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Rabino Sérgio R. Margulies

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Paulo Geiger

Paulo Geiger

NAVEGADORES DO TEMOR, TIMONEIROS DA ESPERANÇA

Rabino Sérgio Margulies

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“Não há esperança dissociada do medo, e não há medo dissociado da esperança”. BARUCH SPINOZA

Temor e rumo

Tanto quanto eu consigo me lembrar, eu lembro temor. Temor existencial”. Assim começa o livro My Promised Land, do jornalista israelense Ari Shavit. Estas palavras se referem à realidade vivenciada em Israel. País geograficamente minúsculo, cuja dimensão não o exime de ser alvo de extinção.

Temor. A que mais pode se referir? Ao povo judeu como um todo. Às inúmeras circunstâncias em que foi ameaçado, geograficamente sufocado no lugar em que estava e espiritualmente asfixiado pela falta de liberdade.

Também a cada um de nós este temor pode se referir ao sermos reféns de situações fora do controle. Situações em que a capacidade tão almejada de sermos condutores de nossas vidas é abruptamente retirada e nos arrasta pelos vendavais do infortúnio.

O temor recrudesce ao depararmo-nos com perguntas desprovidas de respostas: ‘Para onde ir?’, ‘O que fazer?’. O temor imobiliza. E mesmo diante da insistente tentativa de romper com esta paralisia, a ausência de referências nos deixa a esmo. Fica a evidência de que o medo é a superfície e o sintoma de um drama cuja causa é a falta de referências.

O temor não decorre da dificuldade circunstancial que poderia ser eventualmente superada. O temor é a ausência de rumo. Sem referências não há novo rumo possível, nem energia para encontrar novos caminhos ou perseguir alternativas. O temor passa a ser a única força atuante e torna-se existencial. A missão judaica é prover, através do convívio comunitário, esperança ao anseio de encontrar o novo rumo. Assim, em meio às dificuldades e envoltos pelo medo, acalenta-se sempre uma esperança. Somos timoneiros da esperança que não perdem o prumo e reencontram o rumo.

Crise e referência

Crise em hebraico é mashber. O termo mashber é escrito com as letras do verbo quebrar. A relação ensina que crise é a quebra de referências. Sem referências ficamos desnorteados. Sem rumo. Restaurar os rumos requer resgatar as referências. Crise não é a dificuldade. Tampouco a adversidade. Crise é a falta de referências para transpor as dificuldades. Obstáculos inevitavelmente aparecem. Com referências somos capazes de traçar novas trajetórias e retomar o rumo. Sem referências há a quebra. Vida despedaçada.

Diferente do temor existencial que nos sufoca, o temor reverencial reconhece que há algo além de nós e um propósito transcendente. Em função deste temor reverencial devemos evitar que quebras aconteçam de modo inconsequente, pois “saiba diante de quem você no futuro será julgado e prestará as contas.” (Pirkei Avot).

O temor reverencial – tal como expresso no período entre Rosh Hashaná e Iom Kipur, denominado de Iamim Noraim, Dias Temíveis – é temor celestial que preserva a referências. A preservação das referências permite o reencontro com os rumos. Os rumos não estão perdidos, o que há é um novo caminho a ser pavimentado, ainda que arduamente, para superar os reveses. Daí a relevância do temor reverencial: faz o alarme soar constantemente em nosso espírito para que os nutrientes mais preciosos da existência, como os valores e suas referências, não sejam quebrados.

O temor reverencial – tal como expresso no período entre Rosh

Hashaná e Iom Kipur, denominado de Iamim Cântico e canto

Noraim, Dias Temíveis – é temor celestial que “Será que estou sozinho, perdido, sem rumo?” Frequentemente nos perguntapreserva a referências. mos aos nos confrontarmos com a soli-

A preservação das dão. Brotam em nossa alma a indagação referências permite do Salmo bíblico: “Essá einai el-hearim, o reencontro com os meain iavô ezri?”. “Levanto os meus olhos rumos. Os rumos não para as montanhas, de onde virá minha ajuda?” Um desespero que se renova desestão perdidos, o que de o milenar texto dos Salmos de autohá é um novo caminho a ria atribuída ao rei David até as músicas ser pavimentado, ainda contemporâneas como a canção composque arduamente, para superar os reveses. ta há cinquenta anos pelos Beatles: Help, I need somebody. O leitor pode tentar buscar a influência daquele que foi considerado o quinto integrante da banda, (o empresário) Brian Epstein, para substanciar a menção desta música no contexto judaico deste artigo, mas a relevância está justamente no fato do clamor pela ajuda ser tanto particular quanto universal, ser tanto sagrado quanto secular, ser tanto antigo quanto contemporâneo, percorrendo línguas e lugares. Enquanto – paradoxal e dolorido que seja – houver o desespero rogando por ajuda, ainda há esperança de que as referências não foram completamente anuladas. A procura de alguma ajuda demonstra a persistente vontade de encontrar um novo rumo.

Descarte e futuro Prumo e rumo

Mas por que tantas vezes nos tornamos surdos ao alarme espiritual e descartamos o que deveríamos com zelo preservar? Porque prevalece o interesse imediato em detrimento do olhar para o futuro. O foco exclusivo no imediato abdica do processo. As referências tornam-se secundárias. O resultado é somente o que interessa e pouco importa se este interesse destrói as bases que permitiriam um caminhar pleno e constante. Descarta-se o que deveria ser preservado. É a mentalidade ‘one way’. A mentalidade ‘one way’ ocasiona a perda dos rumos. Se há somente um único caminho – ‘one way’ – não há opção de renovar estes caminhos para retomar a trajetória da vida.

A missão judaica é prover, através do convívio comunitário, esperança ao anseio de encontrar este novo rumo. Assim, em meio às dificuldades e envoltos pelo medo, acalenta-se sempre uma esperança. O psicanalista Erich Fromm (1900-80) ensina que esperança genuína não é irracional, não é uma salvação apocalíptica: “Ter esperança significa estar pronto para aquilo que ainda não nasceu, e, todavia não se desesperar se não ocorrer nascimento algum durante nossa existência”.

Não se desesperar mesmo em ocasiões avassaladoras tem sido possível em função da esperança. Não uma esperança gerada por um devaneio, e sim esperança capaz de enxergar as referências que apontam para rumos possíveis. Mesmo que estes rumos não tenham ainda surgido ou nascido, as referências estão presentes para que em dado momento surjam ou nasçam. Esperança é a capacidade de manter estas referências e enxergá-las mesmo diante das névoas. Somos timoneiros da esperança que não perdem o prumo e reencontram o rumo.

Prumo é o instrumento que mede a profundidade das águas e também é sinônimo de esteio. Ao mantermos os esteios de nossos valores e referências reconhecemos a profundidade das dificuldades, mas nelas não afundamos.

Lua e sol

Os dias, semanas e meses do calendário religioso judaico são determinados pelas estrelas e lua. O estudo da astronomia levou muitos judeus ao domínio das técnicas da cartografia. Isto tem tanto uma dimensão prática – conhecer os mapas e desta maneira desbravar rotas – quanto espiritual: enquanto as estrelas brilharem os rumos não estão perdidos. As estrelas representam os valores e referências que nos acompanham.

Mas por que o sol não é o corpo celestial utilizado para determinar a passagem do tempo? A explicação simbólica

Prumo é o instrumento é porque nem sempre podemos olhar para que mede a profundidade das o sol. O sol que ilumina também pode queimar a visão. As referências devem ser equilibradas como um brilho permanenáguas e também é te, não como uma luz que aparenta ser sinônimo de esteio. promissora salvação, mas que pode cau-

Ao mantermos os sar um desastre. As referências são como esteios de nossos a esperança, relevadoras de rumos, porém não salvações apocalípticas. valores e referências No entanto, o ciclo solar é utilizado reconhecemos a para ajustar o ciclo lunar do calendário e profundidade das desta maneira adequar os meses às estadificuldades, mas nelas ções agrícolas do ano. Esta concepção de não afundamos. contagem do tempo, além de seu aspecto pragmático, é uma atitude de vida: demonstra a capacidade de, com equilíbrio buscar e aceitar, sem descartar, as várias fontes de ajuda. Uma fonte de ajuda, seja ao longo do dia – o sol –, seja ao longo da noite – as estrelas e lua – estará disponível. Talvez, como frequentemente ocorre, não são visíveis. Quando ocultos aos nossos olhos, não significa não estarem lá. As referências continuam, mesmo que em inúmeras ocasiões longe de nosso alcance. Ou melhor, alcance imediato. Cedo ou tarde as nimbus e névoas que encobrem o que brilha do firmamento celestial desaparecerão. Que nossos olhos não tenham se fechado definitivamente para vislumbrar esta possibilidade. E que tampouco se iludam com a crença de que novas nimbus e névoas não voltarão a aparecer encobrindo o brilho que ressurgiu. Sérgio R. Margulies é Rabino e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

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