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Ytzhak (Itzik) Peleg

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Arnaldo Niskier

Arnaldo Niskier

O PERFIL DE MOISÉS SEGUNDO A HISTÓRIA DO SEU NASCIMENTO E DE SUA MORTE

Uma abordagem literária

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A ausência de uma história de “nascimento milagroso” em torno de Moisés tem a intenção de garantir que Moisés não seja cultuado como se fosse um deus, para que desse modo se evite a criação de um culto à personalidade.

Página anterior: Estátua de Moisés, de Michelangelo, na Basílica San Pietro in Vincoli, em Roma.

Ytzhak (Itzik) Peleg

Moisés é o protagonista nas histórias do Êxodo do Egito. Sua biografia se estende através de quatro livros da Torá. A Torá atribui a Moisés uma posição central na história do povo de Israel. Ele resgata o seu povo do Egito, ele os lidera pelo deserto durante 40 anos, é ele a quem Deus se revela face a face, aquele a quem a Torá é entregue.

Antes de avançarmos, gostaria de ressaltar que a minha abordagem literária é sincrônica. Esta atitude literária perante o texto reconhece a possibilidade de leituras múltiplas. O objetivo deste artigo é tentar compreender inteiramente a história bíblica em seu formato final. Prefiro uma investigação sincrônica à diacrônica, de forma a focalizar uma leitura profunda do próprio texto. O meu foco é centrado no texto como um todo. Por este motivo, a questão da historicidade de Moisés, assim como o Êxodo do Egito, não se torna relevante quanto à questão presente.

O relato lacônico do nascimento de Moisés

Ainda que a Torá mencione Moisés 616 vezes (apenas no Livro do Êxodo são 271 vezes), o seu nascimento é narrado apenas em dois versos no Livro de Êxodo 2:1: “Um certo homem da casa de Levi casou [-se com] uma mulher levita. A mulher concebeu e deu à luz um filho e viu como este era bonito…”

Este é um relato curto, seco e informativo, apesar de nos ser dito que a mãe ficou impressionada com a beleza do seu filho. É de se notar, também, que os nomes dos pais não aparecem; esta poderá ser uma mensagem educativa, oculta, indicando que não é necessário ser “o filho de...” para tornar-se um grande líder.

Não considero, no entanto, esta interpretação satisfatória. A omissão de um nascimento milagroso é até mais curiosa se considerarmos que o que conhecemos do nascimento de outras personagens da Bíblia. O nascimento de Isaac, por exemplo (Gen. 18:6-21), de Jacob e Esaú (Gen. 25:19-29), de Sansão (Juízes 13). Essas histórias possuem em comum um padrão, no qual uma mulher estéril, longamente sofredora, milagrosamente dá à luz um filho.

Podemos imaginar que, já que Moisés tinha dois irmãos – Aarão e Miriam –, sua mãe não tinha problemas de fertilidade. Eu, porém, não considero satisfatória essa solução: continuamos com a questão de como explicar o relato lacônico do nascimento de Moisés.

Apesar de que a descrição do resgate de Moisés pela filha do faraó possa ser vista como um relato metafórico de nascimento, ainda insisto no fato de que a história do nascimento biológico de Moisés é curta e lacônica. O relato de como a filha do faraó salva Moisés e o cria é um tema folclórico tradicional, comum a diversas culturas, no qual o herói é abandonado pelos pais imediatamente após o seu nascimento. Pesquisadores notaram a similaridade entre Moisés na cesta de vime e a lenda acádia do Rei Sargão de Acad e o famoso “conto da cesta”. A mãe de Sargão o concebeu e deu à luz em segredo. Colocou-o, então, numa pequena caixa.1

A ausência de uma história de “nascimento milagroso” para Moisés se reflete em literatura pós-bíblica. Por exemplo, em Shemot Rabbah 1:18, pag. 68: “Faraó foi informado pelo mágico do Egito ou através de um sonho sobre o nascimento de Moisés e por esse motivo faraó deu ordens que fossem mortas todas as crianças de Israel que fossem do gênero masculino.”

A questão óbvia que se apresenta se refere a essa informação pós-bíblica, se esta seria uma versão posterior e que preencheria lacunas na história bíblica que explica o co-

Moisés não é mando do faraó em Ex.1:22: “Cada memencionado na Hagadá de Pessach para evitar nino recém-nascido o lançarás ao Nilo”; ou será este um caso de uso de tradição antiga para corrigir “censura” da antiga a criação de um culto versão da Bíblia? à personalidade, para Se, de fato, temos alguma tradição que evitar a identificação foi removida da Bíblia, qual o motivo da entre o mandante censura? Torna-se razoável assumir que a au(Deus) e o mensageiro sência de uma história de “nascimento (Moisés). milagroso” em torno de Moisés, e a ausência de tradições em literatura pós-bíblica, têm em comum a intenção de garantir que Moisés não seja cultuado como se fosse um deus, para que desse modo se evite a criação de um culto à personalidade. Neste texto, meu argumento propõe que a resposta à questão de como explicar o relato lacônico do nascimento de Moisés pode ser encontrada ao notar-se a maneira pela qual a Bíblia descreve a forte figura de Moisés em dois outros pontos fulcrais na sua vida: A abertura do Mar Vermelho – será o “autor do milagre” Deus ou Moisés? Além do mais, o relato de sua morte e sepultamento – Qual o motivo do desconhecimento do local de sepultamento de Moisés?

Vou agora discutir a história “Do Milagre da Travessia do Mar Vermelho”

Gostaria de focalizar no papel de Moisés em relação à travessia milagrosa do Mar Vermelho. Em Êxodo 14, versículo 18, é Deus quem ordena a Moisés “erguer a sua vara... sobre o mar e dividi-lo de maneira que os israelitas possam entrar no mar sobre terras secas”; no versículo 21, Moisés obedece e age de acordo com o comando de Deus, porém é Deus quem causa o milagre, “através um forte vento do leste”. O leitor sensível irá discernir a tensão nesse versículo 31: o povo via o milagre executado por Deus, porém, “acreditaram” não apenas na Divindade mas também em Moisés. Por outro lado, no Cântico do Mar (Ex. 15:1) cantado por Moisés e o povo, todo o louvor é a Deus e não a Moisés. Fontes externas ao Êxodo negam a Moisés quase que totalmente qualquer participação. Em Josué, por exemplo,

Rehab diz aos dois espiões: “Pois ouvimos como o Senhor secou as aguas do Mar dos Juncos” (Jos. 2:10). Moisés nem é mencionado. Deuteronômio (veja Deut. 11:4) atribui o milagre exclusivamente à Divindade.

Micha Goodman, em seu livro Moses` Final Oration (A Oração Final de Moisés) argumenta não apenas que Moisés se faz desaparecer do milagre da abertura do Mar Vermelho, mas quase que se elimina do relato como um todo, por exemplo Deut. 8:2.2 De acordo com esse versículo, é Deus quem lidera o povo no deserto e não Moisés. Quando Moisés encoraja o povo a relatar a história às gerações futuras, ele não menciona a sua própria participação.

Aprendemos, dessa forma, que em Deuteronômio a posição de Deus é enfatizada em detrimento de Moisés. Será que este trecho aponta para a modéstia de Moisés, como somos informados em Números 12:3?

Posteriormente, centenas de anos após a canonização da Bíblia Hebraica, a Hagadá de Pessach, que nos fala do Êxodo do Egito, sequer menciona a liderança de Moisés.

Perguntamos então: Haverá alguma conexão entre o fato de Moisés não ser mencionado em Deuteronômio e o fato de igualmente não ser mencionado na Hagadá de Pessach?

A Hagadá de Pessach cita no versículo 8 em Deuteronômio 26: “E o Senhor nos tirou do Egito”, e adiciona: “Não pelas mãos de um Anjo e não pelas mãos de um Serafim, nem as mãos do Mensageiro, porém pelas mãos do Eterno”. Tudo indica que “O Mensageiro” sugere Moisés.

Estas palavras nos levam a uma das razões pela qual Moisés não é mencionado na Hagadá de Pessach. Não é mencionado com o objetivo de evitar a criação de um culto à personalidade; em outras palavras, para evitar a identificação entre o mandante (Deus) e o mensageiro (Moisés). Ao não darem atenção à existência de Moisés, os autores da Hagadá revelam a sua preocupação com a possibilidade de que gerações por vir o vissem como uma figura divina.

