamentos, se encontram na Pseudepígrafa.

A Pseudepígrafa é uma coleção de textos escritos entre 300 a.e.c. e 300 e.c. que não foram aceitos nem no Tanach nem no Novo Testamento, mas que são “bíblicos” em sua natureza. Os pesquisadores organizaram estes textos em edições eruditas, mas a maioria deles foram originalmente preservados nos cânones de várias denominações cristãs ortodoxas, tais como o cânone da Igreja Ortodoxa Etíope ou o da Igreja Eslava, enquanto que outros foram descobertos entre os rolos do Mar Morto.

A literatura apocalíptica judaica foi adequada ao tempo em torno dos dois períodos mais violentos da história judaica, a revolta dos Macabeus e a revolta judaica contra o Império Romano, e depois disso desapareceu do panorama literário judaico. O próximo grupo a tratar com os assuntos endereçados na apocalíptica judaica foram os rabinos cem anos mais tarde, num período em que o apo-

O grupo militante calipse e a literatura apocalíptica estavam islâmico conhecido como EIIS recruta abandonados na tradição judaica, deixada para os cristãos usá-la e desenvolvê-la em sua tradição por mais umas poucas cenativamente no tenas de anos. estrangeiro usando Apocalipses e a literatura apocalíptiimagens e retórica ca surgiram e serviram para confortar coapocalíptica. munidades sob violenta perseguição, contudo seu legado sobrevive na teologia de alguns dos regimes mais violentos da atualidade e, ao invés de serem literaLEITU RAS ADICIONAIS tura para confortar os oprimidos, o , apocalipse se tornou na literatura do

John J. Collins opressor. O grupo militante islâmico - conhecido como EIIS1 recruta ativa , ed. John J. Collins mente no estrangeiro usando imagens e retórica apocalíptica. Eles retratam

Theologies of Resistance in , Anathea E. Portier-Young uma batalha apocalíptica contra seus inimigos para ganhar autonomia para - o seu grupo e retornar a antiga glória , ed. James H. Charlesworth do Islã, restabelecendo o califado de - seu primórdio. Eles tentam restabele - cer sua honra mais ou menos como os ture, eds. Louis H. Feldman, judeus fizeram com a literatura apo-

James L. Kugel, and Lawrence H. calíptica, e usam quase o mesmo ima-

Schiffman ginário para fazê-lo. Em vez da bata lha contra os opressores gregos e ro - manos do Livro de Daniel ou do Liture, Patricia R. Pessar vro das Revelações a America é retratada como a inimiga cuja derrota vai trazer o escaton. O EIIS é um exemplo particularmente agudo considerando o seu muito real e atual perigo para a estabilidade da região, mas há muitas instâncias ao redor do mundo nas quais grupos usaram e adaptaram temas da literatura apocalíptica judaica para acomodar suas circunstâncias, incluíndo muitos exemplos na história do Brasil. 1 Nota do tradutor: Estado Islâmico do Iraque e da Síria – ISIS em inglês Adam T. Strater é um Wexner Graduate Fellow e aluno de PhD no curso de Bíblia Hebraica na Emory University de Atlanta, Georgia. Sua pesquisa foca na literatura apocalíptica judaica, guerras da Antiguidade e violência religiosa. Traduzido do inglês por Raul C. Gottlieb.

This article is from: