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Artur Benchimol

“OS CÉUS E A TERRA E TODAS AS SUAS CORES”

O shabat em uma sinagoga LGBT em San Francisco

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Artur Benchimol

I

“A Bíblia se preocupa mais com o tempo do que com o espaço. Ela vê o mundo através da dimensão do tempo. Presta mais atenção a gerações, a eventos, do que a países, a coisas; está mais preocupada com história do que geografia.” Rabi Abraham Joshua Heschel (Te Sabbath, p. 6, FSG Books)

9de Tammuz de 5775: o mundo mudou bastante. Saímos de férias no princípio do verão. O dia é agradável em uma cidade conhecida por seu clima ameno, que é quente de dia e fresco pela noite e nós caminhamos por bairros com seus cafés e parques. O início de um fim de semana atípico se desenha à nossa frente. A cidade está lotada. A multidão mal cabe sentada na grama do parque que a congrega nos mais inusitados eventos. Não sabíamos.

O Orgulho Gay de São Francisco se transforma em um fim de semana repleto de eventos e, no meio da tarde, inicia-se a Marcha dos Sapatões – a “Dyke March”. Sem convite ou programação (assim são as férias, não?), nós dois sentamos no meio fio para assistirmos a passagem do “bloco”.

Meninas, senhoras, mulheres, amigos, parentes, uma variedade de gente vai desfilando pela nossa frente, enquanto irremediavelmente comentamos as excentricidades no nosso seguro português e nos animamos e nos juntamos ao apoio dado pelos transeuntes que observam conosco da calçada. São assobios, gritos, acenos, todos muito amigáveis. Estamos contentes. É bonito de ver e tão mais bonito quando se está de férias. “Hoje em dia muitas sinagogas aceitam a comunidade LGBT. As pessoas não precisam mais vir aqui para rezar. Estamos virando uma sinagoga de bairro, tem até uma porção de casais hétero frequentando. Precisamos renovar um pouco para nos adaptarmos aos novos tempos e manter a comunidade ativa”.

O último grupo atrasado, de braços dados e atitude cantarolante passa por nós e os nossos olhos momentaneamente se desviam da marcha para o prédio do outro lado da rua. Surpresa: há, na fachada, um escrito em hebraico: Sha’ar Zaav.

Em 5775, o ano do Facebook e do iPhone, é fácil descobrir o que há por trás de qualquer letreiro. Digitamos a localização em nossos aparelhos e descobrimos que estamos diante de uma das primeiras sinagogas LGBT do mundo.

Nas férias, é costume esquecer o dia da semana, e o mesmo apetrecho que me diz agora “sinagoga”, me lembra que é shabat. Estamos em pleno embaraço com a situação, pegos com as calças na mão e oportunidade se faz irrecusável. “Vamos entrar e ver?”. Estamos de acordo, atravessamos a rua, abrimos a porta com insegurança e expectativas.

É uma sinagoga bem comum. Com cartazes de chaguim, eventos, doações, cursos, creche, nada excepcional. Na entrada, Kevin, um homem no princípio de seus 40, muito simpaticamente nos recepciona. Explicamos a situação: dois turistas perdidos do Brasil, andando pela rua, viram o letreiro e, como é shabat, resolveram entrar. Mas não sabem se estão vestidos direito e, você sabe, Kevin, não querem incomodar etc, etc… Pequenos testes.

Kevin não hesita. Para ele, a oportunidade já se deu e todos ficamos aliviados quando ele repete o rito de toda sinagoga que preza por seu nome e insiste que fiquemos: explica que hoje é um shabat especial e que o serviço é muito animado e que nós somos extremamente bem-vindos. A palavra “animado” vem com uma ênfase nova e nos sinaliza. É o teste da parte dele e todos nós entramos em acordo. O recado foi dado. Estamos dispostos e subimos ao santuário.

Simplíssimo. Um salão de madeira, adaptado, com um Aron Hakodesh e bancos largos que acomodam quatro ou cinco pessoas, dispostos em semicírculo. Nos sentamos em meio às dez ou 12 pessoas que já estão ali e nos preparamos para um serviço esvaziado, pois nossa experiência nos EUA é que o serviço mais frequentado é o de sábado de manhã.