O Relato da Morte e Sepultamento de Moisés:

Voltemo-nos, agora, para a história de Moisés como relatada na Torá. No final de sua vida, quando o povo está

por entrar na Terra Prometida, Deus solicita a Moisés que ascenda ao Monte Nebo para que veja a Terra. A Divindade diz a Moisés: “Esta é a terra... Eu permiti que tu a visses com teus próprios olhos, porém tu não entrarás nela” (Deut 34:4). Será que Moisés faleceu de tristeza e com o coração partido após as palavras de Deus?

Que tragédia! Após liderar o povo por quarenta anos até que alcançassem a Terra Prometida, não será permitido a Moisés que entre na Terra. Seja quais forem os motivos da Divindade, esta é uma punição dolorosa, principalmente considerando tudo que Moisés havia realizado em prol do seu povo.

Ademais, o povo de Moisés posteriormente irá desfigurar a sua memória ao excluir os seus feitos da Hagadá de Pessach. Que tragédia!

Com o objetivo de amenizar a tragédia de Moisés, sugiro uma leitura adicional que ao menos poderá nos confortar, a nós, os leitores.

Notemos que a descrição dos acontecimentos no Monte Nebo se inicia com o verbo “ver”. A repetição do mesmo verbo em Deut. 34:4 reforça a sua importância. De fato, Daube e Malul, ambos destacam o papel do verbo “ver” em contratos legais para definição de transferência de propriedade de terras em contratos legais em tempos do Antigo Oriente Próximo.3 Em outras palavras, o mero fato de se olhar uma terra, determina aprovação legal de transferência de propriedade. Há um fenômeno similar quando aquele que irá se tornar o proprietário da terra, perpassar a pé, indo e voltando, como o fez Abraão sob as ordens de Deus. “Levanta, anda pela terra, em seu comprimento e sua largura pois a darei a ti.” (Gen. 13:17) O significado legal do termo “ver” como parte da cerimônia de transferência de propriedade nos permite compreender – e, quem sabe, a Moisés – as palavras de Deus no Monte Nebo como menos trágicas do que parecem inicialmente. De acordo com Daube: “Apesar de que Moisés não irá cruzar a fronteira para entrar na Terra Prometida, pelas palavras da Divindade – incluindo-se o verbo “ver” – apreendemos que Moisés recebe o status de proprietário da Terra, tanto para si quanto para a sua descendência.”

Ademais, segundo o versículo 6, Moisés recebe uma grande honra quando Deus, próprio, o sepulta. Ainda, o capítulo finaliza a Torá dizendo: “Jamais se levantou em Israel um profeta como Moisés que o Senhor conheceu face a face” (vers. 10).

Em seguida, no entanto, tomamos conhecimento de que “Ninguém, até os dias de hoje, conhece o local de sua sepultura.” (Deut. 34:6), o que nos leva à questão: Por que o local de sepultamento de Moisés é desconhecido?

O relato da morte de Moisés e especialmente o fato de que o local de seu sepultamento é desconhecido, pode ser interpretado como que tendo relação a duas mensagens interligadas: a luta contra o culto à personalidade, como vimos nas histórias do nascimento de Moisés e da abertura do Mar Vermelho. Além disso, o desejo de evitar-se a configuração de Moisés como um herói divino e mitológico, sendo que uma configuração destas estaria em conflito com o monoteísmo.

Gostaria de mencionar, aliás, que por ser o local do sepultamento desconhecido, não há possibilidade de tornar a sua suposta sepultura um local de romaria, com todos os fenômenos relacionados.

Antes de concluir, retornemos ao relato do nascimento desprovido de milagres e a sua influência sobre a nossa compreensão referente à figura de Moisés. Um nascimento milagroso apontaria para uma imagem pertencente a um plano divino nessa escolha de Deus – enquanto a criança ainda se encontrasse no ventre. No caso de Moisés, no entanto, parece que este foi escolhido como merecedor de sua missão divina apenas após prová-lo quando jovem.

Em três curtos relatos Moisés se mostra como um indivíduo que luta pela justiça, um indivíduo que se deixa sensibilizar. Por exemplo, em primeiro lugar, quando Moisés mata um egípcio o qual observou espancando um hebreu e, em segundo lugar, no relato em que interveio na briga entre os seus dois compatriotas; além disso, no episódio de sua luta com os pastores de Midian com o objetivo de ajudar às filhas de Jethro (Ex. 2:11-17).