Aos poucos vão chegando mais pessoas. Aos montes. Todos se conhecem e vão se abraçando efusivamente. Nós vamos sorrindo e nos alegrando ao ver que Kevin não nos enganara: algo especial deve estar acontecendo hoje mesmo.

Ao nosso lado senta um casal. Myriam, que compartilha o banco conosco, se apresenta. Contamos nossa história e ela comenta que nunca tinha escutado sobre judaísmo brasileiro e faz muitas perguntas. Conversamos um pouco sobre a vida judaica no Rio de Janeiro, a curiosa cultura judaica de Copacabana e ela pergunta se nós estamos sabendo “das notícias”.

II

“A natureza da injustiça é que nós nem sempre a percebemos nos nossos tempos”. Obergefell v. Hodges, Suprema Corte dos Estados Unidos, 576 U.S. 11 (2015)

De acordo com o jornalista Johann Hari, em torno de 5731, em uma das primeiras marchas de orgulho gay de Londres, o resultado do pacífico protesto foi o espancamento e a prisão de todos participantes.

Em uma ocasião semelhante, o chefe de polícia de Los Angeles, comentou: “No que me diz respeito, dar autorização a um grupo de homossexuais para desfilar pela Hollywood Boulevard seria a mesma coisa que dar uma autorização a um grupo de ladrões e bandidos”.

Em 14 de Av de 5775, em Jerusalém, Shira, filha de Uri e Mika, de apenas 16 anos, foi golpeada mortalmente, junto a outros cinco feridos que marchavam na parada gay daquela cidade. As razões e o nome por trás do crime permanecem incompreensíveis e merecedores de esquecimento. 9 de Tammuz de 5775 foi o dia em que o tribunal mais importante dos Estados Unidos, a Suprema Corte, decidiu em uma votação apertada de cinco a quatro que nenhum estado da federação poderia negar a seus cidadãos o direito de se unirem, mesmo se fossem do mesmo sexo. A decisão foi seguida de um previsível turbilhão na Internet e na mídia e portanto…

A sinagoga estava lotada e nós estávamos de férias.

Os abraços calorosos vinham de todos os lados. Não era somente o shabat que aquecia o coração daquelas pessoas, havia algo mais. Havia o alívio de que, depois de tanto tempo, uma notícia boa tivesse chegado, finalmente.

III

“Todo amor que depender de alguma coisa, quando acabar a coisa, acabará o amor. E se não depender de alguma coisa, não terminará para sempre”.

“Qual amor dependia de alguma coisa? O amor de Amnon e Tamar. E que não dependia de alguma coisa? O amor de David e Jonathan.” Pirke Avot, 5:19

Começa o serviço. Ao começar as primeiras rezas, notamos que há diferenças no Sidur. Não há tempo de internalizar todos as nuances do livro, mas é claro que hou-

O Orgulho Gay de São ve um empenho muito grande em trazêFrancisco se transforma em um fim de semana -lo à vida. O livro é cuidadosamente dedicado a distanciar-se dos gêneros, o que é um derepleto de eventos. safio gigantesco devido à natureza da lín-