Nestes três curtos relatos, observamos Moisés como alguém que defende os mais fracos, sem referência às origens, gênero ou status social. Um homem como este é re-

Por ser o local do almente merecedor de se tornar líder do sepultamento de Moisés desconhecido não povo. Uma história de nascimento milagroso teria diminuído a força destes três relatos que têm como objetivo justificar, há possibilidade de ao demonstrar o seu caráter extraordinátornar a sua suposta rio, a escolha de Moisés como mensageisepultura um local ro de Deus. de romaria, com O comportamento de Moisés na história do assassinato do egípcio exige uma todos os fenômenos explicação à parte: “E ele olhou para um relacionados. lado e para outro e quando viu que não havia homem algum, matou o egípcio e o escondeu na areia” (Ex. 2:11-12). Certamente podemos apresentar o comportamento de Moisés por uma visão nada elogiosa. Qual o seu motivo para olhar em volta e se certificar de que não havia ninguém o observando? É possível, de outro lado, fazer uma leitura mais positiva: Moisés se sensibilizava pelo sofrimento de seus irmãos e, quando viu um egípcio espancando um hebreu, olhando em volta para ver se alguém vinha ajudar à vítima, e vendo que ninguém haveria que pudesse intervir, ele mesmo se adiantou para salvar o hebreu enfraquecido. Moisés, aqui, se mostra responsável, interessado, envolvido. Esta leitura me faz recordar as palavras de Martin Niemöller, um conhecido pastor protestante que se opunha ao regime nazista4: “Primeiramente vieram atrás dos socialistas e eu não protestei – pois não era socialista. Então vieram atrás dos sindicalistas e eu não protestei – pois não era sindicalista. Então vieram atrás dos judeus e eu não protestei – pois não era judeu. Então vieram atrás de mim – e ninguém restava para protestar por mim.” A mensagem é clara: jamais fique indiferente ao sofrimento de outros. Não fique calado.

Concluindo

Neste texto abordei quatro questões: Primeiramente, como podemos explicar o relato lacônico sobre o nascimento de Moisés? Segundo, haverá alguma conexão entre este relato lacônico e o fato de Moisés não ser mencionado na Hagadá de Pessach?

Terceiro, será Deus ou será Moisés o autor dos milagres na história da abertura do Mar Vermelho?

Quarto, por que será desconhecido o local de sepultamento de Moisés?

Defendo que a resposta a estas perguntas é uma, apenas: o objetivo de que se previna contra a criação de um culto à personalidade e que se evite confundir o mandante (Deus) e o mensageiro (Moisés). Ao dar um valor menor à existência de Moisés, os autores da Hagadá revelam a sua preocupação de que as gerações futuras viessem a olhá-lo como uma figura divina.

Não há quem, no entanto, possa ignorar a imagem grandiosa de Moisés. Por essa razão, todos aqueles que relatam detalhadamente sobre o Êxodo do Egito sob a liderança de Moisés, são dignos de louvor.

Notas

1 O conhecido “conto da cesta” é um relato folclórico semita muito antigo referente ao rei Sargão, o fundador da dinastia semita de Akkad (em 2.360 a.e.c.). 2 Micha Goodman, Moses´ Final Oration. Ed. Kinneret, Znora Bitan, Dvir Publishing House, Ltd. 2014, pg. 19. 3 Daube, D., Studies in Biblical Law, Cambridge, 1947, (Nova impressão KTAV,

New York, 1969), pg. 27. 4 Martin Niemöller passou os últimos sete anos do regime nazista em campos de concentração. A citação acima talvez seja o maior fato pelo qual Niemöller é lembrado.

Dr. Itzhak (Itzik) Peleg é o chefe do Departamento de Cultura Bíblica e Judaica do Beit Berl Academic College. Faz conferências na Universidade de Haifa e no Gordon College, Haifa. É o editor das revistas Mo’ed: Annual for Jewish Studies (Anuário para Estudos Judaicos) e Holiday Thoughts (Pensamentos dos Dias Festivos), além de possuir vasta experiência como professor. Dr. Peleg anteriormente serviu como sheliach (orientador) em Moscou e Nova York. É membro do kibutz Ein Hashofet, em Israel. Esteve na ARI neste ano, quando apresentou uma palestra e fez uma prédica no kabalat shabat.

Traduzido do Inglês por Jeanette B. Erlich.

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