Meninas, senhoras, gua hebraica, onde todo verbo carrega inmulheres, amigos, formação de gênero. Algumas vezes nos parentes, uma variedade perdemos na reza, pronunciando uma palavra em hebraico que estamos acostumade gente vai desfilando dos e que eles trocam. Mas não estamos pela nossa frente. O tão preocupados com isso e preferimos último grupo passa por nos ocupar com um comentário no Sidur nós e os nossos olhos que cita Yehuda Amichai. momentaneamente se As rezas são intercaladas com can ções cantadas em hebraico por um gru desviam da marcha para po de três homens muito afinados que o prédio do outro lado cantam os salmos mais melódicos a cada rua. Surpresa: há, na pella. A congregação escuta em silêncio fachada, um escrito em hebraico: Sha’ar Zaav. e aplaude cada canção. São cantores maravilhosos. A rabina Angel sobe ao púlpito. Além de tudo, é a sua despedida. Conta sobre a sua história como rabina e como a comunidade foi importante para que ela se sentisse à vontade para exercer o seu judaísmo, encontrar uma namorada judia, construir uma família judaica. Não foi fácil, ela descreve como a relação com seus pais, a sociedade e o seu judaísmo foi difícil. Mas são outros tempos. Lágrimas, sorrisos e aplausos. Está feita a despedida. A Amidá que segue é bem no estilo reformista. Um convite à meditação sem muita gente grudada no sidur. Termina e ao virarmos a página vemos que o Kadish Yatom contém uma parte suplementar em lembrança das vítimas do HIV. A rabina lê, o silêncio surge repentinamente e a solenidade toma conta do salão. O grupo a capella retorna ao palco, para a hora do Adon Olam. Escutamos os primeiros acordes e a vontade é de começar com “First I was afraid, I was petrified”. Mas não, é Adon Olam. Alguns vão de Asa Branca, eles escolheram I Will Survive. A canção preenche o espaço, palmas animadas por todos os lados e cantamos junto ao ritmo. A mensagem se preserva: o ritmo muda, os tempos mudam, e nós sobrevivemos. No fim, uma última homenagem à rabina, que se despede, no centro cantam uma última canção e convidam

que todos façam uma corrente humana, tocando as pessoas à sua frente em direção ao púlpito. Num mundo onde ser invisível e intocável é tão frequente, ser tocado é o símbolo escolhido da inclusão.

IV

“Agora estavam completos o céu e a terra e todas as suas hostes. No sétimo dia, Deus completou o trabalho que vinha fazendo, cessando então no sétimo dia todo o trabalho que tinha feito. Então Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, e cessou todo o trabalho de criação que [decidira] fazer.”

Bereshit 2:1-3

Terminamos um pouco zonzos. Myriam gentilmente nos oferece que comamos um pouco dos quitutes que estão no salão ao lado. Cada um trouxe algo de casa e, ao pensarmos na taxa de câmbio em 5775, aceitamos o convite prontamente. A comida está ótima e ela nos pergunta o que achamos do serviço, se foi muito diferente do que estamos acostumados.

Não foi não, respondemos. É um serviço de shabat comum, reconhecível. Perguntamos se eles são ligados a algum movimento e Myriam responde: “Quando fundamos a comunidade, apenas os reformistas nos aceitavam. Até hoje, somos ligados a eles”.

Comentamos que a realidade não parece ser mais essa, ao que ela concorda e fala: “Sim, hoje em dia, muitas sinagogas aceitam a comunidade LGBT. As pessoas não precisam mais vir aqui para rezar. Estamos virando uma sinagoga de bairro, tem até uma porção de casais hétero frequentando. Precisamos renovar um pouco para nos adaptarmos aos novos tempos e manter a comunidade ativa”.

Nos despedimos com a certeza de que fomos numa sinagoga tão sinagoga como tantas outras, com seu passado e seu presente e sua vontade de futuro. Afortunados pela data e inspirados pela história, saímos à rua enquanto conversamos sobre o texto de Bereshit.

Não seria o caso de “Tzevahot” em hebraico ter alguma relação com a palavra “cores”? Tzevahot, tzeva. Não é a mesma palavra, mas é muito parecido.

Se houver alguma relação, então Deus não teria contemplado “os céus e a terra e todas as suas multidões”, mas sim contemplado “os céus e a terra e todas as suas cores”. A imagem é bonita.

Talvez tenha alguma relação, talvez seja coincidência. Não temos um dicionário à mão, já não temos vontade de Google. 10 de Tammuz de 5775 começa e preferimos caminhar pela rua contentes com a certeza ignorante de que, do alto de seu trabalho, Deus parou naquele primeiro de Tishrei do primeiro ano, não para contemplar multidões, hostes ou exércitos, mas para desfrutar da diversidade magnífica das cores.

Artur Benchimol é publicitário.

CHAG SAMEACH

arymax.org.br

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